Situando-se no desenvolvimento da Media via entre Liberalismo e Absolutismo aberta pelo Integralismo Lusitano, Mário Saraiva apresentou em «Razões Reais» um contributo inovador que é de justiça reconhecer como uma doutrina neo-integralista dos poderes do Rei: enquanto na teoria monárquica do constitucionalismo liberal-cartista se dizia que “o rei reina mas não governa” e o Integralismo Lusitano havia inicialmente retomado a fórmula de Gama e Castro segundo a qual o “o rei governa, mas não administra”, Mário Saraiva vai adiante afirmar que o Rei não deve governar nem administrar, mas deve chefiar tudo o que não seja discutível no plano nacional – a Diplomacia, as Forças Armadas, a Justiça." - J.M.Q.
[Palavras de apresentação da 3ª edição da obra «Razões Reais» de Mário Saraiva, por José Manuel Quintas, em 2 de Abril de 2003, no Salão Nobre do Palácio da Independência, Lisboa]
Minhas Senhoras e meus Senhores,
É para mim uma grande honra e satisfação poder estar aqui convosco no lançamento da 3ª edição da obra RAZÕES REAIS, da autoria do Doutor Mário Saraiva.
A Livraria Universitária Editora, ao promover hoje o lançamento desta obra, coloca junto do público o sétimo livro de Mário Saraiva. Creio que não é demais começar por recordar os títulos anteriores, cobrindo os três domínios de estudo privilegiados pelo autor - os domínios sebástico, pessoano e político.
A estreia da Universitária Editora na edição de obras de Mário Saraiva deu-se em 1994 com o livro Dom Sebastião na História e na Lenda, no qual se desfaz a campanha de deformação do rei D. Sebastião - lançada de maneira tendenciosa e sistemática desde o século XIX -, e se recolocam, sobre a mesa dos investigadores sebásticos, os vários indícios da sua sobrevivência após a batalha de Alcácer Quibir.
Os três anos seguintes, em cadência regular, foram preenchidos pela edição de colectâneas de ensaios e de textos de intervenção política e historiográfica, nos quais se atesta o lúcido e intenso trabalho do autor em prol do ideário monárquico: em 1995, viu a luz do dia Frontalidade – Ideias, Figuras e Factos; em 1996, Apontamentos – História, Literatura, Política (obra distinguida com o prémio «Livro 1997» conferido pela Sociedade Histórica da Independência); em 1998, a última obra publicada em vida, Impressões e Memória.
Depois da morte de Mário Saraiva, em 28 de Maio de 1998, foi ainda por intermédio da Universitária Editora que surgiu nas livrarias, em 3ª edição, O Caso Clínico de Fernando Pessoa - uma obra incontornável no domínio dos estudos pessoanos (entretanto traduzida para espanhol e editada em Madrid) onde se procedeu a um exame ao psiquismo desse «monstro sagrado» das letras portuguesas.
Por fim, no ano 2000, tendo sido carinhosamente reunidos por seu filho, Jaime de Mello Saraiva, os últimos escritos que andavam dispersos na imprensa diária, foi aqui, neste mesmo local, com brilho apresentada a colectânia Ideário pelo Dr. Gonçalo de Sampaio e Mello, numa cerimónia presidida pelo Senhor Dom Duarte de Bragança, chefe da Casa Real Portuguesa.
Se a rica e plurifacetada obra de Mário Saraiva tem conseguido romper a cortina de silêncio que se continua a abater sobre as obras incómodas, tal se tem ficado a dever à persistência desta editora.
* * *
A obra «Razões Reais» é “compreensível mesmo pelos menos cultos”, como realçou Dom Duarte Nuno de Bragança nas palavras de agradecimento que dirigiu a Mário Saraiva. Ao percorrer as páginas deste pequeno-grande livro, é na verdade difícil não nos sentirmos tocados por essa límpida e genuína claridade que levou Pequito Rebelo a afirmar que nele se conseguiu “apurar no crisol, ou destilar em alambique de alquimista” a doutrina monárquica, vertendo-a em “água cristalina da regeneração”. Mas se estamos perante um excelente breviário das razões que sustentam o pensamento monárquico, estamos também perante uma obra de um mestre da inconfundível escola de pensamento do Integralismo Lusitano que vai adiante e formula uma doutrina NEO-INTEGRALISTA no que se refere aos poderes do Rei.
Integralismo Lusitano
A expressão "Integralismo Lusitano" foi usada pela primeira vez por Luís de Almeida Braga numa revista de estudantes exilados na Bélgica na sequência da sua participação nas incursões monárquicas da Galiza, comandadas por Paiva Couceiro. Aquela revista tinha por título Alma Portuguesa e, no seu 2º número, com data de Setembro de 1913, podia ler-se debaixo da expressão “Integralismo Lusitano”:
“Retomemos por cima do Romantismo e do Classicismo a velha e sempre nova tradição da Idade Média, tempo de fé e de entusiasmos onde vive integralmente a alma eterna de Portugal em todos os seus impulsos e movimentos...”
Em 1913, Luís de Almeida Braga exprimia-se em termos filosófico-estéticos e religiosos. Pela correspondência que trocou com António Sardinha, sabemos que Almeida Braga reagia ao Saudosismo gnóstico de Teixeira de Pascoaes (no ano anterior publicara O Espírito Lusitano ou o Saudosismo) e ao movimento da Nova Renascença, entretanto criado pelo grupo de republicanos portuenses da revista A Águia.
O movimento da Nova Renascença - importa recordar - defendia que o regime republicano abria novas possibilidades de regeneração para Portugal, mas que esta só se concretizaria se fossem quebrados definitivamente os laços com a Igreja Católica. Almeida Braga, interpretando o recém-implantado regime republicano como uma nova etapa no processo de decadência, defendia que a regeneração só seria possível através de um retorno à integralidade do espírito católico que fizera Portugal. Essa uma visão partilhada com outros jovens exilados, como Domingos de Gusmão Araújo e Francisco Rolão Preto, que contestavam, no plano religioso e filosófico-estético, uma das expressões culturais da ofensiva anti-clerical e anti-religiosa desencadeada pelo novo regime.
O projecto filosófico-estético e religioso do Integralismo Lusitano, porém, depressa transbordou para o plano político. Em 1914, na revista Nação Portuguesa, publicada em Coimbra sob a direcção de Alberto de Monsaraz, a expressão «Integralismo Lusitano» designava já um índice de soluções políticas sob o título "monarquia orgânica, tradicionalista, anti-parlamentar”.
O projecto integralista recebera entretanto a adesão de jovens republicanos municipalistas desiludidos com a República (como António Sardinha) e de monárquicos que não se reviam na recém deposta Monarquia da Carta (como Hipólito Raposo). A encimar as matérias programáticas do índice apresentado, inscreviam-se dois sub-títulos, que eram duas tendências orientadoras: a) Tendência Concentradora; b) Tendência Descentralizadora.
Por “tendência concentradora” entendiam o “poder pessoal do Rei – Chefe de Estado”, no sentido que lhe fora atribuído por Gama e Castro - “o rei deve governar, mas não administrar”. A administração, que não se atribuía ao rei, incluía-se na “tendência descentralizadora”, entendida como exercício das liberdades próprias do corpo da Nação, que se deveria governar autonomamente nos seus diversos domínios de actividade - na Paróquia, no Município, na Província, passando pela Economia (empresas, corporações, sindicatos), pelo Ensino, pela Arte e pela Religião.
Em 1914, os integralistas apresentaram o referido índice de soluções políticas, mas o seu propósito não visava uma intervenção política na direcção da conquista do poder. Na sua perspectiva, não haveria uma verdadeira regeneração portuguesa sem que o Povo tivesse retomado as suas privativas instituições democráticas e sem que fosse lembrado aos próprios monárquicos o que fora a antiga Monarquia portuguesa; a regeneração portuguesa não seria possível enquanto os monárquicos não estivessem bem conscientes de que a Monarquia, deposta em 1910, fora o resultado de um lento processo de descaracterização e subversão dos princípios democráticos e populares da antiga Monarquia portuguesa.
Na perspectiva dos integralistas, a Monarquia da Carta fora deposta, porque, estando dominada pelos políticos das oligarquias partidárias, se tinha transformado num corpo estranho à Nação. E dois tinham sido os estrangeirismos responsáveis por essa descaracterização: o absolutismo Iluminista assente na teoria do “direito divino dos reis”, difundido em Portugal no tempo do Marquês de Pombal, mas também a sucedânea Monarquia da Carta, importada pelos liberais de novecentos.
Assim, tanto quanto reagir ao gnosticismo dos republicanos da Nova Renascença e promover o renascimento do espírito católico na alma dos portugueses, havia que trazer de novo à luz do dia os princípios políticos da antiga Monarquia portuguesa - os princípios que reconheciam os foros e as liberdades da República (das comunas urbanas, dos concelhos rurais, etc.), que estabeleciam as regras da sua representação em Cortes e definiam o conteúdo dos pactos que os Reis, sob pena de Deposição, juravam respeitar.
O brilhantismo e a combatividade intelectual de que os integralistas lusitanos bem cedo deram claro sinal, depressa os transportou para a ribalta política. As circunstâncias políticas e estratégicas criadas pela eclosão da Grande Guerra, em 1914, acabaram por projectá-los na direcção de um activo intervencionismo: em 1915, num ciclo de conferências na Liga Naval, surgem a denunciar o projecto imperial ibérico, então em franca expansão nos círculos próximos do rei Afonso XIII de Espanha; em Abril de 1916, com a entrada de Portugal na Guerra, decidem-se pela constituição de uma Junta Central e anunciam a transformação do Integralismo Lusitano em organização política.
Em 1918, os integralistas integravam já o bloco de forças apoiante do Sidonismo. O propósito de acolher uma representação socioprofissional no Senado de uma «República Nova» a instituir, tinha neles um profundo significado político: pôr fim ao monopólio da representação por intermédio de partidos ideológicos (regime parlamentar), permitindo a representação dos municípios, dos sindicatos operários, dos grémios profissionais e patronais, etc., era dar um primeiro passo no sentido do restabelecimento da democracia orgânica da antiga Monarquia portuguesa.
A «República Velha» dos partidos retornou após o assassínio do presidente Sidónio Pais, mas não sem que se fizesse sentir a reacção dos monárquicos mais afoitos, no Norte e em Lisboa (Monsanto): no Norte, os pronunciamentos militares culminaram com a proclamação da Monarquia, formando-se no Porto uma Junta Governativa do Reino; em Lisboa, os monárquicos chegaram a concentrar-se no Monsanto hasteando a Bandeira Azul e Branca.
Apesar da «Monarquia do Norte» ter declarado em vigor a Carta Constitucional, os integralistas lusitanos não deixaram de estar na primeira linha de combate, agarrando a parte prática e positiva da obra restauracionista - a restauração do Trono.
O desmoronar completo do “efémero castelo de cartas” dos vinte e cinco dias da «Monarquia do Norte» acabou por levar integralistas lusitanos ao exílio (como Luís de Almeida Braga e António Sardinha), ao hospital de S. José (como Pequito Rebelo e Alberto de Monsaraz, feridos em combate no Monsanto), ou à barra do tribunal, à prisão e ao desemprego (como Hipólito Raposo), mas isso não impediu que, pouco depois, retornassem à primeira linha do combate político. No Movimento Militar do «28 de Maio» de 1926, o Programa de Governo que o general Gomes da Costa apresentou em Conselhos de Ministros, no dia 14 de Junho, foi redigido por um republicano presidencialista, Trindade Coelho, mas em íntima colaboração com três destacados integralistas da Junta Central - Hipólito Raposo, Afonso Lucas e Pequito Rebelo; a substância política das 8 bases do Projecto Constitucional, então também apresentado por Gomes da Costa, definia um regime presidencial, mas assente numa representação nacional por delegação directa dos municípios, em duas Câmaras – Câmara dos Municípios e Câmara das Corporações.
É bem conhecido o imediato desfecho do «28 de Maio»: o general Gomes da Costa foi preso, destituído de presidente e deportado para os Açores. São menos conhecidas as consequências daquele desfecho no seio da hoste integralista: afastado Gomes da Costa, os mestres integralistas, não confiando naturalmente nos novos militares que chefiavam o Governo, pediram aos jovens que lhes estavam mais próximos a cessação de todo o apoio e colaboração com a Ditadura. Sucederam-se as dissensões: em 1927, desvincularam-se José Maria Ribeiro da Silva, Pedro Teotónio Pereira, Manuel Múrias, Rodrigues Cavalheiro, Marcelo Caetano, Pedro de Moura e Sá; em 1928, Manuel Múrias consumou a sua dissidência; em 1929, deu-se a ruptura definitiva de Teotónio Pereira e Marcelo Caetano, dissolvendo o “Instituto António Sardinha”; em 1930, deu-se a dissidência de João do Amaral.
Em 1931, ao consumar-se definitiva e publicamente a ruptura entre os mestres do Integralismo Lusitano e a Ditadura, e perante a referida sucessão de dissidências e deserções, Alberto de Monsaraz e Rolão Preto, in extremis, ainda tentaram recuperar alguma influencia no curso dos acontecimentos, suspendendo a reivindicação do Trono e autonomizando o Movimento Nacional-Sindicalista. O insucesso foi total. Tal como acontecera com parte significativa da "segunda geração" integralista, também parte da juventude entretanto atraída para o Nacional-Sindicalismo, que os integralistas pretendiam manter no campo do sindicalismo orgânico e das liberdades, acabou por se transferir para o campo estatista-autoritário do salazarismo emergente que, além do mais, oferecia melhores garantias de realização para ambições profissionais e pessoais.
Aderindo à 2ª República, parte das novas gerações formadas no Integralismo entrou em ruptura com os Mestres da Junta Central, mas tal não aconteceu com vários jovens que vêm a constituir as 3ª e 4ª gerações. Durante os anos 30 e 40, apesar da dispneia mental e do apertado cerco ao espírito, houve jovens que permanecem reunidos em torno de revistas como a Gil Vicente (sob a direcção de Manuel Alves de Oliveira) ou de editoras como a GAMA (sob a direcção de Leão Ramos Ascensão, Centeno Castanho e Fernando Amado). Mário Saraiva foi um desses jovens. Em 1932, ainda estudante na Universidade de Coimbra, onde se formou em Medicina, filiara-se no Movimento Nacional-Sindicalista. Depois daquele movimento ter sido infiltrado, desmantelado e, por fim, proibido por Salazar, Mário Saraiva permaneceu fiel aos princípios integralistas e veio a estrear-se como doutrinador monárquico por intermédio da editora GAMA, em 1944 – quando tinha 34 anos - ao publicar Claro Dilema – Monarquia ou República?
De pronto saudado pelos mestres integralistas Hipólito Raposo e Alberto de Monsaraz, Mário Saraiva participou depois na campanha restauracionista de 1951 (através do jornal O Debate) vindo a ter destacado desempenho na defesa do ideário integralista lusitano em célebre polémica («Uma Questão de Doutrina», publicada no jornal A Voz, entre 1954 e 1955) com alguns monárquicos apoiantes do salazarismo. Na segunda metade da década de 50, Mário Saraiva era já considerado como um dos máximos expoentes entre as novas gerações daquela escola de pensamento, ao lado de, entre outros, Afonso Botelho, Rivera Martins de Carvalho, Henrique Barrilaro Ruas.
A eclosão da guerrilha independentista nos territórios do Ultramar, em 1961, amainou a reivindicação monárquica, mas, quando a década de 60 se aproximou do fim, o Governo português encontrava-se perante o desafio de um conflito que, sem solução militar à vista, concorria para o descrédito na sua capacidade e para o aprofundamento de uma grave crise de confiança nas instituições. Mário Saraiva, ao lado de Rolão Preto e Henrique Barrilaro Ruas, assumiu então a liderança de várias iniciativas de monárquicos oposicionistas, como o movimento da Renovação Portuguesa ou a Editora Biblioteca do Pensamento Político, inaugurada com a publicação daquela que viria a ser a derradeira obra de Luís de Almeida Braga, Espada ao Sol.
O manifesto da Renovação Portuguesa, apresentado em Maio de 1969, salientava que à desordem constitucional da 1ª República sucedera um regime pessoal, “que duraria exactamente o que durasse a vida política do seu chefe”. Denunciava-se também “a inexistência de instituições capazes de ser servidas por homens comuns”, mas a situação política era bem resumida através de uma simples mas acutilante observação: “quando para os governados o Governo são «eles», alguma coisa está errada...”
Na Comissão Eleitoral Monárquica (C. E. M.), pouco depois organizada para disputar as eleições legislativas, foi possível fazer confluir organizações e personalidades claramente opostas à 2ª República: a Liga Popular Monárquica; o movimento Renovação Portuguesa; alguns elementos do «velho» Movimento Monárquico Popular (veterano das batalhas eleitorais de 1957, 1958, 1961 e 1965); e mesmo alguns franco-atiradores vindos do Centro Nacional de Cultura e da revista Cidade Nova. Porém, apesar da junção prática de tantos monárquicos que não renunciavam a servir, nem por isso a C. E. M. “deixou de se sentir abandonada pela grande massa monárquica”; se alguma coisa estava errada no regime da 2ª República, os monárquicos renovadores descobriam que, afinal, também no seu campo, algo não estaria bem.
Ora é precisamente nesse contexto que surge a 1ª edição da obra Razões Reais. Mário Saraiva integrava a Comissão Doutrinária da Causa Monárquica, e percebe-se o objectivo de vulgarização da obra: importava repor junto do grande público “um feixe de razões, tão simples como evidentes e decisivas”, da vantagem da suprema magistratura hereditária do Estado sobre a electiva, da vantagem da forma monárquica sobre a forma presidentista. Não deixava de ser retomada a denuncia de que ficara por resolver o problema de regime que a Ditadura do «28 de Maio» suspendera, mas também se reconhecia que estava afinal por travar um importante combate: o combate pela conquista das inteligências.
Actualidade da obra
A valia intrínseca da obra «Razões Reais» no combate das ideias, veio a superar largamente o contexto em que foi escrita, como se atesta pela sua divulgação no Brasil ou na tradução e edição em cirílico realizada por um diário de Sófia, na Bulgária.
Mário Saraiva colocou na entrada o claro dilema: Chefe de Estado eleito ou hereditário?
A resposta logo surge sonante e clara: entre a Chefia de Estado eleito ou hereditário a alternativa que se coloca é entre uma chefatura de partido, de facção, e uma chefatura nacional.
Ao longo dos seus breves mas incisivos capítulos, por intermédio de um seguro encadeamento lógico de raciocínios, resultam claramente desfeitos os preconceitos presidentistas e bem demonstradas as «Razões Reais», ao abordar-se problemas como o da unidade nacional, da competência directiva, da independência justiceira, da continuidade, da relação custo-benefício. Ao atingir o 12º Capítulo, surge uma pergunta capital – “Qual o Programa Monárquico?”
Eis a resposta de Mário Saraiva:
“Numa restauração do Poder Real, só um caminho haveria a seguir: convocar Cortes Gerais, amplamente e autenticamente representativas, e adoptar-se a Constituição que nestas fosse escolhida.”
“Não temos, portanto, que antecipadamente falar de um sistema político, económico e social como programa de uma futura Monarquia e ainda menos como condição do Rei. Temos, sim, de reclamar o Poder Real como a mais segura fiança de um regime nacional.”
Mas qual era a sua concepção do poder régio? Na sua perspectiva, e em concreto, que missão deveria desempenhar o Rei? Mário Saraiva tinha uma clara concepção do poder régio e no corpo da obra, sob o título «Governo Real», essa concepção é apresentada com meridiana claridade:
“A missão dos Reis é defenderem a Nação perante o Estado”, revelando inclusive a síntese inspiradora – “«Procurador dos descaminhos do Reino», intitulavam-se os nossos monarcas”.
A Media via do Integralismo Lusitano
Em 1914, ao apresentarem o seu índice de soluções políticas – sob o título “monarquia tradicional, orgânica, anti-parlamentar”, como referi – os integralistas partiam de uma sensata solução intermédia resumida na fórmula de Gama e Castro, “O Rei governa, mas não administra”, tirando lição dos seus imediatos antecedentes históricos: o demo-liberalismo desprestigiara e inutilizara a Monarquia, ao colocar o Rei na dependência da soberania das maiorias parlamentares, mas o absolutismo inutilizara igualmente a Monarquia ao fazer do Rei um “governante” absorvente, transformando-o num potencial ditador.
O ambiente político anárquico da 1ª República, porém, com a contínua luta entre partidos em disputa pelo poder - recorde-se que, em 16 anos, contaram-se 44 ministérios e 16 presidentes... -, veio depois progressivamente a reforçar nos integralistas o sentimento que exigia uma autoridade real a corrigir a instabilidade da governação.
O reforço desse sentimento que exigia a autoridade real, não deixará de crescer sob a 2ª República, se bem que por razões diversas. Ao reforçar-se o centralismo no Estado (com os vários partidos substituídos por um único partido), sem liberdades cívicas, e continuando asfixiadas as instituições privativas do povo capazes de garantir a sua autonomia administrativa (municípios, sindicatos, etc.), cresceu entre os integralistas a convicção de que se deveria confiar ao Rei, ao menos transitoriamente, um decisivo papel na área da governação. E foi assim que, em 1951, na última e definitiva proclamação pública dos fundadores do Integralismo, sob o título «Portugal Restaurado pela Monarquia», não houve reserva em afirmar-se: “O Rei governa a nação e administra-a por intermédio de ministros da sua escolha.”
Mas eis que, em 1970, Mário Saraiva surge a defender a necessidade de uma Suprema Magistratura Real – o Rei como defensor da Nação perante o Estado.
A afirmação do novo conceito foi pela primeira vez realizada em público no ano de 1961, quando Fernando de Sousa organizou a II Semana de Estudos Doutrinários em Coimbra. A tese tinha por título «Coordenadas do Poder Real», e vem incluído nesta 3ª edição, a par de um conjunto de Textos Complementares criteriosamente seleccionados por Jaime de Mello Saraiva e por Gonçalo de Sampaio e Mello, permitindo-nos captar hoje as primeiras expressões desse pensamento inovador. Ouçamos as palavras de Mário Saraiva, proferidas em 1961:
“Hoje em dia, nós temos, sobre os pensadores integralistas, a vantagem de conhecermos também, com todos os seus ensinamentos, a experiência dos governos de poder pessoal nos caudilhismos, nos cesarismos, nas mono-arquias, nos estatismos, nas várias formas e nos vários graus em que as ditaduras, afinal, têm sido exercidas, renegando o seu próprio nome; impõe-se-nos por isso meditar nessa dura experiência que vai continuando, e repensar a tese integralista que há meio século, em plena desordem política postulava: - «O Rei governa, mas não administra».”
Ao atingir o cerne da sua argumentação, Mário Saraiva afirmava:
“Governar é descontentar. Fenómeno natural, ninguém pode evitá-lo.
Quando o governo de um ministro se torna impopular, pede-se a substituição do ministro. Quando o governo de um presidente desagrada, elege-se outro, e a República continua.
Mas – e se quem governar for um Rei?...
Receio muito pela duração de uma Monarquia em que o rei fosse governante.”
A terminar, Mário Saraiva especificava “as duas características privativas da monarquia”: a primeira é “a personificação da unidade pátria, a representação nacional, total, global, no sentido em que a realeza não representando ninguém em especial, nenhum grupo, nenhuma classe, nenhum partido, representa a todos em geral, em cada momento, como na sequência viva da história”; a segunda é a “independência fundamental do poder real – o que o torna árbitro necessário e indispensável”.
Segundo Mário Saraiva, estas duas características privativas da monarquia, estes dons inestimáveis e que afinal definem a superioridade monárquica, não devem, não podem ser prejudicadas ou inutilizadas para se fazer do Rei um governante:
“O Rei não pode descer ao lugar que compete a um primeiro-ministro. A sua missão é mais alta e transcendente.
“A realeza não é propriamente uma chefatura: é uma magistratura.”
E foi assim que Mário Saraiva, situando-se no desenvolvimento da Media via entre Liberalismo e Absolutismo aberta pelo Integralismo Lusitano, apresentou em «Razões Reais» um contributo inovador que é de justiça reconhecer como uma doutrina neo-integralista dos poderes do Rei: enquanto na teoria monárquica do constitucionalismo liberal-cartista se dizia que “o rei reina mas não governa” e o Integralismo Lusitano havia inicialmente retomado a fórmula de Gama e Castro segundo a qual o “o rei governa, mas não administra”, Mário Saraiva vai adiante afirmar que o Rei não deve governar nem administrar, mas deve chefiar tudo o que não seja discutível no plano nacional – a Diplomacia, as Forças Armadas, a Justiça.
Ao atribuir ao Rei a Suprema Magistratura da República, Mário Saraiva realizou a destrinça entre governo e administração, rectificando, melhor dizendo actualizando, a primitiva proposta integralista, e no mesmo passo recuperando essa antiga e sempre nova fórmula da Monarquia Portuguesa na qual se definia o Rei como «o procurador dos descaminhos do Reino».
* * *
O mestre integralista Pequito Rebelo, assumindo as suas responsabilidades perante as novas manifestações do pensamento do discípulo, assegurava:
“Vindo à luz na Primavera de 1970, [ a obra Razões Reais ] é realmente um renovo doutrinário primaveril, bem ligado à velha cepa, fiel à sua natureza, à sua espécie, à sua raiz, mas ao mesmo tempo com o viço, a frescura, a singeleza das coisas novas, das coisas recém-nascidas”.
Tendo sido escrita por um discípulo reconhecido do Integralismo Lusitano, esta é na verdade uma obra da qual emerge naturalmente o filão mais profundo dessa escola de pensamento, esse que afirma que INTEGRAR quer dizer, rigorosamente, INTEGRAR A NAÇÃO TRANSVIADA NA DIRECTRIZ HISTÓRICA QUE A FORMOU E ENGRANDECEU. Retirando lição da experiência e da realidade em constante transformação, Mário Saraiva revelou-se aqui como um RENOVADOR que sabe que as fórmulas envelhecem como os homens, sendo preciso renová-las para que conservem frescura e vitalidade. Sem se deter na defesa de fórmulas vigentes ou passadas, rejeitando o conservadorismo político, assumiu-se plenamente como um TRADICIONALISTA, um pensador consciente de que a Tradição é um veio que liga acções humanas em tempos sucessivos, e que a desejada integração da Nação Portuguesa na directriz histórica que a formou e engrandeceu, não poderá realizar-se senão por intermédio de uma actualizada Solução Nacional:
- Rei – personificação da Pátria;
- Rei – procurador dos descaminhos do Reino;
- Rei – defensor da Nação perante o Estado.
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Creio que não é demais concluir insistindo, com Mário Saraiva: a República é a «Res publica», Coisa Pública, Coisa do Povo; durante séculos a República em Portugal teve um Monarca por regedor e defensor; e a República existia dentro da Monarquia.
Eis porque não é demais insistir retomando também aqui o convite que Mário Saraiva lançava aos monárquicos para que repudiassem a questão política nos termos fratricidas monárquicos contra republicanos tal como tem sido posta desde o século XIX:
“A diferença entre um «soi-disant» republicano e um de nós é fundamentalmente esta: ele quer para a República um Presidente periodicamente eleito; nós queremos que a República remate pela chefatura dinástica de um Rei”.
Tal como os mestres fundadores do Integralismo Lusitano, Mário Saraiva convidava, afinal, os monárquicos a assumirem a sua «Alma Republicana», e a reconhece-la naqueles que, embora presidentistas, tenham “o mesmo acrisolado interesse pela Coisa Pública”, “a consciência de que praticam um dever cívico na primazia que concordam em dar à Pátria”.
José Manuel Quintas
Em Janeiro de 2011, a obra "Razões Reais" foi reeditada pela Real associação de Lisboa. A apresentação foi realizada na Livraria Férin por Nuno Pombo, coadjuvado por João de Lancastre e Távora e Jaime Melo Saraiva. (video)