A herança de Garrett
António Sardinha
No seu regresso às velhas instituições concelhias e à hereditariedade emotiva da raça, o nosso Romantismo, através das figuras de Garrett e de Herculano, não é, de modo nenhum, a desorganização do sentimento
Garrett ia direito às nascentes profundas da nossa sensibilidade. (...)
em Portugal, na condição lírica do nosso ethos, é que reside um dos mais velhos títulos da sua independência.
Garrett ia direito às nascentes profundas da nossa sensibilidade. (...)
em Portugal, na condição lírica do nosso ethos, é que reside um dos mais velhos títulos da sua independência.
Na história do renascimento nacional hão-de de futuro arqueólogos e folcloristas da nossa terra ter o lugar de agradecimento que o seu trabalho incansável lhes conquistou para todo o sempre. Se a pátria se não se subverteu por completo na febre anarquizadora do Liberalismo, a eles se deve o esforço de maravilha que não deixou perder na babilónia dissoluta da política e do exotismo as características seculares do nosso povo. Extinta a vida provincial, mortos no urbanismo crescente os longos serões à lareira, o património lírico do tronco luso depressa se apagaria nos moldes uniformizadores duma odiosa compressão centralista, se ao génio esquecido dos Antepassados não acudisse a dedicação infatigável de meia dúzia de obreiros, no seu momento os únicos que puderam fixar as razões eternas da existência de Portugal.
Garrett assinalara no Romanceiro a necessidade duma larga acção governativa baseada nas preferências tradicionais da nacionalidade. O seu desejo mais ardente era o de incorporar o Constitucionalismo nessa ordem natural das coisas, de cujo respeito inviolável, viria, sem dúvida, a estabilização do regímen. Miragem apaixonada de romântico, Garrett lutaria desassombradamente debaixo da sua sedução generosa, - e lutaria com a crença de que os seus discursos e os seus livros brilham belamente cheios. Tais são os fundamentos do seu municipalismo, que é também o de Herculano. Não são outros os remorsos da sua consciência, ao confessar mais tarde, de pés para a sepultura, o arrependimento que lhe pesava na alma por haver colaborado nas reformas insensatas da Terceira.
No seu regresso às velhas instituições concelhias e à hereditariedade emotiva da raça, o nosso Romantismo, através das figuras de Garrett e de Herculano, não é, de modo nenhum, a desorganização do sentimento, que, - na frase incisiva de Pierre Lasserre -, classifica e define o romantismo francês. Debruçado na doçura ingénua dos Cancioneiros e com expressão literária em novelas como a de Bernardim, Portugal não deve às normas clássicas o prestígio e o vigor que no século XVII levaram a França à universalidade gloriosa do seu espírito. O Classicismo para nós, desde que excedeu a sua obra de disciplina intelectual, para se transmudar em cânon de inspiração literária, resultou manifestamente nos decalques parados dos vates da Arcádia, com a Dissertação Terceira, de Correia Garção, «sobre ser o principal preceito para formar um bom poeta procurar e seguir somente a imitação dos melhores autores da antiguidade». «Os Gregos e os Latinos, que dia e noite não devemos largar das mãos, estes soberbos originais, são a única fonte de que manam boas odes, boas tragédias, e excelentes epopeias». Assim se exprimia Correia Garção, traçando aos seus companheiros no Epitalámio e na Écloga as rotas seguras duma entrada certa no Pindo. É a contradição de quanto, realmente, traduz a força magnífica da poesia nacional através os sete séculos e meio da nossa jornada de povo.
Garrett abrangeu, por isso, a questão com uma alta clarividência critica, ao esboçar em ligeiras notas a sua teoria literária. Nas lições da velha Brígida estava o segredo do remoçamento imperioso da literatura portuguesa. Eis porque o poeta exclamava no canto III do D. Branca:
Nossas lindas ficções, nossa engenhosa
Mythologia nacional e própria
Tome enfim o lugar que lhe usurparam
Na lusitana antiga poesia,
De suas vivas feições, de sua ingénua,
Natural formosura despojada
Por gregos deuses, por espectros druídicos,
E com postiças, emprestadas galas
Arreada sem primor, rica sem arte.
Apelando para os desprezados tesoiros do Romanceiro, Garrett empenhava-se por tornar a moda romântica num movimento renovador da nossa esquecida autoctonia lírica. Não desaparecera por completo esse lirismo, apesar da secura formalista do modelo clássico. Verificamo-lo em toda a sua plenitude no caso típico de Rodrigues Lobo. Mandara nele a sugestão épica da Renascença e dera-nos o Condestabre. É um frouxíssimo arrastar de rimas, com relâmpagos de vez em quando, em que o poeta se desnatura e asfixia nas peias convencionalistas do poema. Mas oiçamos o apaixonado, - o contemplativo. E logo nos surge o rouxinol de Bernardim, a tortura de Crisfal, os adeuses de João Rodrigues Castelo Branco partindo-se, - as queixas doloridas da «gran coyta do corazon».
Mais próximos das raízes sentimentais do passado, os nossos poetas de Quinhentos temperaram ainda com as suas virtudes o classicismo inerte que nos viera de fora. Sá de Miranda vibra nas mágoas agoirentas da terra ao abandono. António Ferreira, embora chame a D. Dinis «das nossas musas rústicas amparo», aquece na Castro a impassibilidade helénica da Tragédia com o espantoso e enternecido Coro das moças de Coimbra, - não falando, claro, no elemento humano que na paixão do Infante agita todo o traçado arquitectónico da fábula. Quanto a Camões, nos seus sonetos a revoada lírica imprime-lhe aquela soberania incomparável que levou Elisabeth Barrett Browning a intitular um dos seus livros, - Sonets from the portuguese. E se há fogo nas suas estrofes, - lume divino, flama imortal, se a sua epopeia não é a epopeia morta do Tasso, nem das criações secundárias dos Seiscentistas, é porque não lhe falta igualmente o elemento humano. Esse elemento é a acção histórica dos Portugueses, de que o poeta participou e que na ardência do seu entusiasmo o induzia sinceramente a afirmar:
Ouvi; que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas:
As verdadeiras vossas são tamanhas,
Que excedem as sonhadas, fabulosas;
Que excedem Rodamonte, e o vão Rugeiro
E Orlando, inda que fora verdadeiro.
Interpretando, pois, o Romantismo no sentido nacional em que o tomava e defendia, Garrett ia direito às nascentes profundas da nossa sensibilidade. Nunca Portugal, pelas condições remotas da sua formação, se poderia fechar nos limites apertados do ideal clássico. O ideal clássico é, em relação à França, a regra coordenadora do seu intelectualismo estrutural. Criação política de uma dinastia, a França não é, como nós somos – um factor de natural elaboração. O Oceano, comandando vários agentes como, por exemplo, a distribuição dos ventos e das chuvas, produziu na vertente ocidental da Península o meio próprio em que Portugal se emoldurou e desenvolveu depois. A política dos Capetos, exercida habilmente pelas alianças e pelas anexações, originou a França por um processo bem diferente. A Renascença corresponde, desta maneira, às necessidades unificadoras de uma pátria recente, a quem escasseavam as qualidades do plasma primitivo. A feição racionalista e simétrica da inteligência francesa, tornando a sua poesia, ordinariamente, analítica e formal, achou na clareza generalizadora do Classicismo a norma segura da sua expansão e do seu florescimento. Ao contrário, em Portugal, na condição lírica do nosso ethos, é que reside um dos mais velhos títulos da sua independência. A tese do sábio arabista espanhol D. Julián Ribera y Tarragó sobre o cancioneiro de Abencuzman faz-nos supor que na poesia popular do Noroeste da Península se filia, inclusivamente, a genealogia do Provençalismo. O assunto é para debate largo. Enunciando-o apenas, ele ajuda-nos a considerar o Romantismo como sendo entre nós uma volta à sentimentalidade perdida da Grei. Palpitando-o com a sua excepcional agudeza, Garrett é bem o precursor da corrente que mais tarde Alberto de Oliveira baptizaria de neo-garrettismo. A desordem do sentimento e da imaginação que o romantismo francês significa só se introduz em Portugal com a baixa poesia ultra-romântica, para expirar de hipertrofismo na gordura verbalista da Velhice do Padre Eterno e da Morte de D. João [de Guerra Junqueiro, n. desta edição].
Ora o neo-garrettismo, desde que pretendesse refazer ampla e delicadamente a consciência da nacionalidade, carecia de sair do estrito terreno estético em que nas Palavras loucas [de Alberto Oliveira, n. desta edição] fora colocado. Punha-se mais alto o problema da Pátria Portuguesa! Punha-se nas suas instituições, punha-se no reconhecimento daqueles princípios, de cujo respeito a sua integridade e prestígio dependiam. Ainda aí não podíamos repelir a herança de Garrett. A poesia nativa do Romanceiro aproximara-o da nossa Idade-Média. Esse medievalismo ser-nos-ia salvador. Por ele se nos manifestava o «meio-vital» da nacionalidade, com a sua experiência bem vincada ao longo da nossa história. Mas o estrangeirismo prevaleceu. Prevaleceu a política apriorística de Mouzinho da Silveira, marchando na esteira do centralismo despótico do Estado napoleónico. Na fúria reformadora, nada se respeitou! A abstracção governativa impôs-se a Portugal de cima para baixo, com a indiferença seca dum conquistador. Desnacionalizada a política, desnacionalizou-se o pais. Ao Terreiro do Paço, na sua sanha destruidora, ajuntava-se agora o mal do século com o seu criticismo agudo, exercendo-se desaforadamente sobre os direitos sagrados de Portugal à sua autonomia. Negaram-nos tudo, - até a individualidade!
Entretanto, no eclipse que pesava sobre nós, uma meia dúzia de obreiros iluminados se destacou, de alvião em punho, para salvar da casa em ruínas o tesoiro escondido na pedra da lareira. São os arqueólogos, são os folcloristas. Vasculhando na poeira das civilizações defuntas, Martins Sarmento e Estácio da Veiga ligarão a génese da pátria a um ocidentalismo cada vez mais provado, donde nos sai, no seu sentido histórico, a árvore – de - geração de Portugal. Segue-se-lhes Santos Rocha. E atrás de Santos Rocha vem a Portugália, - verdadeiro pergaminho da nossa nobreza de povo. Lembro o ardor de Rocha Peixoto, curvo-me à desilusão de Ricardo Severo! Depois da Citânia, - necrópole minhota a que é preciso subir, para se rezar ao sol de Deus a oração da Raça! -, desenterram-se os castros do Norte, - encadeia-se a sua sociabilidade rude com os esplendores longínquos de Tirynto e de Mycenas. Se Herculano escrevera quase definitivamente a história do nosso municipalismo, o prefácio da nossa história escreviam-no esses pacientes e inspirados trabalhadores.
Por anos bastos de incompreensão e sorrisos desdenhosos, dos arraiais tumultuando à hirta nomenclatura científica, da escavação ao ar livre à monografia circunstanciada e sóbria, a consciência colectiva neles encontrou os seus únicos portadores. Enquanto uma folia macabra nos desgovernava de todo, Portugal viveu para as razões eternas do seu ser, graças a um grupo de homens de boa vontade, sem os quais não existiria já hoje nenhum vestígio de vida regional, nem a revivescência da alma colectiva se tornaria possível. Destacarei, a par dos arqueólogos, dois folcloristas, em quem se não apagou nunca o amor da sua pequenina pátria local. É um, Manuel Vieira Natividade, o outro, António Tomás Pires. Preparadores ignorados do nosso ressurgimento, perturbou-os aqui e além a influência, ou do pseudo-eruditismo dum Teófilo Braga, ou da incapacidade construtiva dum Leite de Vasconcelos. Mas nos materiais acumulados por ambos agita-se em estremecimentos de milagre o barro que hão-de cimentar amanhã, nos cavoucos antigos da nação, os alicerces dum novo Portugal.
Comovidamente o confesso aqui, ao recordar-me de António Tomás Pires, morto num ascender calcinado de Agosto, - faz agora exactamente cinco anos [1913-1918]. Entre os meus vinte leitores, talvez que nem seis lhe saibam o nome de cor. Todavia, à base do nacionalismo que apaixona hoje os moços de Portugal, António Tomás Pires é dos que mais merecem do nosso reconhecimento. Nada lhe escapou, - do adagiário oral às superstições obsoletas, da faceira musa popular aos serões austeros do bom-saber. Os seus Cantos populares portugueses abrangem dez mil cantigas, recolhidas pacientemente, numa faina paciente de beneditino. Nascido à sombra da Sé de Elvas, - como ele tanto gostava de dizer! -, não há pedra na denteada cidade fronteiriça, de que ele não resolvesse o enigma ou não penetrasse o mistério.
À claridade da sua candeia, da letra extinta dos códices acordaram os de antigamente, - mesteirais elevando um aqueduto, gente de guerra sofrendo assédios ásperos, com pão de bagaço por alimento e a peste por companhia. Do seu sacrifício obscuro fala o meu testemunho na sinceridade funda com que sempre o admirei. Mais duma dúvida grave da nossa história António Tomás Pires a solucionou. À sua investigação se devem documentos positivos fixando o quadro cronológico em que a vida de João Lobeira se engasta. A debatida questão do Amadis de Gaula recebeu assim de António Tomás Pires um subsídio importante e talvez decisivo.
A herança de Garrett, antes de transitar para as definições precisas duma doutrina, ciosamente a guardaram e zelaram, pois, como seus administradores, os arqueólogos e folcloristas da nossa terra! Quem se recordar do félibrige, reconhecerá a importância que teve no ressurgimento tradicionalista da França. Também na Alemanha a poesia se renovou, mergulhando nas nascentes ancestrais e tirando de lá, com Herder, os fundamentos dum nacionalismo resgatador. Não é outro o caminho que é necessário retomar entre nós, tanto social como intelectualmente. As nobres tentativas de Afonso Lopes Vieira dizem-nos a riqueza dessa lição abandonada.
Nosso mestre e nosso precursor, Garrett ordena-nos que cumpramos o seu testamento.Cumpri-lo é restituir-nos à posse de nós mesmos. E eu não sei, com franqueza, meus senhores, de destino mais belo e mais dominador para quem escute a voz do seu sangue e sinta Portugal pulsar-lhe nas veias!
António Sardinha,
Agosto de 1918 (ed. 1925).
[negritos acrescentados]
Garrett assinalara no Romanceiro a necessidade duma larga acção governativa baseada nas preferências tradicionais da nacionalidade. O seu desejo mais ardente era o de incorporar o Constitucionalismo nessa ordem natural das coisas, de cujo respeito inviolável, viria, sem dúvida, a estabilização do regímen. Miragem apaixonada de romântico, Garrett lutaria desassombradamente debaixo da sua sedução generosa, - e lutaria com a crença de que os seus discursos e os seus livros brilham belamente cheios. Tais são os fundamentos do seu municipalismo, que é também o de Herculano. Não são outros os remorsos da sua consciência, ao confessar mais tarde, de pés para a sepultura, o arrependimento que lhe pesava na alma por haver colaborado nas reformas insensatas da Terceira.
No seu regresso às velhas instituições concelhias e à hereditariedade emotiva da raça, o nosso Romantismo, através das figuras de Garrett e de Herculano, não é, de modo nenhum, a desorganização do sentimento, que, - na frase incisiva de Pierre Lasserre -, classifica e define o romantismo francês. Debruçado na doçura ingénua dos Cancioneiros e com expressão literária em novelas como a de Bernardim, Portugal não deve às normas clássicas o prestígio e o vigor que no século XVII levaram a França à universalidade gloriosa do seu espírito. O Classicismo para nós, desde que excedeu a sua obra de disciplina intelectual, para se transmudar em cânon de inspiração literária, resultou manifestamente nos decalques parados dos vates da Arcádia, com a Dissertação Terceira, de Correia Garção, «sobre ser o principal preceito para formar um bom poeta procurar e seguir somente a imitação dos melhores autores da antiguidade». «Os Gregos e os Latinos, que dia e noite não devemos largar das mãos, estes soberbos originais, são a única fonte de que manam boas odes, boas tragédias, e excelentes epopeias». Assim se exprimia Correia Garção, traçando aos seus companheiros no Epitalámio e na Écloga as rotas seguras duma entrada certa no Pindo. É a contradição de quanto, realmente, traduz a força magnífica da poesia nacional através os sete séculos e meio da nossa jornada de povo.
Garrett abrangeu, por isso, a questão com uma alta clarividência critica, ao esboçar em ligeiras notas a sua teoria literária. Nas lições da velha Brígida estava o segredo do remoçamento imperioso da literatura portuguesa. Eis porque o poeta exclamava no canto III do D. Branca:
Nossas lindas ficções, nossa engenhosa
Mythologia nacional e própria
Tome enfim o lugar que lhe usurparam
Na lusitana antiga poesia,
De suas vivas feições, de sua ingénua,
Natural formosura despojada
Por gregos deuses, por espectros druídicos,
E com postiças, emprestadas galas
Arreada sem primor, rica sem arte.
Apelando para os desprezados tesoiros do Romanceiro, Garrett empenhava-se por tornar a moda romântica num movimento renovador da nossa esquecida autoctonia lírica. Não desaparecera por completo esse lirismo, apesar da secura formalista do modelo clássico. Verificamo-lo em toda a sua plenitude no caso típico de Rodrigues Lobo. Mandara nele a sugestão épica da Renascença e dera-nos o Condestabre. É um frouxíssimo arrastar de rimas, com relâmpagos de vez em quando, em que o poeta se desnatura e asfixia nas peias convencionalistas do poema. Mas oiçamos o apaixonado, - o contemplativo. E logo nos surge o rouxinol de Bernardim, a tortura de Crisfal, os adeuses de João Rodrigues Castelo Branco partindo-se, - as queixas doloridas da «gran coyta do corazon».
Mais próximos das raízes sentimentais do passado, os nossos poetas de Quinhentos temperaram ainda com as suas virtudes o classicismo inerte que nos viera de fora. Sá de Miranda vibra nas mágoas agoirentas da terra ao abandono. António Ferreira, embora chame a D. Dinis «das nossas musas rústicas amparo», aquece na Castro a impassibilidade helénica da Tragédia com o espantoso e enternecido Coro das moças de Coimbra, - não falando, claro, no elemento humano que na paixão do Infante agita todo o traçado arquitectónico da fábula. Quanto a Camões, nos seus sonetos a revoada lírica imprime-lhe aquela soberania incomparável que levou Elisabeth Barrett Browning a intitular um dos seus livros, - Sonets from the portuguese. E se há fogo nas suas estrofes, - lume divino, flama imortal, se a sua epopeia não é a epopeia morta do Tasso, nem das criações secundárias dos Seiscentistas, é porque não lhe falta igualmente o elemento humano. Esse elemento é a acção histórica dos Portugueses, de que o poeta participou e que na ardência do seu entusiasmo o induzia sinceramente a afirmar:
Ouvi; que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas:
As verdadeiras vossas são tamanhas,
Que excedem as sonhadas, fabulosas;
Que excedem Rodamonte, e o vão Rugeiro
E Orlando, inda que fora verdadeiro.
Interpretando, pois, o Romantismo no sentido nacional em que o tomava e defendia, Garrett ia direito às nascentes profundas da nossa sensibilidade. Nunca Portugal, pelas condições remotas da sua formação, se poderia fechar nos limites apertados do ideal clássico. O ideal clássico é, em relação à França, a regra coordenadora do seu intelectualismo estrutural. Criação política de uma dinastia, a França não é, como nós somos – um factor de natural elaboração. O Oceano, comandando vários agentes como, por exemplo, a distribuição dos ventos e das chuvas, produziu na vertente ocidental da Península o meio próprio em que Portugal se emoldurou e desenvolveu depois. A política dos Capetos, exercida habilmente pelas alianças e pelas anexações, originou a França por um processo bem diferente. A Renascença corresponde, desta maneira, às necessidades unificadoras de uma pátria recente, a quem escasseavam as qualidades do plasma primitivo. A feição racionalista e simétrica da inteligência francesa, tornando a sua poesia, ordinariamente, analítica e formal, achou na clareza generalizadora do Classicismo a norma segura da sua expansão e do seu florescimento. Ao contrário, em Portugal, na condição lírica do nosso ethos, é que reside um dos mais velhos títulos da sua independência. A tese do sábio arabista espanhol D. Julián Ribera y Tarragó sobre o cancioneiro de Abencuzman faz-nos supor que na poesia popular do Noroeste da Península se filia, inclusivamente, a genealogia do Provençalismo. O assunto é para debate largo. Enunciando-o apenas, ele ajuda-nos a considerar o Romantismo como sendo entre nós uma volta à sentimentalidade perdida da Grei. Palpitando-o com a sua excepcional agudeza, Garrett é bem o precursor da corrente que mais tarde Alberto de Oliveira baptizaria de neo-garrettismo. A desordem do sentimento e da imaginação que o romantismo francês significa só se introduz em Portugal com a baixa poesia ultra-romântica, para expirar de hipertrofismo na gordura verbalista da Velhice do Padre Eterno e da Morte de D. João [de Guerra Junqueiro, n. desta edição].
Ora o neo-garrettismo, desde que pretendesse refazer ampla e delicadamente a consciência da nacionalidade, carecia de sair do estrito terreno estético em que nas Palavras loucas [de Alberto Oliveira, n. desta edição] fora colocado. Punha-se mais alto o problema da Pátria Portuguesa! Punha-se nas suas instituições, punha-se no reconhecimento daqueles princípios, de cujo respeito a sua integridade e prestígio dependiam. Ainda aí não podíamos repelir a herança de Garrett. A poesia nativa do Romanceiro aproximara-o da nossa Idade-Média. Esse medievalismo ser-nos-ia salvador. Por ele se nos manifestava o «meio-vital» da nacionalidade, com a sua experiência bem vincada ao longo da nossa história. Mas o estrangeirismo prevaleceu. Prevaleceu a política apriorística de Mouzinho da Silveira, marchando na esteira do centralismo despótico do Estado napoleónico. Na fúria reformadora, nada se respeitou! A abstracção governativa impôs-se a Portugal de cima para baixo, com a indiferença seca dum conquistador. Desnacionalizada a política, desnacionalizou-se o pais. Ao Terreiro do Paço, na sua sanha destruidora, ajuntava-se agora o mal do século com o seu criticismo agudo, exercendo-se desaforadamente sobre os direitos sagrados de Portugal à sua autonomia. Negaram-nos tudo, - até a individualidade!
Entretanto, no eclipse que pesava sobre nós, uma meia dúzia de obreiros iluminados se destacou, de alvião em punho, para salvar da casa em ruínas o tesoiro escondido na pedra da lareira. São os arqueólogos, são os folcloristas. Vasculhando na poeira das civilizações defuntas, Martins Sarmento e Estácio da Veiga ligarão a génese da pátria a um ocidentalismo cada vez mais provado, donde nos sai, no seu sentido histórico, a árvore – de - geração de Portugal. Segue-se-lhes Santos Rocha. E atrás de Santos Rocha vem a Portugália, - verdadeiro pergaminho da nossa nobreza de povo. Lembro o ardor de Rocha Peixoto, curvo-me à desilusão de Ricardo Severo! Depois da Citânia, - necrópole minhota a que é preciso subir, para se rezar ao sol de Deus a oração da Raça! -, desenterram-se os castros do Norte, - encadeia-se a sua sociabilidade rude com os esplendores longínquos de Tirynto e de Mycenas. Se Herculano escrevera quase definitivamente a história do nosso municipalismo, o prefácio da nossa história escreviam-no esses pacientes e inspirados trabalhadores.
Por anos bastos de incompreensão e sorrisos desdenhosos, dos arraiais tumultuando à hirta nomenclatura científica, da escavação ao ar livre à monografia circunstanciada e sóbria, a consciência colectiva neles encontrou os seus únicos portadores. Enquanto uma folia macabra nos desgovernava de todo, Portugal viveu para as razões eternas do seu ser, graças a um grupo de homens de boa vontade, sem os quais não existiria já hoje nenhum vestígio de vida regional, nem a revivescência da alma colectiva se tornaria possível. Destacarei, a par dos arqueólogos, dois folcloristas, em quem se não apagou nunca o amor da sua pequenina pátria local. É um, Manuel Vieira Natividade, o outro, António Tomás Pires. Preparadores ignorados do nosso ressurgimento, perturbou-os aqui e além a influência, ou do pseudo-eruditismo dum Teófilo Braga, ou da incapacidade construtiva dum Leite de Vasconcelos. Mas nos materiais acumulados por ambos agita-se em estremecimentos de milagre o barro que hão-de cimentar amanhã, nos cavoucos antigos da nação, os alicerces dum novo Portugal.
Comovidamente o confesso aqui, ao recordar-me de António Tomás Pires, morto num ascender calcinado de Agosto, - faz agora exactamente cinco anos [1913-1918]. Entre os meus vinte leitores, talvez que nem seis lhe saibam o nome de cor. Todavia, à base do nacionalismo que apaixona hoje os moços de Portugal, António Tomás Pires é dos que mais merecem do nosso reconhecimento. Nada lhe escapou, - do adagiário oral às superstições obsoletas, da faceira musa popular aos serões austeros do bom-saber. Os seus Cantos populares portugueses abrangem dez mil cantigas, recolhidas pacientemente, numa faina paciente de beneditino. Nascido à sombra da Sé de Elvas, - como ele tanto gostava de dizer! -, não há pedra na denteada cidade fronteiriça, de que ele não resolvesse o enigma ou não penetrasse o mistério.
À claridade da sua candeia, da letra extinta dos códices acordaram os de antigamente, - mesteirais elevando um aqueduto, gente de guerra sofrendo assédios ásperos, com pão de bagaço por alimento e a peste por companhia. Do seu sacrifício obscuro fala o meu testemunho na sinceridade funda com que sempre o admirei. Mais duma dúvida grave da nossa história António Tomás Pires a solucionou. À sua investigação se devem documentos positivos fixando o quadro cronológico em que a vida de João Lobeira se engasta. A debatida questão do Amadis de Gaula recebeu assim de António Tomás Pires um subsídio importante e talvez decisivo.
A herança de Garrett, antes de transitar para as definições precisas duma doutrina, ciosamente a guardaram e zelaram, pois, como seus administradores, os arqueólogos e folcloristas da nossa terra! Quem se recordar do félibrige, reconhecerá a importância que teve no ressurgimento tradicionalista da França. Também na Alemanha a poesia se renovou, mergulhando nas nascentes ancestrais e tirando de lá, com Herder, os fundamentos dum nacionalismo resgatador. Não é outro o caminho que é necessário retomar entre nós, tanto social como intelectualmente. As nobres tentativas de Afonso Lopes Vieira dizem-nos a riqueza dessa lição abandonada.
Nosso mestre e nosso precursor, Garrett ordena-nos que cumpramos o seu testamento.Cumpri-lo é restituir-nos à posse de nós mesmos. E eu não sei, com franqueza, meus senhores, de destino mais belo e mais dominador para quem escute a voz do seu sangue e sinta Portugal pulsar-lhe nas veias!
António Sardinha,
Agosto de 1918 (ed. 1925).
[negritos acrescentados]
O tema dos diferentes ideais e expressões dos romantismos francês e português, aqui apresentado por António Sardinha segue a par, entre os mestres integralistas, de uma clara percepção das diferenças entre o Integralismo Lusitano e a Action française, como Hipólito Raposo virá a explicar em Dois nacionalismos. L'Action française e o Integralismo Lusitano (1925).
Sardinha expõe aqui essa concepção com muita clareza. O Estado francês é uma criação do Renascimento, expressando um ideal clássico e um intelectualismo estrutural - foi a criação política de uma dinastia, habilmente realizada através de alianças e anexações. O Estado português - o Reino de Portugal - é essencialmente uma criação Medieval, resultando de um lento processo de Reconquista cristã e que virá a revelar-se formado na crise do Século XIV - 1383-85 - ao estabelecer-se uma nova dinastia assente numa aliança entre os Rei e os Municípios.
Em Portugal, na interpretação de Sardinha, houve inclusive factores naturais de elaboração: "O Oceano, comandando vários agentes como, por exemplo, a distribuição dos ventos e das chuvas, produziu na vertente ocidental da Península o meio próprio em que Portugal se emoldurou e desenvolveu depois." A criação da França "corresponde às necessidades unificadoras de uma pátria recente, a quem escasseavam as qualidades de um plasma primitivo. A feição racionalista e simétrica da inteligência francesa, tornando a sua poesia, ordinariamente, analítica e formal, achou na clareza generalizadora do Classicismo a norma segura da sua expansão e do seu florescimento. Ao contrário, em Portugal, na condição lírica do nosso ethos, é que reside um dos mais velhos títulos da sua independência. A tese do sábio arabista espanhol D. Julián Ribera y Tarragó sobre o cancioneiro de Abencuzman faz-nos supor que na poesia popular do Noroeste da Península se filia, inclusivamente, a genealogia do Provençalismo. O assunto é para debate largo. Enunciando-o apenas, ele ajuda-nos a considerar o Romantismo como sendo entre nós uma volta à sentimentalidade perdida da Grei. Palpitando-o com a sua excepcional agudeza, Garrett é bem o precursor da corrente que mais tarde Alberto de Oliveira baptizaria de neo-garrettismo. A desordem do sentimento e da imaginação que o romantismo francês significa só se introduz em Portugal com a baixa poesia ultra-romantismo."
J.M.Q.
Sardinha expõe aqui essa concepção com muita clareza. O Estado francês é uma criação do Renascimento, expressando um ideal clássico e um intelectualismo estrutural - foi a criação política de uma dinastia, habilmente realizada através de alianças e anexações. O Estado português - o Reino de Portugal - é essencialmente uma criação Medieval, resultando de um lento processo de Reconquista cristã e que virá a revelar-se formado na crise do Século XIV - 1383-85 - ao estabelecer-se uma nova dinastia assente numa aliança entre os Rei e os Municípios.
Em Portugal, na interpretação de Sardinha, houve inclusive factores naturais de elaboração: "O Oceano, comandando vários agentes como, por exemplo, a distribuição dos ventos e das chuvas, produziu na vertente ocidental da Península o meio próprio em que Portugal se emoldurou e desenvolveu depois." A criação da França "corresponde às necessidades unificadoras de uma pátria recente, a quem escasseavam as qualidades de um plasma primitivo. A feição racionalista e simétrica da inteligência francesa, tornando a sua poesia, ordinariamente, analítica e formal, achou na clareza generalizadora do Classicismo a norma segura da sua expansão e do seu florescimento. Ao contrário, em Portugal, na condição lírica do nosso ethos, é que reside um dos mais velhos títulos da sua independência. A tese do sábio arabista espanhol D. Julián Ribera y Tarragó sobre o cancioneiro de Abencuzman faz-nos supor que na poesia popular do Noroeste da Península se filia, inclusivamente, a genealogia do Provençalismo. O assunto é para debate largo. Enunciando-o apenas, ele ajuda-nos a considerar o Romantismo como sendo entre nós uma volta à sentimentalidade perdida da Grei. Palpitando-o com a sua excepcional agudeza, Garrett é bem o precursor da corrente que mais tarde Alberto de Oliveira baptizaria de neo-garrettismo. A desordem do sentimento e da imaginação que o romantismo francês significa só se introduz em Portugal com a baixa poesia ultra-romantismo."
J.M.Q.