Acerca do Integralismo Lusitano
Aqui se transcreve a polémica que Raul Proença, do grupo da Seara Nova, travou com Alberto de Monsaraz ACERCA DO INTEGRALISMO LUSITANO. De Raúl Proença, com justiça, se pode dizer que os integralistas receberam, em 1921, um “ataque leal, sincero, de peito descoberto” [1] ...
Naquela época, a forma mais comum de denegrir o Integralismo Lusitano consistia em dizer-se que este era uma cópia da Action française, colocando Raúl Proença essa ideia no centro do seu ataque. Alberto de Monsaraz aproveitou a oportunidade para esclarecer as diferenças essenciais entre a Action française e o Integralismo Lusitano, que afinal radicavam nas diferentes épocas e processos de formação nacional; a francesa ocorrera no quadro do renascimento, sendo o nacionalismo francês de feição neoclássica; a portuguesa ocorrera no período medieval, sendo o nacionalismo português de feição neomedieval. Embora houvesse pontos programáticos comuns, como a defesa da Instituição Real na chefia do Estado e de uma descentralização política - reagiam ambos a regimes "republicanos" essencialmente oligárquicos e centralistas - as doutrinas do poder régio tinham distintas origens e feições, de pendor mais absolutista no caso da monarquia francesa, de pendor mais popular no caso português, segundo o modelo da "monarquia limitada pelas ordens".
As faltas de compreensão de Raúl Proença tinham relação direta com o desconhecimento que revelara acerca das fontes essenciais do Integralismo Lusitano, que são expostas por Alberto de Monsaraz. Foram acrescentados destaques em negrito.
Este ataque de Raúl Proença ao Integralismo Lusitano - seria uma cópia da Action française - será acolhido na historiografia mais superficial por via de Carlos Ferrão, João Medina, Franco Nogueira, entre outros.
Franco Nogueira é um caso muito particular por ter atribuído a Oliveira Salazar e ao seu regime político - ao Estado Novo - uma configuração conceptual sui generis. Nogueira escreveu que o Estado Novo seria "medularmente nacionalista", querendo com isso significar que, além de patriótico, seria também tradicionalista, "procurando encadear-se na história de Portugal, retomando os grandes valores nacionais". Nesse aspecto, e na sua opinião, a sua matriz estaria "no pensamento cultivado no seminário de Viseu, afervorado no Colégio da Via Sacra, aperfeiçoado doutrinalmente no Integralismo Lusitano. Além de tradicionalista, este nacionalismo tem de Portugal uma visão de grandeza e de função histórica no mundo: é providencial. Neste plano, reflecte as ideias da Action Française e de Charles Maurras." (Franco Nogueira, Salazar, vol. II, Coimbra, 1977, pp. 206-207). Em Oliveira Salazar teria assim havido um provindencialismo reflectindo ideias francesas, de um francês como Maurras. É possível que Franco Nogueira tenha entendido bem a origem das ideias de Oliveira Salazar, ajudando-nos a entender os seus equívocos a respeito das origens e natureza do pensamento político dos integralistas.
Durante algum tempo, os integralistas também se equivocaram a respeito de Oliveira Salazar. Em Julho de 1930, quando Oliveira Salazar era ainda apenas Ministro das Finanças, os integralistas julgaram que seria possível avançar com ele para uma restauração de Portugal, ao menos para uma restauração da República, quando ele se declarou contrário às ficções partidárias como base de uma representação nacional (Oliveira Salazar - Princípios Fundamentais da Revolução Política). Ao tornar-se presidente do Conselho de Ministros, porém, Salazar adoptou o projecto do grupo da Seara Nova e criou o partido da União Nacional, vindo depois a instituir um regime de partido único nos moldes do fascismo. O conflito de ideias entre Oliveira Salazar e os fundadores do Integralismo Lusitano revelou-se doravante muito profundo, reflectindo-se em insanáveis conflitos políticos. Em 1940, a denuncia da Salazarquia por parte de Hipólito Raposo, no seu livro Amar e Servir, resultou mesmo na sua prisão e deportação para o Açores.
13 de Dezembro de 2024 - J. M. Q.
"Não somos retrógrados, nem somos conservadores - não queremos voltar atrás, nem conservar o que está -; somos, sim, reacionários e renovadores, - reagimos contra o presente tal qual é e desejamos restabelecer, não o passado que tivemos, mas o presente que hoje teríamos, se influencias não portuguesas nos não houvessem desviado do rumo natural da nossa evolução." - Alberto Monsaraz
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Índice
Raul Proença, Acerca do Integralismo Lusitano
Resposta de Alberto de Monsaraz, Mondando na "Seara Nova"
Faltas Bibliográficas
Faltas de Compreensão
Mais "0" menos "0"
Integralismo e Classicismo
Catolicismo e Integralismo
A nossa linguagem mais lúcida em boca alheia
Ensinando os ignorantes
Conclusão
Réplica de Raul Proença
POLÉMICA (Alberto de Monsaraz e Raul Proença)
ACERCA DO INTEGRALISMO LUSITANO [2]
Dezembro de 1921
I
O QUE É O INTEGRALISMO
Bibliografia
Luís de Almeida Braga. O Culto da tradição. 1916.
Caetano Beirão. Uma Campanha Tradicionalista. 1919.
Félix Correia. A Última Quimera 1918.
Alberto Monsaraz, editor. Cartilha do operário. 1919 - Cartilha monárquica. 1919.
António Sardinha. O Valor da Raça, 1915.
Luís Teixeira Neves. A Crise da Democracia,1919.
A. Xavier Cordeiro. O Problema da Vinculação, 1917.
A Monarquia, jornal. 1917
Nação Portuguesa, revista.
A Questão ibérica, obra colectiva. 1916. (Colaboração de António Sardinha, Hipólito Raposo, Luís de Freitas Branco, José Pequito Rebelo, Rui Ulrich, Adriano Xavier Cordeiro, Vasco de Carvalho e Luís de Almeida Braga).
Antes de discutirmos o integralismo lusitano, mister é explicar em que ele consiste. Julgamos ser essa a única maneira inteligente e honesta de contraditar uma doutrina. A adopção deste método impedir-nos há de incorrer em três êrros igualmente funestos. Um é o de fazermos a discussão duma doutrina de que os leitores não tomaram exato conhecimento por uma prévia vista de conjunto; a exposição parcelar, à medida que as necessidades da crítica o exigissem, não poderia substituir em caso algum essa visão integral. Desarticulados os diferentes elementos dum sistema de ideias, não se compreendem as suas mútuas relações, o sistema continua, como sistema, a ser ignorado: poderemos conhecer os membros do seu corpo, não conheceremos a sua alma. Outro erro é o de estabelecer como provada a hipótese, sempre sujeita a controvérsias, de que estamos na plena posse dos princípios que pretendemos combater; de fechar, por assim dizer, a discussão sobre a interpretação pessoal que fazemos das ideias dos nossos adversários. Uma questão de método e de modéstia intelectual nos obrigava, antes de mais nada, a fazer da nossa própria interpretação um objeto de controvérsia. Não se desse o caso de que no decurso da polémica nos arguissem de alicerçarmos a nossa crítica sobre uma ignoratio elenchi, e estarmos simplesmente a combater os fantasmas da nossa imaginação. O outro erro, finalmente, consistiria na possibilidade de fazermos incidir a discussão sobre os pormenores e os acidentes, sobre afirmações ocasionais e de pura circunstância. Não são tais ou tais palavras ilógicas ou contraditórias dos srs. integralistas; tais ou tais erros históricos; tais ou tais sofismas e argumentos de advogado; tal ou tal incompreensão de determinada doutrina científica, que nos propomos refutar, pensando assim ilusoriamente ter refutado o integralismo. Não é demonstrando a surdez dum homem que nós provaremos, que êsse homem é cego. Só nos preocuparão os princípios básicos, centrais, essenciais do integralismo. Fácil nos seria desfazer em pó muitas das afirmações de pormenor dos camelots da reação. Mas a poeirada que assim ergueríamos não esconderia no fundo a nossa impotência em atacar o que há de visceralmente estrutural no credo político a que nos opomos? Este método determina simultaneamente uma economia e uma convergência de esforços: nem nos perdemos no acidente, nem erramos nunca o alvo. É o próprio alvo que a nossa exposição fixa e delimita. Por outro lado este método é uma imposição dessa perfeita lealdade de consciência que é o atributo essencial dos aristocratas da verdadeira democracia. Deixemos aos reaccionários as suas armas de dois gumes recrutadas nos velhos arsenais do sofisma. Seja a suprema limpidez cristalina do espírito que analisa e discute o nosso mais alto privilégio - o de aqueles que continuam a fazer do livre exame a sua atitude crítica. Afastamo-nos assim das velhas normas da polémica nacional, que teve em Camilo o seu mais alto corifeu. Mas não ambicionamos, por nossa parte, a glória de tradicionalistas. Procuramos acima de tudo ser em Portugal um dos mais humildes, mas também dos mais firmes professores da moralidade de consciência. Se a alguma aristocracia queremos pertencer, é precisamente à aristocracia da boa consciência.
Têm-se dividido as opiniões dos nossos leitores sobre a necessidade e urgência desta crítica do integralismo. Segundo uns, ela já devia estar iniciada, pelo simples facto de no primeiro número da «Seara», em resposta a um eco da «Monarquia», termos afirmado, sem fixar prazo algum, que discutiríamos nestas colunas as ideias pelicanistas. Demos a alguns dos nossos leitores a impressão de que estávamos faltando a uma promessa. Que palavras nossas lhes deram o direito de supor semelhante coisa? Não será a sua pressa simplesmente a sua impotência a recear a nossa? -Segundo outros, era a própria necessidade da discussão que se punha em causa. E para isso praticava-se a injustiça de negar talento e cultura a todos os elementos do integralismo. E afirmava-se que a nova seita política não tinha o incremento e a importância que eu parecia atribuir-lhe. Esgrimindo contra os gigantes, era a minha fantasia que aumentava a essas proporções os pobres moinhos de vento.
Ora a verdade é que nem todos os integralistas são destituídos desse talento e dessa cultura que lhes querem absolutamente negar. Se quási todos êles, pessoalmente, nada valem - e já aqui o afirmei -, se a ignorância de alguns vai até ao ponto de fazer de Hobbes e de Hume filósofos do século XIX (cf. Teixeira Neves, A crise da democracia, p. 76-77), e de nos apresentar Darwin como um precursor do positivismo, ao lado de Bacon e Descartes (ef. Caetano Beirão, Uma campanha tradicionalista, p. 45), tendo assim uma estranha noção da cronologia dos pensadores e das doutrinas, a verdade é que Sardinha, sendo incontestavelmente um cabotino, tem certo talento literário, e que Pequito, embora acamarade com periquitos, é um especialista de valor. O grupo todo manifesta, além disso (e estas altas virtudes lhe não podem ser negadas) uma unidade perfeita de vistas, uma absoluta solidariedade moral e um pertinaz espírito combativo que são a sua glória e a sua força. - Demais, fazendo a análise e a discussão do «integralismo lusitano», temos a clara consciência de que não fazemos mais que analisar e discutir as ideas fundamentais do reaccionarismo francês que tem por epónimos Maurras, Barrès, Tour du Pin, Henri Vaugeois, Valois e outras amas sêcas dos camelots du Roi. Como mostraremos em um dos artigos consagrados a esta doutrina, não há uma só idea integralista que não tenha pago na Alfândega direitos de importação. Trata-se, pois, dum movimento mais largo que um simples movimento nacional: é contra as hostes todas da Reacção, contra a politique du fait, que nós temos de nos bater. Deixar em silêncio toda uma filosofia da acção política, com arraiais assentes nas mais diversas nações do mundo, será cómodo, mas nem será honesto, nem conveniente ao futuro da democracia. - E é falso que a nova ideologia não tenha conquistado uma área enorme de inteligências juvenis. Eu falo de aquelas que felizmente se preocupam com os problemas morais e políticos, e não dessa vasa pôdre da mocidade que apenas atende aos seus interesses materiais e à solicitação dos seus baixos apetites. Essa mocidade não conta, nem pro nem contra a democracia; nem é para essa mocidade indigna do seu próprio nome que democratas e integralistas erguem o seu pendão doutrinário. Excluindo essa escória da juventude, a parte restante está consideravelmente atacada do virus reaccionário. Pretender negar êste facto é querer prosseguir no velho, vício da mentira em que todos nós embalamos o nosso sono mortal...
Discutir o integralismo é, pois, uma operação necessária de profilaxia intelectual. Ferida a democracia pelos actos dos que se dizem seus partidários e pelas palavras dos que são seus inimigos, era preciso que alguém erguesse entre nós o facho da esperança democrática, e opusesse ao torpe realismo republicano e à sofistica ideologia conservadora novas afirmações da consciência republicana, alargando-lhe os quadros, abrindo-lhe os horizontes e mostrando aos olhos dos que acordam para a vida do sentimento coletivo perspetivas mais longínquas e mais puras.
Ditas estas palavras de preâmbulo, entremos no domínio integralista (Pola lei e pola grei - em prol do comum e aproveitança da terra) com os olhos erguidos sóbre o Pelicano real.
A crer os integralistas[3] se quisermos exprimir a oposição essencial, irredutível, entre democracia e monarquia integral, não o podemos fazer melhor que filiando essa divergência em métodos opostos da filosofia política: a política das ideias e a política do facto. É este o diferencio íntimo, psicológico, que corresponde a duas atitudes antagónicas do espírito.
A democracia é a política das ideias. Não atendendo à experiência histórica da humanidade no seu conjunto e à de cada nação em especial, ela pretende modelar a vida de cada país pelas normas abstractas da razão, impondo-se violenta e artificialmente a realidades indestrutíveis. A democracia é assim uma constante violação dos factos concretos, um permanente desrespeito da vida essencial das nações. Mais do que a inssureição do indivíduo contra a espécie, como a definia Comte, ela é verdadeiramente a insurreição da razão contra a natureza, dos princípios contra os factos.
O seu primeiro êrro, de que derivam a maior parte dos outros, é a adoção do método do livre exame, que aniquila todas as disciplinas tradicionais, faz tábua rasa do passado e põe a cada geração o problema duma nova criação social. O livre exame, filho do espírito protestante, dissemina no mundo os germens da anarquia. Com a dissolução dos dogmas, perverte todos os instintos sociais, ataca a essência de toda a vida social, origina a rebelião do indivíduo contra as condições fundamentais dessa própria vida. As normas que dirigem uma sociedade deixam de ser o fruto duma longa experiência secular, para passar a ser as fantásticas abstracções dos cérebros individuais. O indivíduo arroga-se direitos; quando, no fundo, não tem senão deveres. A verdade é que o homem não pode ser livre. Deve obediência a seus pais enquanto forem vivos, porque «os filhos não são mais do que um prolongamento dos pais». Deve obediência aos seus superiores e ao seu Rei; assim como aos dogmas tradicionais da sua raça. Com a ilusão da liberdade, veio ao mundo a ilusão da igualdade, desmentido absoluto das realidades concretas, pois que não há no mundo dois seres inteiramente iguais. A natureza é essencialmente anti-igualitária: em toda ela vemos a realidade das diferenças, dos privilégios e da hierarquia- E com a negação do facto histórico da tradição, a democracia inventou o maior dos absurdos teóricos: a noção do progresso nas consciências individuais e nas formas da vida social. A ilusão do progresso é a doutrina de Satan revoltando-se contra Deus. «A crença no progresso baseia-se inicialmente na ideia grosseira da bondade natural do homem. Ora, provado como está que os instintos humanos são maus e que dêsses maus instintos resulta naturalmente a necessidade dos quadros sociais, fica destruída pela base a ideia que tantos milhares de espíritos tem atraído e sacrificado.» Demais as leis biológicas de René Quinton vieram dar a esta grosseira ilusão o seu golpe definitivo. O sábio francês mostrou que a vida procura sempre manter as condições do seu meio originário. Se queremos viver, temos, pois, de ser fisiologicamente reaccionários. A vida não é outra coisa senão uma afincada manobra de permanência; e a evolução não significa mais que a procura persistente, sempre activa e voluntária, por vezes complicada e capciosa, dos meios próprios para manter a fixidez do primitivo meio. Cada nação assenta assim «num inviolável meio vital, o qual consiste no equilíbrio constante das condições especiais de que o agregado brotou, valendo a alteração delas pela queda insanável do organismo.» A primeira condição, pois, de toda a política scientífica é respeitar as primitivas instituições de cada povo, os seus antigos costumes, crenças e tradições, aquêles que constituíram o seu «meio originário». E não era já um axioma da sociologia moderna que os mortos governam os vivos, o que equivale a dizer que uma nação não poderá viver se não fôr condicionada pelos ditames da sua tradição - se os berços não fôrem embalados sôbre os túmulos?
Amar os nossos inimigos - o pensamento dos nossos inimigos e a crítica dos nossos inimigos - é o verdadeiro sinal do espírito combativo. Que imporia que êles me guardem ressentimento e rancor? Eu preciso deles como do ar que respiro; eu agradeço-lhes o contribuírem para a clarificação das minhas ideas, e para a fortificação dos meus motivos de viver; eu afirmo-lhes, para além de todas as minhas disputas, a minha fraternidade e a minha lealdade de inimigo - R. P.
O cosmopolitismo é outra perigosa ilusão da «política das ideas». A verdade é que não há povos iguais. É impossível fazer-se, pois, «a fusão de todos os povos numa nação só a que se chama Humanidade». O dever mais imperativo das nações é considerarem-se como fins em si mesmos, e não como meios de realização de qualquer ideal estranho a elas próprias, e transcendendo as suas fronteiras. A monarquia opõe, pois, ás tendências utopistas do cosmopolitismo, a doutrina positiva do egoismo nacional.
Mas o vício fundamental da democracia é o sufrágio popular. É o domínio do número sôbre a qualidade; a escolha dos competentes pelos incompetentes; a vontade de indivíduos não especializados pronunciando-se sôbre questões a que são completamente estranhos. «Na verdade, ninguém poderá ocupar-se da lavoura não sendo agricultor, da indústria não sendo industrial, do exército não sendo militar, do trabalho fabril não sendo operário ou patrão, da instrução não sendo professor.» A representação nacional nas democracias é a maior burla com que se tem iludido o espírito do povo.
Sendo em democracia todos iguais, não pode nela subsistir disciplina. Querendo todos mandar como soberanos, ninguern há que se preste a obedecer. Sendo, como os indivíduos, também iguais todas as regiões, todas as províncias, todos os concelhos, a democracia é o regímen da centralização. Não há talvez maior utopia em sciência administrativa do que julgar que a democracia poderá algum dia descentralizar.
Se todas estas miragens racionalistas pudessem ter realização e o mundo social lhes não oferecesse a cada passo, nas suas realidades irredutiveis, uma invencível resistência, o regimen da democracia conduziria à negação de todos os laços sociais, à anarquia, ao caos colectivo. Mas como assim não é, a democracia conduz na prática à negação dos próprios conceitos em que se estriba e formam o seu espírito teórico; e por isso a sua liberdade leva a uma tirania mais dura, a sua igualdade a uma oligarquia mais devoradora, a soberania de todos à soberania do menor número, o regimen do sufrágio ao regimen dos caciques, o cosmopolitisino a um estado de guerra mais atroz e permanente.
A estas ilusões mortíferas, o integralismo opõe uma doutrina absolutamente positiva e científica - doutrina de vida e salvação. Longe de se basear nos princípios abstractos da razão pura, como a democracia, êle parte do estudo das realidades. Para êle não há ideias, há leis científicas e verdades de facto. É a experiência e a história, essa experiência do passado, que nos dão a conhecer as leis por que se hão de reger as sociedades. Enquanto a República é o regimen em que as mesmas instituições e as mesmas leis são impostas pela razão para a índole de povos diversos, a rnonarquia é o regimen do facto, e as suas leis são o produto da experiência particular de cada nação.
Sendo assim, a unidade social não é, para o integralismo, o indivíduo, esse átomo da consciência que não vale senão no grupo e pelo grupo de que faz parte. Nenhum complexo pode ser dividido em seres de natureza diferente; os elementos duma sociedade nacional hão de ser necessariamente sociedades menos complexas. Essa unidade social é a família, constituída pelos vivos, pelos mortos e pelos nascituros, e cujos interesses se prolongam, pois, no tempo e são mais alguma coisa que a soma dos interesses dos seus membros. A monarquia integral fará, pois, tudo para a fortificar, e não para a dissolver, como tem feito a democracia, cuja tendência mais profunda consiste em desagregar a sociedade numa poeira de átomos. O divórcio, a liberdade de testar e a igualdade na sucessão são atentados aos interêsses mais imediatos da família; não se concebe, pois, sociedade organizada e viável em que êsses elementos de dissociação sejam admitidos. «A monarquia combate a perfilhação dos adulterinos e incestuosos («filhos do crime») que, provindo de faltas contrárias à lei e à moral, não devem ser reconhecidos por lei. Defende a «indissolubilidade conjugal como a forma mais perfeita do amor», e a vinculação da terra como o meio de dar à família uma base de continuidade territorial fixa e com ela estabilidade económica, coesão moral e permanência. Proíbe a liberdade de testar e limita à terça a quota livre dos pais.
As famílias agrupam-se em municípios dotados de autonomia administrativa. A Câmara Municipal deve ser de representação econômica, técnica ou profissional, e nunca política. E ainda nas eleições municipais o sufrágio restringir-se há apenas aos que são chefes de família, e que assim não representam apenas o seu interesse individual, mas o da família inteira.
Os municípios reunem-se por sua vez em províncias, administradas por Juntas Provinciais, dotadas também, como o município, de autonomia económica. Essas Juntas são constituídas pela delegação de todos os municípios da circunscrição, pela representação dos sindicatos operários e patronais, pelos directores das escolas e dos institutos de utilidade pública, emfim por todos aquêles que representam interesses corporativos e sociais organizados.
Incorrer-se-ia portanto num erro de apreciação afirmando que o integralismo não é um sistema representativo, pois que admite a representação administrativa e profissional. Mas não menos errado seria chamar-lhe, por êsse facto, um regímen democrático, pois que não há democracia onde não há representação da opinião pública e a sua fiscalização. É o que vamos vêr na constituição da Assembleia Nacional. Por esta substitui-se ao parlamento actual, de pura representação política e eleito pelo sufrágio popular, um organismo de representação de classes, recrutado exclusivamente no seio dessas classes para a representação dos seus interesses. E ainda um carácter fundamental distingue o actual parlamento dessa assembleia: enquanto aquêle tem funções deliberativas, o voto da Assembleia Nacional é puramente consultivo, tendo por única função além da aprovação dos impostos e do orçamento, «a consulta sôbre a aplicabilidade, na prática, das leis que os ministros e os respectivos conselhos técnicos elaboram». A função legislativa deixa, pois, de ser atribuída aos representantes da nação, dos grupos e das classes, para ser apenas função duma aristocracia vitalícia da inteligência e do saber técnico, constituída pelo Rei entre os nomes de maior prestígio. Nunca em caso algum a vontade da Assembleia Nacional, que está já longe de representar princípios e finalidades políticas, sendo apenas a voz dos interesses de grupo, nunca em caso algum a vontade dessa Assembleia se pode sobrepôr à vontade esclarecida dos autocratas dos conselhos técnicos: ela tem de limitar-se, em tudo e por tudo, à simples missão de ponderar e de esclarecer.
Acima de todos êstes organismos representativos e destas juntas dos homens de bom saber há, como chefe natural da Nação, o Rei hereditário. E é na transmissão hereditária do poder do Rei que consiste precisamente a maior superioridade da monarquia. «Ninguem escolhe o Rei, como ninguem escolhe o próprio pai para lhe obedecer.» O simples facto do nascimento já dá ao Rei amplas garantias de bom govêrno. A natureza fabrica governantes mais economicamente e mais perfeitamente numa raça de governantes que numa raça de proprietários ou juristas: no próprio sangue trazem à nascença as qualidades que os impõem. Filho de rei sabe reinar. Além disso a sua educação especializada habilitado superiormente para o desempenho da função a que o destino o chamou. A continuidade do exercício do mando ainda aumenta nele a capacidade directiva. Mas não poderá o Rei exercer essa capacidade em prejuizo dos interesses colectivos? Isso é impossível. «Para a intenção nacional guiar sempre a vontade do Rei, basta que êle seja bom pai de família, pois o seu interesse e o dos seus descendentes identifica-se com o interesse nacional... Um Rei pensa: pensa e deve pensar; e raramente se engana... Se por doença ou outra qualquer causa o Rei se revela incapaz, há, para suprir a sua acção, o recurso da regência, que é sempre exercida por alguem que deseja servir o interesse da dinastia, ou seja, o bem público.»
O poder pessoal do Rei é soberano. Escolhe livremente os seus ministros e os conselhos que os assistem e elaboram as leis, ministros e conselhos que não ficam dependentes de nenhuma sanção e de nenhuma vontade a não ser a sanção e a vontade exclusivas do Rei: «Na paz e na guerra, dentro e fóra das fronteiras, o Rei personaliza a Nação, a sua vontade é soberana, e nenhum poder mais alto se lhe impõe, embora ela deva ser sempre esclarecida pelo conselho dos órgãos competentes». «Esse poder é ilimitado, é arbitrário? Será. É na verdade, menos ilimitado e arbitrário do que o poder paternal, que se não limita nem arbitra pelo contrôle do agrupamento familiar».
Neste sistema, qual é o lugar conferido à questão social? Resolvida pelas próprias soluções da monarquia orgânica. Cada classe constitui-se em sindicatos autónonios. Entre os capitalistas e os trabalhadores estabelece-se o contracto colectivo de trabalho. O trabalho é necessário para produzir. De forma que entre um e outro há uma comunidade de funções. Um sem outro nada é.» O operariado deve, nestas circunstâncias, confinar-se nos seus interesses profissionais, sem se envolver em lutas políticas, na tarefa utópica da reorganização da sociedade. Tarefa utópica, porque o nivelamento das classes é contrário à própria natureza das coisas. Tarefa utópica, porque a hierarquia é a condição de toda a vida social. Tarefa utópica, porque a supressão da propriedade privada representaria a supressão de todas as molas da actividade. E com o ser utópica, absurda e monstruosa, porque «se o pai transmite a vida aos filhos, e se tem o dever de velar por êles durante toda a vida, evidentemente que também possui o direito de transmitir o que adquiriu com o seu trabalho, para que não sintam a miséria com a sua falta». Assim fica resolvida, para o integralismo, a questão social. O comunismo e o colectivismo são o produto mental de espíritos tarados, paralisados no meio do seu desenvolvimento fisiológico, produto que foi explorado em seguida pela finança judaica, que não pretende outra coisa senão apoderar-se, durante os motins, duma porção importante da fortuna pública e privada. É o espírito de ganância do grupo judaico que alimenta hoje os partos febris da utopia revolucionária.
Assim está na Monarquia orgânica, tradicional e anti-parlamentarista a cura radical dos nossos males. Estes, ao contrário do que afirmam certos doutrinários do liberalismo, não estão nos homens, mas nas ideas e no regimen. É às ideas democráticas, é ao regimen republicano que cabe a responsabilidade da nossa decadência. A Monarquia é, pelo contrário, a solução necessária e suficiente de todos os problemas, o lugar geométrico de todas as medidas de salvação nacional. Democracia e Nação, Democracia, e Justiça, Democracia e Exército, Democracia e Autoridade são conceitos que se excluem. Pelo contrário, quem diz Nação, Justiça, Exército, Autoridade, diz ipso facto Monarquia. Tudo demonstra a verdade lógica do integralismo.
Assim é destruida a obra da Revolução, filha do protestantismo e do livre exame, e que representa na nossa casa o domínio do «estrangeiro do interior». Todos os princípios liberalistas e igualitários são o produto de doutrinas germano-francesas. São ideas de invasão. Deveriam ser êles, integralistas, os primeiros a estabelecer na fronteira da inteligência portuguesa o verdadeiro cordão sanitário. Entramos de ora avante na plena posse dos nossos destinos, das nossas tradições, das nossas crenças e das características originais da nossa raça. Depois das «medidas purgatórias» da sua critica e da sua higiene intelectual, voltará a haver novamente um Portugal dos portugueses...
Nos próximos números veremos qual a parte de verdade que há no integralismo e até que ponto se justificam as suas pretensões de originalidade.
Raul Proença
(RESPOSTA DE ALBERTO DE MONSARAZ)
[4]
Amar os nossos inimigos - o pensamento dos nossos inimigos e a critica dos nossos inimigos - é o verdadeiro sinal de espírito combativo.
Que importa que êles me guardem ressentimento e rancor? Eu preciso deles como do ar que respiro; eu agradeço-lhes o contribuírem para a clarificação das minhas ideas e para a fortifficação dos meus motivos de viver,- eu afirmo-lhes, para além de todas as minhas disputas, a minha fraternidade e a minha lealdade de inimigo. R. P.
I
PREAMBULO
Sob a égide destas palavras solenissimas, gravadas à maneira de lapide no centro duma página, inicia a revista republicana Seara Nova, no seu último numero - 24 de Dezembro de 1921 -, um largo estudo critico do Integralismo Lusitano e do movimento de ideias que em torno dele se formou e cresceu.
Firma este primeiro artigo o sr. Raul Proença, que assina em abreviatura R. P. talqualmente a Republica Portuguesa costuma arautizar-se aos quatro ventos da fama, desde o papel selado à fachada dos monumentos publicos - cá estou eu!
Esta coincidência simbolica mostra à evidencia como o nosso imprevisto contraditor se acha bem identificado, mental e burocraticamente, com a caranguejola politica que nos governa e desgoverna.
E posto isto, à laia de preambulo, temos logo de afirmar que muito nos apraz, nós que dia a dia nos gastamos na acção jornalistica e politica impulsionadora do nosso movimento, podermos discutir ideias com um adversario que se diz fraternal e leal inimigo nosso e, cremos supor, manterá sempre na polémica aquela correcção propria a um homem de pensamento.
O sr. Raul Proença começa por afirmar que, para que os seus leitores possam fazer um juizo exacto da discussão e aplaudi-lo, ao fim, com conhecimento de causa, quando ele reentrar, vitorioso, no silencio, sobre os escudos dos seus pares - é indispensavel citar-lhes a bibliografia integralista e fazer-lhes uma exposição sintética das nossas doutrinas.
Concordamos em principio; mas para tanto seria forçoso: 1º) que a bibliografia fosse completa; 2º) que a exposição estivesse perfeita. Ora tal não sucede, como vamos ver.
FALTAS BIBLIOGRAFICAS
Na bibliografia, sem já nos referirmos aos clássicos do legitimismo, nossos mestres, que vêm citados em quasi todos os folhetos de propaganda integralista e cuja leitura, sobretudo a do Novo Principe de Gama e Castro, hoje por nós reeditado, prova à evidência que, antes dos políticos reaccionarios franceses, já tinhamos em Portugal importantíssimas fontes da nossa corrente de ideias - sem já nos referirmos a esta omissão bibliografica do sr. Proença, queremos salientar que lhe faltaram, entre as obras integralistas citadas: O Sentido do humanismo de Hipolito Raposo, A Crise da Democracia de Armando da Silva; A Monarquia é a Restauração da Inteligência de Rolão Preto além de varios artigos e folhetos de propaganda politica, como os de João do Amaral no Aqui d'EI-Rei na Ideia Nacional e na Restauração.
FALTAS DE COMPREENSÃO
Ao lado destas omissões, há inexatidões flagrantes, que visto não significarem má fé, denotam uma leviandade lamentável da parte de alguem que se propõe criticar com ideias um movimento de ideias. Assim, por exemplo, a passagem em que se afirma a ignorancia do nosso amigo Teixeira Neves, porque este teria declarado no seu livro Crise da Democracia que Hobbes e Hume foram filosofos do seculo XIX. Isto não é exacto. A paginas 76 e 77 do referido trabalho, paginas que o sr. Proença cita, mas que parece não ter lido, escreve Teixeira Neves textualmente o seguinte.
«O Século XIX a que poderíamos chamar, com verdade, o século dos grandes envenenadores, foi materialista como Hobbes racionalista como Renan e Strauss; individualista, como Bastiat e Smith; livre-pensador como Haeckel scéptico como Hume.
MAIS "0" MENOS "0"
Esta formula como, empregada pelo nosso amigo na sua exposição, mostra bem que ele não considerava, alguns dos filosofes citados, filosofos do seculo XIX, aliás teria empregado a proposição com, muito mais propria nesse caso. A falta dum O à direita duma palavra é, por vezes, tão grave como a falta dum 0 à direita dum número. Se é verdade a Seara Nova receber um largo subsidio do estado republicano, tome cautela o sr. Proença com esses erros de visão, porque se arrisca a aceitar notas de 10 escudos em vez de notas de 100 e, quando os tipografos protestarem, terá de ir empenhar o proprio talento, para podermos continuar esta amena discussão.
Quanto à alusão feita ao sr. Caetano Beirão tambem poderíamos responder-lhe, mas visto esse senhor se ter afastado ha tempos da nossa organização politica, preferimos não o fazer, não vá ele supor que a nossa defeza é menos completa e menos sincera por essa facto. Tudo é possivel da parte de quem andou tão incorrectamente comnôsco.
Ele, que está vivo e são, dirá de sua justiça onde lhe aprouver e quando intenda.
Feitas estas indispensaveis reflexões, vejamos propriamente a exposição que o senhor Raul Proença fez da doutrina integralista e os erros que cométe.
INTEGRALISMO E CLACISSISMO
- O Integralismo Lusitano, como o seu nome o indica, pretende reformar integralmente a vida social portuguesa, adaptando ás condições da existencia moderna, tudo quanto no passado engrandeceu o nosso nome e pedra, a pedra, isto é, ano a ano, criou a nossa Nacionalidade e dictou a nossa Historia. Todos os elementos desnacionalizantes são postos de parte como nocivos. Não somos retrogrados, nem somos conservadores - não queremos voltar atrás, nem conservar o que está -; somos, sim, reaccionarios e renovadores, - reagimos contra o presente tal qual é e desejamos restabelecer, não o passado que tivemos, mas o presente que hoje teríamos, se influencias não portuguesas nos não houvessem desviado do rumo natural da nossa evolução.
Assim consideramos o movimento humanista da Renascença como o primeiro grande solavanco sofrido nessa marcha evolutiva. Com o alvorecer e, sobretudo, com o raiar deslumbrador da Idade Moderna, desviamo-nos da terra, da boa grei portuguesa, que a conquista de Marrocos deveria prolongar naturalmente além do estreito, para nos lançar-mos na aventura das descobertas, donde trouxemos o corpo da Pátria, em caixão de oiro, na mais lamentável decomposição; centralizámos o poder publico, à maneira de Luiz XI e lsabel Católica, trocando assim a monarquia limitada pelas ordens, produto do génio nacional, pela monarquia absoluta, que só teve a desculpá-la a figura imensa do primeiro grande rei que a encarnou; abandonamos os motivos populares do nosso lirismo para nos lançar-mos na admiração absorvente da cultura clássica e as cortes eruditas dos príncipes italianos foram transplantadas para o Paço do Rei Venturoso.
Os tradicionalistas franceses encontram na cultura classica, que lhes constituiu definitivamente a lingua e lhes fez florescer nas letras os grandes homens do grande século, a expressão maxima do seu equilíbrio nacional.
Comnosco deu-se o contrario. O classicismo para nós é apenas interessante e proveitoso como disciplina intelectual. Nada mais. E assim, ao passo que os maurrasianos se dizem neo-classicos e encontram em Maurras espirito pagão dentro do Catolicismo, um admiravel artista e político da Renascença, nós outros integralistas consideramo-nos neo-medievos e vamos procurar nas instituições originarias da patria, nas primitivas formas literarias da lingua, que Silva Gaio e sobretudo Lopes Vieira tão genialmente, direi tão mediumnimicamente evocam e traduzem, a forte seiva da arvore ancestral, que hoje tentamos fazer reflorir ao sol doirado e sob o ceu azul de Portugal.
A nada disto se refere o sr. Raul Proença na sua critica de clichés, fotografica e estreita, parcelar e fragmentaria. Podéra, se ele não cita e, naturalmente não conhece o Sentido do Humanismo de Hipolito Raposo.
CATOLICISMO E INTEGRALISMO
Um dos pontos fundamentais do nosso programa, tão fundamental como o do poder pessoal do Rei, é o revigoramento da fé catolica esmorecida; o prestígio moral da Igreja a restabelecer para que a Patria, creada moralmente por ela, como politicamente o foi pela Monarquia, possa encontrar nessas duas grandes instituições revigoradas e adaptadas à nossa epoca energias novas para ressuscitar, viver e progredir. Á igreja devemos as ordens religiosas e militares que ajudaram a conquista e a cristianização da terra; devemos-lhe a inquisição, que nos livrou da reinvasão do perigo judaico, que hoje assoberba todos os governos e colabora em todos os motins; devemos-lhe as missões ultramarinas, sobretudo essa admiravel Companhia de Jesus, que tanto se opôs à empresa de África, tarde e a más horas empreendida e com a qual só Castela aproveitou, essa portuguesissima Companhia de Jesus que, durante a ocupação castelhana, soube manter o culto da língua e da pátria sempre vivo, lá longe, no império ultramarino em decomposição; devemos-lhe, finalmente, à igreja Católica, o espirito de resistência anti-maçónico que até à ultima defendeu a Pátria, de 28 a 36 dos assaltos repetidos de maus portugueses, de gorra com maus estrangeiros, que, vencendo por fim, nos conduziram à apagada e vil tristeza dos nossos dias. Uma ou outra excepção de caracter pessoal, mesmo entre o alto clero, não pode diminuir a obra extraordinaria da resistência catolica ao maçonismo invasor.
Pois o sr. Raul Proença nem tocou no problema religioso, como se o Integralismo Lusitano florescesse entre maometanos ou entre budistas.
A incompatibilidade absoluta entre a religião catolica e a democracia, um dos motivos que nos leva, para restabelecer o predomínio da Igreja, a atacar a republica, não merece ao sr. Proença uma unica palavra. É na verdade um critico consciencioso e perfeito. Pois se ele mete-se a criticar-nos, coitado, e não conhece, visto não os citar, os belos artigos de João do Amaral publicados sobre a questão religiosa na primeira série da revista Ideia Nacional?
A NOSSA LINGUAGEM MAIS LÚCIDA EM BOCA ALHEIA
to ao restparte cop a a frase os nossos livros de propaganda, parte servindo-se volta e meia das nossas proprias palavras, lá vae expondo, confórme póde, o ponto de vista integralista sob as questões politica, administrativa e familiar. Frases inteiras, longos períodos inteiros, por vários dentre nós escritos em varias ocasiões, «destacam-se» ao fundo do ecran, onde o sr. Proença procura exibir-nos ao publico, antes de nos sovar.
Nada teriamos com esses processos criticos e até concordariamos que dificilmente o sr. Proença conseguiria traduzir as nossas ideias melhor do que com as nossas palavras - se esse inverosímil contraditor não viesse declarar em nota pesporrentamente o seguinte: Devemos observar que o nosso esforço constante por pôr ordem e clareza, nas ideias nos levou a dar à doutrina integralista, na exposição que dela aqui fazemos um pouco mais de coerência e lucidez que o que ela revela em geral aos seus tratadistas (isto é espantoso!) Mas fazendo muitas vezes a diligência de penetrarmos no espirito dos nossos adversarios, temos a consciencia de não termos adulterado uma só das suas ideias.
O publico que julgue, ao reler a critica da Seara Nova da encantadora. modestia e verdade que nestes periodos se contem. Ora claro está que o sr. Proença não soube penetrar no fundo do nosso espirito só dando aspectos isolados do nosso programa, pretendendo até identificar-nos com a Action française etc., etc. Quanto a não ter adulterado ideias, também não é bem exato.
Por exemplo: em certa altura o sr. Proença refere-se aos nossos autocratas dos conselhos tecnicos, junto dos quais a assembléia nacional tem a simples missão de ponderar e de esclarecer. Ora intende-se por autocrata um senhor absoluto, livre de qualquer constituição, que tiranize os povos a seu bel-prazer. Como estão longe disso esses honrados e competentes funcionarios de nomeação régia, que são responsáveis pelos seus actos perante o Rei! Nem mesmo o nosso Rei de poder pessoal é um autocrata limitada na sua esfera de acção por todos os orgãos da descentralizão, quanto mais os funcionarios publicos que ele nomeia.
A assembléia nacional tem só voto consultivo, mas nem precisa ter outro para de facto deliberar, sem que por isso se considere omnipotente. Os governos, não caindo no parlamento, não tem interesse algum em fazer passar os projectos tal como foram elaborados primitivamente. Aceitam todas as alterações propostas pelos interessados, caso não briguem com outros legitimas interesses opostos. Para arbitro lá está a pessoa do Rei, com todas as condições que essa funcção requer - independência, imparcialidade, brandura.
Vê, sr. Proença, que não só não aprofunda o nosso pensamento, mas também deturpa, por não as haver compreendido, as nossas ideias?
Basta por hoje. Ficamos aguardando a critica do sr. Proença à parte de mentira que, segundo afirma terminando, existe no Integralismo para opôr a uma parte de verdade que tambem lhe reconhece.
Agora já não poderá servir-se das nossas palavras, para ser mais... lucido do que nós.
Perdeu pé. Cá estamos para o salvar quando se fôr afogando. Gui-Grand publicou dois livros sobre a doutrina de Action Française um deles expondo-a: La phylosophie nacionaliste, em que é na verdade luminoso; outro rebatendo-a: La phylosophie syndicaliste, em que o autor mete os pés pelas mãos, numa confusão e numa incoerência lamentaveis. Oxalá ao sr. Proença suceda o contrario, procurando macaquear Gui-Grand não fique apenas, em face de nós, um tristissimo Gui-Petit.
Alberto Monsaraz
(Réplica de Raul Proença)[5]
P.S. Em artigo da Monarquia, de 3 de Janeiro, que só agora chegou a meu conhecimento, pretende o sr. Conde de monsaraz levantar algumas objecções à exposição que fiz da doutrina integralista. Tratando-se de objecções desta natureza, entendo que é esta ocasião de me referir a elas. Diz S. Ex.ª:
1.º Que começo por afirmar que «para que os (meus) leitores possam fazer um juizo exacto da discussão... é necessário citar-lhes a bibliografia integralista.» Em parte alguma do meu artigo eu faço semelhante afirmação. O sr. conde delira. A bibliografia que apresento, e antecede o próprio artigo, sem neste fazer a ela a mais pequena alusão, não pretende ter outro valor senão o de documento comprovativo das afirmações por mim feitas, como os textos que me serviram para neles fundar a minha discussão: são as peças justificativas de todo o processo, o corpo de delito, se assim nos podemos exprimir em relação a uma doutrina de que nos consideramos como adversários.
2.º Partindo de aquela afirmação, de todo o ponto falsa, não é para maravilhar que S. Ex.ª pretenda tirar efeitos dialécticos da sua asserção fantasiosa e escreva que «para tanto seria forçoso que a bibliografia fôsse completa». Como, porém, não foi meu intento, dar aos leitores a «bibliografia integralista», mas as obras que me serviram de texto, não era obrigado a obedecer a quaisquer pruridos de bibliografia exaustiva. Por isso o critico não citou o Sentido do humanismo de Raposo, que bem conhece, e o trabalho de Rolão Preto, que está lendo. Postas as coisas neste pé, só uma objecção era possível contra a bibliografia que apresentei. o ela não incluir obras essenciais para a inteira compreensão do integralismo. Partindo dum ponto de vista errado, não tenta essa objecção o sr. conde de Monsaraz. E dificil seria tentá-la, quando é evidente que bastaria eu citar a Monarquia, jornal em que se tem exposto e reexposto todos os principias integralistas, para ter citado o essencial. Sendo assim, se algum defeito há a apontar à minha bibliografia, não é a insuficiência, mas a generosa prolixidade.
3º Que há no meu preâmbulo «faltas de compreensão». E do plural que S. Exª faz uso; mas afinal vem a apurar-se que se trata de uma por junto. É quando eu atribuo ao sr. Teixeira Neves a suposição de que Hobbes e Hume são filósofos do século XIX. Transcrevamos a passagem incriminada: «O século XIX, a que poderíamos chamar com verdade o século dos grandes envenenadores, foi materialista, como Hobbes; racionalista, como Renan e Strauss; individualista, como Bastiat e Smith; livre-pensador, como Haeckel; seéptico, como Hume.» Eu pregunto a todo o leitor de boa fé se, ante um texto dêste teor, não adquire a certeza de que o autor imagina serem Hobbes e Hume filósofos do século XIX. Pois não é dos envenenadores dêste século que êle nos pretende falar? Faz sentido que, para exemplificar que êsse século foi o dos envenenadores por excelência cite, ao lado dos «envenenadores» do século XIX, «envenenadores» de outros séculos? Porquê «materialista como Hobbes» e não «materialista, como Büchner», se, quando se nos fala de racionalismo, não é Descartes que vem à baila, mas Renan e Strauss? Além disso, Hume não pode ser classificado como céptico, se se dá a esta palavra o único sentido compatível com a linguagem de pessoas cultas, e demais aplicando-se a filósofos, como a oposição de todo o dogmatismo: nos seus Ensaios ele revolta-se contra o cepticismo, «que destruiria ao mesmo tempo toda a especulação e toda a moral». Se o sr. Teixeira Neves confunde empirismo com scepticismo, prova mais uma vez que lhe faltam as luzes da cultura. - Quanto à afirmativa do sr. Caetano Beirão, não quere o sr. Monsaraz fazer a sua defesa, pela profunda razão de êle ter regressado às hostes manuelinas. E é muito pena, porque seria de todo o ponto curioso ver defendido o paradoxo de Darwin como precursor do positivismo. «Também poderíamos responder-lhe ...», arrisca ainda o sr. conde. E só pelo facto duma dissidência intestina (Manuel si, Nuno nó) nos não demonstra à evidência que 1859 é uma data anterior a 1830. Também poderia responder-nos.... Pois já se vê. Com a lógica do sr. conde, tudo é possível.
4º Que somos insuficientes na nossa exposição, por nos não referirmos às suas convicções néo-mediévicas e ao seu catolicismo. Pois se o sr. de Monsaraz procurasse bem, lá encontraria tudo isso, em síntese e raccourci. Até nos referimos às pretendidas leis de Quinton para justificar o seu apêgo às «instituições originárias» (da Idade Média, já se vê) e aos «dogmas tradicionais da nossa raça» (o catolicismo, é evidente). Decerto, não pormenorizamos; o nosso amigo C. Reis já protesta contra a extensão dos nossos artigos, e não queremos tornar a ouvir do sr. Trindade Coelho que somos «açambarcadores». Mas nós estamos ainda com as mãos na massa, sr. conde! A propósito de cada uma das suas teses, as desenvolveremos devidamente. Tenho esperança de que o mundo não acabará, nem eu acabarei, por êstes meses mais próximos.
5º Que copiámos por vezes palavra por palavra os seus livros de propaganda, e todavia temos a pretensão de expôr a sua doutrina com mais lucidez e coerência do que êles. É certo que os transcrevemos muitas vezes textualmente, por uma questão de probidade crítica: as aspas não querem dizer outra coisa. Mas todo o leitor pode ver que nessa altura a exposição se torna mais confusa e embrulhada. E quem conhece os livros integralistas sabe bem que nunca êles deram às suas ideias a ordem, a seriação, a limpidez, a claridade que eu pretendi dar-lhes quando não achei mais conveniente, para efeitos da polemica futura ou por escrúpulos de fidelidade, limitar-me a transcrevê-los.
6º Como se vê, nada há até aqui que prove ter havido da minha parte qualquer incompreensão ou deturpação da doutrina. Há, porém, um ponto em que êles teem razão contra mim, não pelos motivos que invocam, mas por outros que a minha lealdade (a minha maior amiga, pois é a aliada do meu orgulho, e a minha maior inimiga, pois que se alia por vezes aos meus próprios inimigos), que a minha lealdade, ia eu dizendo, me obriga a reconhecer. É quando eu aplico aos membros dos conselhos técnicos a designação, de autocratas. Aqui o crítico sobrepôs-se ao expositor, numa invasão de atribuições a que não tinha direito. Porque ainda que o crítico julgue que se trata realmente de «autocratas», em relação à opinião pública do país, não é como «autocratas» que os apresentam os integralistas. Ora era como expositor que eu tinha então a palavra; para que deixei, nessa altura, ouvir a voz do crítico? Aceito a reprirnenda. Corrigindo o termo «autocratas» para «membros» tudo fica certo. A minha exposição dos princípios integralistas obtém o imprimatur do integralismo: com licença do Ordinário e do Santo Ofício, pode correr.
Antes de terminar, quero referir-me a umas palavras do meu opositor, que demonstram de maneira cabal como é incapaz de se colocar à minha altura. Sendo eu o primeiro que em Portugal lhes dá o gôsto de discutir o integralismo (porque os outros, todos os outros, teem feito a crítica dos integralistas e de certas afirmações acidentais dos integralistas), faço-o duma maneira honesta, conscienciosa, metódica e exaustiva, discutindo uma a uma todas as teses essenciais da sua doutrina, sem recorrer às fáceis disputas de pormenor, a questões bizantinas de palavras, e sem lançar mão desse sistema de impropérios, larachas e remoques pessoais que muita gente, alucinada do «espírito de crítica», dá como o sinal manifesto do «espírito crítico». Esquecendo todos os enxovalhes recebidos da Monarquia, pus-me a discuti-los com perfeita sinceridade e isenção. Pois o sr. de Monsaraz não tem pejo de pôr a hipótese de «a Seara nova receber um largo subsídio do Estado». Assim é correspondida a lealdade do republicano com a calúnia gratuita do monárquico. Sabe o sr. conde o que mais me repugna em quási todos os senhores? É a falta que a cada momento manifestam dos verdadeiros sentimentos aristocráticos.
[1] Palavras com que Raul Proença classificou as suas próprias intervenções polémicas, referindo-se ao combate que travou contra a ditadura militar, implantada em 28 de Maio de 1926; “Réplica de um Monstro de Egolatria a um Monstro de Modéstia, Seara Nova, 240, 26 de Fevereiro de 1931.
[2] Seara Nova, 5, 24 de Dezembro de 1921.
[3] Devemos observar que o nosso esfôrço constante por pôr ordem e clareza nas ideas nos levou a dar à doutrina integralista, na exposição que dela aqui fazemos, um pouco mais de coerência e limpidez que o que ela revela em geral nos seus tratadistas. Mas fazendo muitas vezes a diligência de penetrarmos no espírito dos nossos adversários, temos a consciência de não termos adulterado uma só das suas ideas.
[4] Monarquia, 3 de Janeiro de 1922.
[5] Seara Nova, 7, 1 de Fevereiro de 1922.
Relacionado
1925-03-23 - Hipólito Raposo - Dois nacionalismos. L'Action française e o Integralismo Lusitano
Naquela época, a forma mais comum de denegrir o Integralismo Lusitano consistia em dizer-se que este era uma cópia da Action française, colocando Raúl Proença essa ideia no centro do seu ataque. Alberto de Monsaraz aproveitou a oportunidade para esclarecer as diferenças essenciais entre a Action française e o Integralismo Lusitano, que afinal radicavam nas diferentes épocas e processos de formação nacional; a francesa ocorrera no quadro do renascimento, sendo o nacionalismo francês de feição neoclássica; a portuguesa ocorrera no período medieval, sendo o nacionalismo português de feição neomedieval. Embora houvesse pontos programáticos comuns, como a defesa da Instituição Real na chefia do Estado e de uma descentralização política - reagiam ambos a regimes "republicanos" essencialmente oligárquicos e centralistas - as doutrinas do poder régio tinham distintas origens e feições, de pendor mais absolutista no caso da monarquia francesa, de pendor mais popular no caso português, segundo o modelo da "monarquia limitada pelas ordens".
As faltas de compreensão de Raúl Proença tinham relação direta com o desconhecimento que revelara acerca das fontes essenciais do Integralismo Lusitano, que são expostas por Alberto de Monsaraz. Foram acrescentados destaques em negrito.
Este ataque de Raúl Proença ao Integralismo Lusitano - seria uma cópia da Action française - será acolhido na historiografia mais superficial por via de Carlos Ferrão, João Medina, Franco Nogueira, entre outros.
Franco Nogueira é um caso muito particular por ter atribuído a Oliveira Salazar e ao seu regime político - ao Estado Novo - uma configuração conceptual sui generis. Nogueira escreveu que o Estado Novo seria "medularmente nacionalista", querendo com isso significar que, além de patriótico, seria também tradicionalista, "procurando encadear-se na história de Portugal, retomando os grandes valores nacionais". Nesse aspecto, e na sua opinião, a sua matriz estaria "no pensamento cultivado no seminário de Viseu, afervorado no Colégio da Via Sacra, aperfeiçoado doutrinalmente no Integralismo Lusitano. Além de tradicionalista, este nacionalismo tem de Portugal uma visão de grandeza e de função histórica no mundo: é providencial. Neste plano, reflecte as ideias da Action Française e de Charles Maurras." (Franco Nogueira, Salazar, vol. II, Coimbra, 1977, pp. 206-207). Em Oliveira Salazar teria assim havido um provindencialismo reflectindo ideias francesas, de um francês como Maurras. É possível que Franco Nogueira tenha entendido bem a origem das ideias de Oliveira Salazar, ajudando-nos a entender os seus equívocos a respeito das origens e natureza do pensamento político dos integralistas.
Durante algum tempo, os integralistas também se equivocaram a respeito de Oliveira Salazar. Em Julho de 1930, quando Oliveira Salazar era ainda apenas Ministro das Finanças, os integralistas julgaram que seria possível avançar com ele para uma restauração de Portugal, ao menos para uma restauração da República, quando ele se declarou contrário às ficções partidárias como base de uma representação nacional (Oliveira Salazar - Princípios Fundamentais da Revolução Política). Ao tornar-se presidente do Conselho de Ministros, porém, Salazar adoptou o projecto do grupo da Seara Nova e criou o partido da União Nacional, vindo depois a instituir um regime de partido único nos moldes do fascismo. O conflito de ideias entre Oliveira Salazar e os fundadores do Integralismo Lusitano revelou-se doravante muito profundo, reflectindo-se em insanáveis conflitos políticos. Em 1940, a denuncia da Salazarquia por parte de Hipólito Raposo, no seu livro Amar e Servir, resultou mesmo na sua prisão e deportação para o Açores.
13 de Dezembro de 2024 - J. M. Q.
"Não somos retrógrados, nem somos conservadores - não queremos voltar atrás, nem conservar o que está -; somos, sim, reacionários e renovadores, - reagimos contra o presente tal qual é e desejamos restabelecer, não o passado que tivemos, mas o presente que hoje teríamos, se influencias não portuguesas nos não houvessem desviado do rumo natural da nossa evolução." - Alberto Monsaraz
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Índice
Raul Proença, Acerca do Integralismo Lusitano
Resposta de Alberto de Monsaraz, Mondando na "Seara Nova"
Faltas Bibliográficas
Faltas de Compreensão
Mais "0" menos "0"
Integralismo e Classicismo
Catolicismo e Integralismo
A nossa linguagem mais lúcida em boca alheia
Ensinando os ignorantes
Conclusão
Réplica de Raul Proença
POLÉMICA (Alberto de Monsaraz e Raul Proença)
ACERCA DO INTEGRALISMO LUSITANO [2]
Dezembro de 1921
I
O QUE É O INTEGRALISMO
Bibliografia
Luís de Almeida Braga. O Culto da tradição. 1916.
Caetano Beirão. Uma Campanha Tradicionalista. 1919.
Félix Correia. A Última Quimera 1918.
Alberto Monsaraz, editor. Cartilha do operário. 1919 - Cartilha monárquica. 1919.
António Sardinha. O Valor da Raça, 1915.
Luís Teixeira Neves. A Crise da Democracia,1919.
A. Xavier Cordeiro. O Problema da Vinculação, 1917.
A Monarquia, jornal. 1917
Nação Portuguesa, revista.
A Questão ibérica, obra colectiva. 1916. (Colaboração de António Sardinha, Hipólito Raposo, Luís de Freitas Branco, José Pequito Rebelo, Rui Ulrich, Adriano Xavier Cordeiro, Vasco de Carvalho e Luís de Almeida Braga).
Antes de discutirmos o integralismo lusitano, mister é explicar em que ele consiste. Julgamos ser essa a única maneira inteligente e honesta de contraditar uma doutrina. A adopção deste método impedir-nos há de incorrer em três êrros igualmente funestos. Um é o de fazermos a discussão duma doutrina de que os leitores não tomaram exato conhecimento por uma prévia vista de conjunto; a exposição parcelar, à medida que as necessidades da crítica o exigissem, não poderia substituir em caso algum essa visão integral. Desarticulados os diferentes elementos dum sistema de ideias, não se compreendem as suas mútuas relações, o sistema continua, como sistema, a ser ignorado: poderemos conhecer os membros do seu corpo, não conheceremos a sua alma. Outro erro é o de estabelecer como provada a hipótese, sempre sujeita a controvérsias, de que estamos na plena posse dos princípios que pretendemos combater; de fechar, por assim dizer, a discussão sobre a interpretação pessoal que fazemos das ideias dos nossos adversários. Uma questão de método e de modéstia intelectual nos obrigava, antes de mais nada, a fazer da nossa própria interpretação um objeto de controvérsia. Não se desse o caso de que no decurso da polémica nos arguissem de alicerçarmos a nossa crítica sobre uma ignoratio elenchi, e estarmos simplesmente a combater os fantasmas da nossa imaginação. O outro erro, finalmente, consistiria na possibilidade de fazermos incidir a discussão sobre os pormenores e os acidentes, sobre afirmações ocasionais e de pura circunstância. Não são tais ou tais palavras ilógicas ou contraditórias dos srs. integralistas; tais ou tais erros históricos; tais ou tais sofismas e argumentos de advogado; tal ou tal incompreensão de determinada doutrina científica, que nos propomos refutar, pensando assim ilusoriamente ter refutado o integralismo. Não é demonstrando a surdez dum homem que nós provaremos, que êsse homem é cego. Só nos preocuparão os princípios básicos, centrais, essenciais do integralismo. Fácil nos seria desfazer em pó muitas das afirmações de pormenor dos camelots da reação. Mas a poeirada que assim ergueríamos não esconderia no fundo a nossa impotência em atacar o que há de visceralmente estrutural no credo político a que nos opomos? Este método determina simultaneamente uma economia e uma convergência de esforços: nem nos perdemos no acidente, nem erramos nunca o alvo. É o próprio alvo que a nossa exposição fixa e delimita. Por outro lado este método é uma imposição dessa perfeita lealdade de consciência que é o atributo essencial dos aristocratas da verdadeira democracia. Deixemos aos reaccionários as suas armas de dois gumes recrutadas nos velhos arsenais do sofisma. Seja a suprema limpidez cristalina do espírito que analisa e discute o nosso mais alto privilégio - o de aqueles que continuam a fazer do livre exame a sua atitude crítica. Afastamo-nos assim das velhas normas da polémica nacional, que teve em Camilo o seu mais alto corifeu. Mas não ambicionamos, por nossa parte, a glória de tradicionalistas. Procuramos acima de tudo ser em Portugal um dos mais humildes, mas também dos mais firmes professores da moralidade de consciência. Se a alguma aristocracia queremos pertencer, é precisamente à aristocracia da boa consciência.
Têm-se dividido as opiniões dos nossos leitores sobre a necessidade e urgência desta crítica do integralismo. Segundo uns, ela já devia estar iniciada, pelo simples facto de no primeiro número da «Seara», em resposta a um eco da «Monarquia», termos afirmado, sem fixar prazo algum, que discutiríamos nestas colunas as ideias pelicanistas. Demos a alguns dos nossos leitores a impressão de que estávamos faltando a uma promessa. Que palavras nossas lhes deram o direito de supor semelhante coisa? Não será a sua pressa simplesmente a sua impotência a recear a nossa? -Segundo outros, era a própria necessidade da discussão que se punha em causa. E para isso praticava-se a injustiça de negar talento e cultura a todos os elementos do integralismo. E afirmava-se que a nova seita política não tinha o incremento e a importância que eu parecia atribuir-lhe. Esgrimindo contra os gigantes, era a minha fantasia que aumentava a essas proporções os pobres moinhos de vento.
Ora a verdade é que nem todos os integralistas são destituídos desse talento e dessa cultura que lhes querem absolutamente negar. Se quási todos êles, pessoalmente, nada valem - e já aqui o afirmei -, se a ignorância de alguns vai até ao ponto de fazer de Hobbes e de Hume filósofos do século XIX (cf. Teixeira Neves, A crise da democracia, p. 76-77), e de nos apresentar Darwin como um precursor do positivismo, ao lado de Bacon e Descartes (ef. Caetano Beirão, Uma campanha tradicionalista, p. 45), tendo assim uma estranha noção da cronologia dos pensadores e das doutrinas, a verdade é que Sardinha, sendo incontestavelmente um cabotino, tem certo talento literário, e que Pequito, embora acamarade com periquitos, é um especialista de valor. O grupo todo manifesta, além disso (e estas altas virtudes lhe não podem ser negadas) uma unidade perfeita de vistas, uma absoluta solidariedade moral e um pertinaz espírito combativo que são a sua glória e a sua força. - Demais, fazendo a análise e a discussão do «integralismo lusitano», temos a clara consciência de que não fazemos mais que analisar e discutir as ideas fundamentais do reaccionarismo francês que tem por epónimos Maurras, Barrès, Tour du Pin, Henri Vaugeois, Valois e outras amas sêcas dos camelots du Roi. Como mostraremos em um dos artigos consagrados a esta doutrina, não há uma só idea integralista que não tenha pago na Alfândega direitos de importação. Trata-se, pois, dum movimento mais largo que um simples movimento nacional: é contra as hostes todas da Reacção, contra a politique du fait, que nós temos de nos bater. Deixar em silêncio toda uma filosofia da acção política, com arraiais assentes nas mais diversas nações do mundo, será cómodo, mas nem será honesto, nem conveniente ao futuro da democracia. - E é falso que a nova ideologia não tenha conquistado uma área enorme de inteligências juvenis. Eu falo de aquelas que felizmente se preocupam com os problemas morais e políticos, e não dessa vasa pôdre da mocidade que apenas atende aos seus interesses materiais e à solicitação dos seus baixos apetites. Essa mocidade não conta, nem pro nem contra a democracia; nem é para essa mocidade indigna do seu próprio nome que democratas e integralistas erguem o seu pendão doutrinário. Excluindo essa escória da juventude, a parte restante está consideravelmente atacada do virus reaccionário. Pretender negar êste facto é querer prosseguir no velho, vício da mentira em que todos nós embalamos o nosso sono mortal...
Discutir o integralismo é, pois, uma operação necessária de profilaxia intelectual. Ferida a democracia pelos actos dos que se dizem seus partidários e pelas palavras dos que são seus inimigos, era preciso que alguém erguesse entre nós o facho da esperança democrática, e opusesse ao torpe realismo republicano e à sofistica ideologia conservadora novas afirmações da consciência republicana, alargando-lhe os quadros, abrindo-lhe os horizontes e mostrando aos olhos dos que acordam para a vida do sentimento coletivo perspetivas mais longínquas e mais puras.
Ditas estas palavras de preâmbulo, entremos no domínio integralista (Pola lei e pola grei - em prol do comum e aproveitança da terra) com os olhos erguidos sóbre o Pelicano real.
A crer os integralistas[3] se quisermos exprimir a oposição essencial, irredutível, entre democracia e monarquia integral, não o podemos fazer melhor que filiando essa divergência em métodos opostos da filosofia política: a política das ideias e a política do facto. É este o diferencio íntimo, psicológico, que corresponde a duas atitudes antagónicas do espírito.
A democracia é a política das ideias. Não atendendo à experiência histórica da humanidade no seu conjunto e à de cada nação em especial, ela pretende modelar a vida de cada país pelas normas abstractas da razão, impondo-se violenta e artificialmente a realidades indestrutíveis. A democracia é assim uma constante violação dos factos concretos, um permanente desrespeito da vida essencial das nações. Mais do que a inssureição do indivíduo contra a espécie, como a definia Comte, ela é verdadeiramente a insurreição da razão contra a natureza, dos princípios contra os factos.
O seu primeiro êrro, de que derivam a maior parte dos outros, é a adoção do método do livre exame, que aniquila todas as disciplinas tradicionais, faz tábua rasa do passado e põe a cada geração o problema duma nova criação social. O livre exame, filho do espírito protestante, dissemina no mundo os germens da anarquia. Com a dissolução dos dogmas, perverte todos os instintos sociais, ataca a essência de toda a vida social, origina a rebelião do indivíduo contra as condições fundamentais dessa própria vida. As normas que dirigem uma sociedade deixam de ser o fruto duma longa experiência secular, para passar a ser as fantásticas abstracções dos cérebros individuais. O indivíduo arroga-se direitos; quando, no fundo, não tem senão deveres. A verdade é que o homem não pode ser livre. Deve obediência a seus pais enquanto forem vivos, porque «os filhos não são mais do que um prolongamento dos pais». Deve obediência aos seus superiores e ao seu Rei; assim como aos dogmas tradicionais da sua raça. Com a ilusão da liberdade, veio ao mundo a ilusão da igualdade, desmentido absoluto das realidades concretas, pois que não há no mundo dois seres inteiramente iguais. A natureza é essencialmente anti-igualitária: em toda ela vemos a realidade das diferenças, dos privilégios e da hierarquia- E com a negação do facto histórico da tradição, a democracia inventou o maior dos absurdos teóricos: a noção do progresso nas consciências individuais e nas formas da vida social. A ilusão do progresso é a doutrina de Satan revoltando-se contra Deus. «A crença no progresso baseia-se inicialmente na ideia grosseira da bondade natural do homem. Ora, provado como está que os instintos humanos são maus e que dêsses maus instintos resulta naturalmente a necessidade dos quadros sociais, fica destruída pela base a ideia que tantos milhares de espíritos tem atraído e sacrificado.» Demais as leis biológicas de René Quinton vieram dar a esta grosseira ilusão o seu golpe definitivo. O sábio francês mostrou que a vida procura sempre manter as condições do seu meio originário. Se queremos viver, temos, pois, de ser fisiologicamente reaccionários. A vida não é outra coisa senão uma afincada manobra de permanência; e a evolução não significa mais que a procura persistente, sempre activa e voluntária, por vezes complicada e capciosa, dos meios próprios para manter a fixidez do primitivo meio. Cada nação assenta assim «num inviolável meio vital, o qual consiste no equilíbrio constante das condições especiais de que o agregado brotou, valendo a alteração delas pela queda insanável do organismo.» A primeira condição, pois, de toda a política scientífica é respeitar as primitivas instituições de cada povo, os seus antigos costumes, crenças e tradições, aquêles que constituíram o seu «meio originário». E não era já um axioma da sociologia moderna que os mortos governam os vivos, o que equivale a dizer que uma nação não poderá viver se não fôr condicionada pelos ditames da sua tradição - se os berços não fôrem embalados sôbre os túmulos?
Amar os nossos inimigos - o pensamento dos nossos inimigos e a crítica dos nossos inimigos - é o verdadeiro sinal do espírito combativo. Que imporia que êles me guardem ressentimento e rancor? Eu preciso deles como do ar que respiro; eu agradeço-lhes o contribuírem para a clarificação das minhas ideas, e para a fortificação dos meus motivos de viver; eu afirmo-lhes, para além de todas as minhas disputas, a minha fraternidade e a minha lealdade de inimigo - R. P.
O cosmopolitismo é outra perigosa ilusão da «política das ideas». A verdade é que não há povos iguais. É impossível fazer-se, pois, «a fusão de todos os povos numa nação só a que se chama Humanidade». O dever mais imperativo das nações é considerarem-se como fins em si mesmos, e não como meios de realização de qualquer ideal estranho a elas próprias, e transcendendo as suas fronteiras. A monarquia opõe, pois, ás tendências utopistas do cosmopolitismo, a doutrina positiva do egoismo nacional.
Mas o vício fundamental da democracia é o sufrágio popular. É o domínio do número sôbre a qualidade; a escolha dos competentes pelos incompetentes; a vontade de indivíduos não especializados pronunciando-se sôbre questões a que são completamente estranhos. «Na verdade, ninguém poderá ocupar-se da lavoura não sendo agricultor, da indústria não sendo industrial, do exército não sendo militar, do trabalho fabril não sendo operário ou patrão, da instrução não sendo professor.» A representação nacional nas democracias é a maior burla com que se tem iludido o espírito do povo.
Sendo em democracia todos iguais, não pode nela subsistir disciplina. Querendo todos mandar como soberanos, ninguern há que se preste a obedecer. Sendo, como os indivíduos, também iguais todas as regiões, todas as províncias, todos os concelhos, a democracia é o regímen da centralização. Não há talvez maior utopia em sciência administrativa do que julgar que a democracia poderá algum dia descentralizar.
Se todas estas miragens racionalistas pudessem ter realização e o mundo social lhes não oferecesse a cada passo, nas suas realidades irredutiveis, uma invencível resistência, o regimen da democracia conduziria à negação de todos os laços sociais, à anarquia, ao caos colectivo. Mas como assim não é, a democracia conduz na prática à negação dos próprios conceitos em que se estriba e formam o seu espírito teórico; e por isso a sua liberdade leva a uma tirania mais dura, a sua igualdade a uma oligarquia mais devoradora, a soberania de todos à soberania do menor número, o regimen do sufrágio ao regimen dos caciques, o cosmopolitisino a um estado de guerra mais atroz e permanente.
A estas ilusões mortíferas, o integralismo opõe uma doutrina absolutamente positiva e científica - doutrina de vida e salvação. Longe de se basear nos princípios abstractos da razão pura, como a democracia, êle parte do estudo das realidades. Para êle não há ideias, há leis científicas e verdades de facto. É a experiência e a história, essa experiência do passado, que nos dão a conhecer as leis por que se hão de reger as sociedades. Enquanto a República é o regimen em que as mesmas instituições e as mesmas leis são impostas pela razão para a índole de povos diversos, a rnonarquia é o regimen do facto, e as suas leis são o produto da experiência particular de cada nação.
Sendo assim, a unidade social não é, para o integralismo, o indivíduo, esse átomo da consciência que não vale senão no grupo e pelo grupo de que faz parte. Nenhum complexo pode ser dividido em seres de natureza diferente; os elementos duma sociedade nacional hão de ser necessariamente sociedades menos complexas. Essa unidade social é a família, constituída pelos vivos, pelos mortos e pelos nascituros, e cujos interesses se prolongam, pois, no tempo e são mais alguma coisa que a soma dos interesses dos seus membros. A monarquia integral fará, pois, tudo para a fortificar, e não para a dissolver, como tem feito a democracia, cuja tendência mais profunda consiste em desagregar a sociedade numa poeira de átomos. O divórcio, a liberdade de testar e a igualdade na sucessão são atentados aos interêsses mais imediatos da família; não se concebe, pois, sociedade organizada e viável em que êsses elementos de dissociação sejam admitidos. «A monarquia combate a perfilhação dos adulterinos e incestuosos («filhos do crime») que, provindo de faltas contrárias à lei e à moral, não devem ser reconhecidos por lei. Defende a «indissolubilidade conjugal como a forma mais perfeita do amor», e a vinculação da terra como o meio de dar à família uma base de continuidade territorial fixa e com ela estabilidade económica, coesão moral e permanência. Proíbe a liberdade de testar e limita à terça a quota livre dos pais.
As famílias agrupam-se em municípios dotados de autonomia administrativa. A Câmara Municipal deve ser de representação econômica, técnica ou profissional, e nunca política. E ainda nas eleições municipais o sufrágio restringir-se há apenas aos que são chefes de família, e que assim não representam apenas o seu interesse individual, mas o da família inteira.
Os municípios reunem-se por sua vez em províncias, administradas por Juntas Provinciais, dotadas também, como o município, de autonomia económica. Essas Juntas são constituídas pela delegação de todos os municípios da circunscrição, pela representação dos sindicatos operários e patronais, pelos directores das escolas e dos institutos de utilidade pública, emfim por todos aquêles que representam interesses corporativos e sociais organizados.
Incorrer-se-ia portanto num erro de apreciação afirmando que o integralismo não é um sistema representativo, pois que admite a representação administrativa e profissional. Mas não menos errado seria chamar-lhe, por êsse facto, um regímen democrático, pois que não há democracia onde não há representação da opinião pública e a sua fiscalização. É o que vamos vêr na constituição da Assembleia Nacional. Por esta substitui-se ao parlamento actual, de pura representação política e eleito pelo sufrágio popular, um organismo de representação de classes, recrutado exclusivamente no seio dessas classes para a representação dos seus interesses. E ainda um carácter fundamental distingue o actual parlamento dessa assembleia: enquanto aquêle tem funções deliberativas, o voto da Assembleia Nacional é puramente consultivo, tendo por única função além da aprovação dos impostos e do orçamento, «a consulta sôbre a aplicabilidade, na prática, das leis que os ministros e os respectivos conselhos técnicos elaboram». A função legislativa deixa, pois, de ser atribuída aos representantes da nação, dos grupos e das classes, para ser apenas função duma aristocracia vitalícia da inteligência e do saber técnico, constituída pelo Rei entre os nomes de maior prestígio. Nunca em caso algum a vontade da Assembleia Nacional, que está já longe de representar princípios e finalidades políticas, sendo apenas a voz dos interesses de grupo, nunca em caso algum a vontade dessa Assembleia se pode sobrepôr à vontade esclarecida dos autocratas dos conselhos técnicos: ela tem de limitar-se, em tudo e por tudo, à simples missão de ponderar e de esclarecer.
Acima de todos êstes organismos representativos e destas juntas dos homens de bom saber há, como chefe natural da Nação, o Rei hereditário. E é na transmissão hereditária do poder do Rei que consiste precisamente a maior superioridade da monarquia. «Ninguem escolhe o Rei, como ninguem escolhe o próprio pai para lhe obedecer.» O simples facto do nascimento já dá ao Rei amplas garantias de bom govêrno. A natureza fabrica governantes mais economicamente e mais perfeitamente numa raça de governantes que numa raça de proprietários ou juristas: no próprio sangue trazem à nascença as qualidades que os impõem. Filho de rei sabe reinar. Além disso a sua educação especializada habilitado superiormente para o desempenho da função a que o destino o chamou. A continuidade do exercício do mando ainda aumenta nele a capacidade directiva. Mas não poderá o Rei exercer essa capacidade em prejuizo dos interesses colectivos? Isso é impossível. «Para a intenção nacional guiar sempre a vontade do Rei, basta que êle seja bom pai de família, pois o seu interesse e o dos seus descendentes identifica-se com o interesse nacional... Um Rei pensa: pensa e deve pensar; e raramente se engana... Se por doença ou outra qualquer causa o Rei se revela incapaz, há, para suprir a sua acção, o recurso da regência, que é sempre exercida por alguem que deseja servir o interesse da dinastia, ou seja, o bem público.»
O poder pessoal do Rei é soberano. Escolhe livremente os seus ministros e os conselhos que os assistem e elaboram as leis, ministros e conselhos que não ficam dependentes de nenhuma sanção e de nenhuma vontade a não ser a sanção e a vontade exclusivas do Rei: «Na paz e na guerra, dentro e fóra das fronteiras, o Rei personaliza a Nação, a sua vontade é soberana, e nenhum poder mais alto se lhe impõe, embora ela deva ser sempre esclarecida pelo conselho dos órgãos competentes». «Esse poder é ilimitado, é arbitrário? Será. É na verdade, menos ilimitado e arbitrário do que o poder paternal, que se não limita nem arbitra pelo contrôle do agrupamento familiar».
Neste sistema, qual é o lugar conferido à questão social? Resolvida pelas próprias soluções da monarquia orgânica. Cada classe constitui-se em sindicatos autónonios. Entre os capitalistas e os trabalhadores estabelece-se o contracto colectivo de trabalho. O trabalho é necessário para produzir. De forma que entre um e outro há uma comunidade de funções. Um sem outro nada é.» O operariado deve, nestas circunstâncias, confinar-se nos seus interesses profissionais, sem se envolver em lutas políticas, na tarefa utópica da reorganização da sociedade. Tarefa utópica, porque o nivelamento das classes é contrário à própria natureza das coisas. Tarefa utópica, porque a hierarquia é a condição de toda a vida social. Tarefa utópica, porque a supressão da propriedade privada representaria a supressão de todas as molas da actividade. E com o ser utópica, absurda e monstruosa, porque «se o pai transmite a vida aos filhos, e se tem o dever de velar por êles durante toda a vida, evidentemente que também possui o direito de transmitir o que adquiriu com o seu trabalho, para que não sintam a miséria com a sua falta». Assim fica resolvida, para o integralismo, a questão social. O comunismo e o colectivismo são o produto mental de espíritos tarados, paralisados no meio do seu desenvolvimento fisiológico, produto que foi explorado em seguida pela finança judaica, que não pretende outra coisa senão apoderar-se, durante os motins, duma porção importante da fortuna pública e privada. É o espírito de ganância do grupo judaico que alimenta hoje os partos febris da utopia revolucionária.
Assim está na Monarquia orgânica, tradicional e anti-parlamentarista a cura radical dos nossos males. Estes, ao contrário do que afirmam certos doutrinários do liberalismo, não estão nos homens, mas nas ideas e no regimen. É às ideas democráticas, é ao regimen republicano que cabe a responsabilidade da nossa decadência. A Monarquia é, pelo contrário, a solução necessária e suficiente de todos os problemas, o lugar geométrico de todas as medidas de salvação nacional. Democracia e Nação, Democracia, e Justiça, Democracia e Exército, Democracia e Autoridade são conceitos que se excluem. Pelo contrário, quem diz Nação, Justiça, Exército, Autoridade, diz ipso facto Monarquia. Tudo demonstra a verdade lógica do integralismo.
Assim é destruida a obra da Revolução, filha do protestantismo e do livre exame, e que representa na nossa casa o domínio do «estrangeiro do interior». Todos os princípios liberalistas e igualitários são o produto de doutrinas germano-francesas. São ideas de invasão. Deveriam ser êles, integralistas, os primeiros a estabelecer na fronteira da inteligência portuguesa o verdadeiro cordão sanitário. Entramos de ora avante na plena posse dos nossos destinos, das nossas tradições, das nossas crenças e das características originais da nossa raça. Depois das «medidas purgatórias» da sua critica e da sua higiene intelectual, voltará a haver novamente um Portugal dos portugueses...
Nos próximos números veremos qual a parte de verdade que há no integralismo e até que ponto se justificam as suas pretensões de originalidade.
Raul Proença
(RESPOSTA DE ALBERTO DE MONSARAZ)
[4]
Amar os nossos inimigos - o pensamento dos nossos inimigos e a critica dos nossos inimigos - é o verdadeiro sinal de espírito combativo.
Que importa que êles me guardem ressentimento e rancor? Eu preciso deles como do ar que respiro; eu agradeço-lhes o contribuírem para a clarificação das minhas ideas e para a fortifficação dos meus motivos de viver,- eu afirmo-lhes, para além de todas as minhas disputas, a minha fraternidade e a minha lealdade de inimigo. R. P.
I
PREAMBULO
Sob a égide destas palavras solenissimas, gravadas à maneira de lapide no centro duma página, inicia a revista republicana Seara Nova, no seu último numero - 24 de Dezembro de 1921 -, um largo estudo critico do Integralismo Lusitano e do movimento de ideias que em torno dele se formou e cresceu.
Firma este primeiro artigo o sr. Raul Proença, que assina em abreviatura R. P. talqualmente a Republica Portuguesa costuma arautizar-se aos quatro ventos da fama, desde o papel selado à fachada dos monumentos publicos - cá estou eu!
Esta coincidência simbolica mostra à evidencia como o nosso imprevisto contraditor se acha bem identificado, mental e burocraticamente, com a caranguejola politica que nos governa e desgoverna.
E posto isto, à laia de preambulo, temos logo de afirmar que muito nos apraz, nós que dia a dia nos gastamos na acção jornalistica e politica impulsionadora do nosso movimento, podermos discutir ideias com um adversario que se diz fraternal e leal inimigo nosso e, cremos supor, manterá sempre na polémica aquela correcção propria a um homem de pensamento.
O sr. Raul Proença começa por afirmar que, para que os seus leitores possam fazer um juizo exacto da discussão e aplaudi-lo, ao fim, com conhecimento de causa, quando ele reentrar, vitorioso, no silencio, sobre os escudos dos seus pares - é indispensavel citar-lhes a bibliografia integralista e fazer-lhes uma exposição sintética das nossas doutrinas.
Concordamos em principio; mas para tanto seria forçoso: 1º) que a bibliografia fosse completa; 2º) que a exposição estivesse perfeita. Ora tal não sucede, como vamos ver.
FALTAS BIBLIOGRAFICAS
Na bibliografia, sem já nos referirmos aos clássicos do legitimismo, nossos mestres, que vêm citados em quasi todos os folhetos de propaganda integralista e cuja leitura, sobretudo a do Novo Principe de Gama e Castro, hoje por nós reeditado, prova à evidência que, antes dos políticos reaccionarios franceses, já tinhamos em Portugal importantíssimas fontes da nossa corrente de ideias - sem já nos referirmos a esta omissão bibliografica do sr. Proença, queremos salientar que lhe faltaram, entre as obras integralistas citadas: O Sentido do humanismo de Hipolito Raposo, A Crise da Democracia de Armando da Silva; A Monarquia é a Restauração da Inteligência de Rolão Preto além de varios artigos e folhetos de propaganda politica, como os de João do Amaral no Aqui d'EI-Rei na Ideia Nacional e na Restauração.
FALTAS DE COMPREENSÃO
Ao lado destas omissões, há inexatidões flagrantes, que visto não significarem má fé, denotam uma leviandade lamentável da parte de alguem que se propõe criticar com ideias um movimento de ideias. Assim, por exemplo, a passagem em que se afirma a ignorancia do nosso amigo Teixeira Neves, porque este teria declarado no seu livro Crise da Democracia que Hobbes e Hume foram filosofos do seculo XIX. Isto não é exacto. A paginas 76 e 77 do referido trabalho, paginas que o sr. Proença cita, mas que parece não ter lido, escreve Teixeira Neves textualmente o seguinte.
«O Século XIX a que poderíamos chamar, com verdade, o século dos grandes envenenadores, foi materialista como Hobbes racionalista como Renan e Strauss; individualista, como Bastiat e Smith; livre-pensador como Haeckel scéptico como Hume.
MAIS "0" MENOS "0"
Esta formula como, empregada pelo nosso amigo na sua exposição, mostra bem que ele não considerava, alguns dos filosofes citados, filosofos do seculo XIX, aliás teria empregado a proposição com, muito mais propria nesse caso. A falta dum O à direita duma palavra é, por vezes, tão grave como a falta dum 0 à direita dum número. Se é verdade a Seara Nova receber um largo subsidio do estado republicano, tome cautela o sr. Proença com esses erros de visão, porque se arrisca a aceitar notas de 10 escudos em vez de notas de 100 e, quando os tipografos protestarem, terá de ir empenhar o proprio talento, para podermos continuar esta amena discussão.
Quanto à alusão feita ao sr. Caetano Beirão tambem poderíamos responder-lhe, mas visto esse senhor se ter afastado ha tempos da nossa organização politica, preferimos não o fazer, não vá ele supor que a nossa defeza é menos completa e menos sincera por essa facto. Tudo é possivel da parte de quem andou tão incorrectamente comnôsco.
Ele, que está vivo e são, dirá de sua justiça onde lhe aprouver e quando intenda.
Feitas estas indispensaveis reflexões, vejamos propriamente a exposição que o senhor Raul Proença fez da doutrina integralista e os erros que cométe.
INTEGRALISMO E CLACISSISMO
- O Integralismo Lusitano, como o seu nome o indica, pretende reformar integralmente a vida social portuguesa, adaptando ás condições da existencia moderna, tudo quanto no passado engrandeceu o nosso nome e pedra, a pedra, isto é, ano a ano, criou a nossa Nacionalidade e dictou a nossa Historia. Todos os elementos desnacionalizantes são postos de parte como nocivos. Não somos retrogrados, nem somos conservadores - não queremos voltar atrás, nem conservar o que está -; somos, sim, reaccionarios e renovadores, - reagimos contra o presente tal qual é e desejamos restabelecer, não o passado que tivemos, mas o presente que hoje teríamos, se influencias não portuguesas nos não houvessem desviado do rumo natural da nossa evolução.
Assim consideramos o movimento humanista da Renascença como o primeiro grande solavanco sofrido nessa marcha evolutiva. Com o alvorecer e, sobretudo, com o raiar deslumbrador da Idade Moderna, desviamo-nos da terra, da boa grei portuguesa, que a conquista de Marrocos deveria prolongar naturalmente além do estreito, para nos lançar-mos na aventura das descobertas, donde trouxemos o corpo da Pátria, em caixão de oiro, na mais lamentável decomposição; centralizámos o poder publico, à maneira de Luiz XI e lsabel Católica, trocando assim a monarquia limitada pelas ordens, produto do génio nacional, pela monarquia absoluta, que só teve a desculpá-la a figura imensa do primeiro grande rei que a encarnou; abandonamos os motivos populares do nosso lirismo para nos lançar-mos na admiração absorvente da cultura clássica e as cortes eruditas dos príncipes italianos foram transplantadas para o Paço do Rei Venturoso.
Os tradicionalistas franceses encontram na cultura classica, que lhes constituiu definitivamente a lingua e lhes fez florescer nas letras os grandes homens do grande século, a expressão maxima do seu equilíbrio nacional.
Comnosco deu-se o contrario. O classicismo para nós é apenas interessante e proveitoso como disciplina intelectual. Nada mais. E assim, ao passo que os maurrasianos se dizem neo-classicos e encontram em Maurras espirito pagão dentro do Catolicismo, um admiravel artista e político da Renascença, nós outros integralistas consideramo-nos neo-medievos e vamos procurar nas instituições originarias da patria, nas primitivas formas literarias da lingua, que Silva Gaio e sobretudo Lopes Vieira tão genialmente, direi tão mediumnimicamente evocam e traduzem, a forte seiva da arvore ancestral, que hoje tentamos fazer reflorir ao sol doirado e sob o ceu azul de Portugal.
A nada disto se refere o sr. Raul Proença na sua critica de clichés, fotografica e estreita, parcelar e fragmentaria. Podéra, se ele não cita e, naturalmente não conhece o Sentido do Humanismo de Hipolito Raposo.
CATOLICISMO E INTEGRALISMO
Um dos pontos fundamentais do nosso programa, tão fundamental como o do poder pessoal do Rei, é o revigoramento da fé catolica esmorecida; o prestígio moral da Igreja a restabelecer para que a Patria, creada moralmente por ela, como politicamente o foi pela Monarquia, possa encontrar nessas duas grandes instituições revigoradas e adaptadas à nossa epoca energias novas para ressuscitar, viver e progredir. Á igreja devemos as ordens religiosas e militares que ajudaram a conquista e a cristianização da terra; devemos-lhe a inquisição, que nos livrou da reinvasão do perigo judaico, que hoje assoberba todos os governos e colabora em todos os motins; devemos-lhe as missões ultramarinas, sobretudo essa admiravel Companhia de Jesus, que tanto se opôs à empresa de África, tarde e a más horas empreendida e com a qual só Castela aproveitou, essa portuguesissima Companhia de Jesus que, durante a ocupação castelhana, soube manter o culto da língua e da pátria sempre vivo, lá longe, no império ultramarino em decomposição; devemos-lhe, finalmente, à igreja Católica, o espirito de resistência anti-maçónico que até à ultima defendeu a Pátria, de 28 a 36 dos assaltos repetidos de maus portugueses, de gorra com maus estrangeiros, que, vencendo por fim, nos conduziram à apagada e vil tristeza dos nossos dias. Uma ou outra excepção de caracter pessoal, mesmo entre o alto clero, não pode diminuir a obra extraordinaria da resistência catolica ao maçonismo invasor.
Pois o sr. Raul Proença nem tocou no problema religioso, como se o Integralismo Lusitano florescesse entre maometanos ou entre budistas.
A incompatibilidade absoluta entre a religião catolica e a democracia, um dos motivos que nos leva, para restabelecer o predomínio da Igreja, a atacar a republica, não merece ao sr. Proença uma unica palavra. É na verdade um critico consciencioso e perfeito. Pois se ele mete-se a criticar-nos, coitado, e não conhece, visto não os citar, os belos artigos de João do Amaral publicados sobre a questão religiosa na primeira série da revista Ideia Nacional?
A NOSSA LINGUAGEM MAIS LÚCIDA EM BOCA ALHEIA
to ao restparte cop a a frase os nossos livros de propaganda, parte servindo-se volta e meia das nossas proprias palavras, lá vae expondo, confórme póde, o ponto de vista integralista sob as questões politica, administrativa e familiar. Frases inteiras, longos períodos inteiros, por vários dentre nós escritos em varias ocasiões, «destacam-se» ao fundo do ecran, onde o sr. Proença procura exibir-nos ao publico, antes de nos sovar.
Nada teriamos com esses processos criticos e até concordariamos que dificilmente o sr. Proença conseguiria traduzir as nossas ideias melhor do que com as nossas palavras - se esse inverosímil contraditor não viesse declarar em nota pesporrentamente o seguinte: Devemos observar que o nosso esforço constante por pôr ordem e clareza, nas ideias nos levou a dar à doutrina integralista, na exposição que dela aqui fazemos um pouco mais de coerência e lucidez que o que ela revela em geral aos seus tratadistas (isto é espantoso!) Mas fazendo muitas vezes a diligência de penetrarmos no espirito dos nossos adversarios, temos a consciencia de não termos adulterado uma só das suas ideias.
O publico que julgue, ao reler a critica da Seara Nova da encantadora. modestia e verdade que nestes periodos se contem. Ora claro está que o sr. Proença não soube penetrar no fundo do nosso espirito só dando aspectos isolados do nosso programa, pretendendo até identificar-nos com a Action française etc., etc. Quanto a não ter adulterado ideias, também não é bem exato.
Por exemplo: em certa altura o sr. Proença refere-se aos nossos autocratas dos conselhos tecnicos, junto dos quais a assembléia nacional tem a simples missão de ponderar e de esclarecer. Ora intende-se por autocrata um senhor absoluto, livre de qualquer constituição, que tiranize os povos a seu bel-prazer. Como estão longe disso esses honrados e competentes funcionarios de nomeação régia, que são responsáveis pelos seus actos perante o Rei! Nem mesmo o nosso Rei de poder pessoal é um autocrata limitada na sua esfera de acção por todos os orgãos da descentralizão, quanto mais os funcionarios publicos que ele nomeia.
A assembléia nacional tem só voto consultivo, mas nem precisa ter outro para de facto deliberar, sem que por isso se considere omnipotente. Os governos, não caindo no parlamento, não tem interesse algum em fazer passar os projectos tal como foram elaborados primitivamente. Aceitam todas as alterações propostas pelos interessados, caso não briguem com outros legitimas interesses opostos. Para arbitro lá está a pessoa do Rei, com todas as condições que essa funcção requer - independência, imparcialidade, brandura.
Vê, sr. Proença, que não só não aprofunda o nosso pensamento, mas também deturpa, por não as haver compreendido, as nossas ideias?
Basta por hoje. Ficamos aguardando a critica do sr. Proença à parte de mentira que, segundo afirma terminando, existe no Integralismo para opôr a uma parte de verdade que tambem lhe reconhece.
Agora já não poderá servir-se das nossas palavras, para ser mais... lucido do que nós.
Perdeu pé. Cá estamos para o salvar quando se fôr afogando. Gui-Grand publicou dois livros sobre a doutrina de Action Française um deles expondo-a: La phylosophie nacionaliste, em que é na verdade luminoso; outro rebatendo-a: La phylosophie syndicaliste, em que o autor mete os pés pelas mãos, numa confusão e numa incoerência lamentaveis. Oxalá ao sr. Proença suceda o contrario, procurando macaquear Gui-Grand não fique apenas, em face de nós, um tristissimo Gui-Petit.
Alberto Monsaraz
(Réplica de Raul Proença)[5]
P.S. Em artigo da Monarquia, de 3 de Janeiro, que só agora chegou a meu conhecimento, pretende o sr. Conde de monsaraz levantar algumas objecções à exposição que fiz da doutrina integralista. Tratando-se de objecções desta natureza, entendo que é esta ocasião de me referir a elas. Diz S. Ex.ª:
1.º Que começo por afirmar que «para que os (meus) leitores possam fazer um juizo exacto da discussão... é necessário citar-lhes a bibliografia integralista.» Em parte alguma do meu artigo eu faço semelhante afirmação. O sr. conde delira. A bibliografia que apresento, e antecede o próprio artigo, sem neste fazer a ela a mais pequena alusão, não pretende ter outro valor senão o de documento comprovativo das afirmações por mim feitas, como os textos que me serviram para neles fundar a minha discussão: são as peças justificativas de todo o processo, o corpo de delito, se assim nos podemos exprimir em relação a uma doutrina de que nos consideramos como adversários.
2.º Partindo de aquela afirmação, de todo o ponto falsa, não é para maravilhar que S. Ex.ª pretenda tirar efeitos dialécticos da sua asserção fantasiosa e escreva que «para tanto seria forçoso que a bibliografia fôsse completa». Como, porém, não foi meu intento, dar aos leitores a «bibliografia integralista», mas as obras que me serviram de texto, não era obrigado a obedecer a quaisquer pruridos de bibliografia exaustiva. Por isso o critico não citou o Sentido do humanismo de Raposo, que bem conhece, e o trabalho de Rolão Preto, que está lendo. Postas as coisas neste pé, só uma objecção era possível contra a bibliografia que apresentei. o ela não incluir obras essenciais para a inteira compreensão do integralismo. Partindo dum ponto de vista errado, não tenta essa objecção o sr. conde de Monsaraz. E dificil seria tentá-la, quando é evidente que bastaria eu citar a Monarquia, jornal em que se tem exposto e reexposto todos os principias integralistas, para ter citado o essencial. Sendo assim, se algum defeito há a apontar à minha bibliografia, não é a insuficiência, mas a generosa prolixidade.
3º Que há no meu preâmbulo «faltas de compreensão». E do plural que S. Exª faz uso; mas afinal vem a apurar-se que se trata de uma por junto. É quando eu atribuo ao sr. Teixeira Neves a suposição de que Hobbes e Hume são filósofos do século XIX. Transcrevamos a passagem incriminada: «O século XIX, a que poderíamos chamar com verdade o século dos grandes envenenadores, foi materialista, como Hobbes; racionalista, como Renan e Strauss; individualista, como Bastiat e Smith; livre-pensador, como Haeckel; seéptico, como Hume.» Eu pregunto a todo o leitor de boa fé se, ante um texto dêste teor, não adquire a certeza de que o autor imagina serem Hobbes e Hume filósofos do século XIX. Pois não é dos envenenadores dêste século que êle nos pretende falar? Faz sentido que, para exemplificar que êsse século foi o dos envenenadores por excelência cite, ao lado dos «envenenadores» do século XIX, «envenenadores» de outros séculos? Porquê «materialista como Hobbes» e não «materialista, como Büchner», se, quando se nos fala de racionalismo, não é Descartes que vem à baila, mas Renan e Strauss? Além disso, Hume não pode ser classificado como céptico, se se dá a esta palavra o único sentido compatível com a linguagem de pessoas cultas, e demais aplicando-se a filósofos, como a oposição de todo o dogmatismo: nos seus Ensaios ele revolta-se contra o cepticismo, «que destruiria ao mesmo tempo toda a especulação e toda a moral». Se o sr. Teixeira Neves confunde empirismo com scepticismo, prova mais uma vez que lhe faltam as luzes da cultura. - Quanto à afirmativa do sr. Caetano Beirão, não quere o sr. Monsaraz fazer a sua defesa, pela profunda razão de êle ter regressado às hostes manuelinas. E é muito pena, porque seria de todo o ponto curioso ver defendido o paradoxo de Darwin como precursor do positivismo. «Também poderíamos responder-lhe ...», arrisca ainda o sr. conde. E só pelo facto duma dissidência intestina (Manuel si, Nuno nó) nos não demonstra à evidência que 1859 é uma data anterior a 1830. Também poderia responder-nos.... Pois já se vê. Com a lógica do sr. conde, tudo é possível.
4º Que somos insuficientes na nossa exposição, por nos não referirmos às suas convicções néo-mediévicas e ao seu catolicismo. Pois se o sr. de Monsaraz procurasse bem, lá encontraria tudo isso, em síntese e raccourci. Até nos referimos às pretendidas leis de Quinton para justificar o seu apêgo às «instituições originárias» (da Idade Média, já se vê) e aos «dogmas tradicionais da nossa raça» (o catolicismo, é evidente). Decerto, não pormenorizamos; o nosso amigo C. Reis já protesta contra a extensão dos nossos artigos, e não queremos tornar a ouvir do sr. Trindade Coelho que somos «açambarcadores». Mas nós estamos ainda com as mãos na massa, sr. conde! A propósito de cada uma das suas teses, as desenvolveremos devidamente. Tenho esperança de que o mundo não acabará, nem eu acabarei, por êstes meses mais próximos.
5º Que copiámos por vezes palavra por palavra os seus livros de propaganda, e todavia temos a pretensão de expôr a sua doutrina com mais lucidez e coerência do que êles. É certo que os transcrevemos muitas vezes textualmente, por uma questão de probidade crítica: as aspas não querem dizer outra coisa. Mas todo o leitor pode ver que nessa altura a exposição se torna mais confusa e embrulhada. E quem conhece os livros integralistas sabe bem que nunca êles deram às suas ideias a ordem, a seriação, a limpidez, a claridade que eu pretendi dar-lhes quando não achei mais conveniente, para efeitos da polemica futura ou por escrúpulos de fidelidade, limitar-me a transcrevê-los.
6º Como se vê, nada há até aqui que prove ter havido da minha parte qualquer incompreensão ou deturpação da doutrina. Há, porém, um ponto em que êles teem razão contra mim, não pelos motivos que invocam, mas por outros que a minha lealdade (a minha maior amiga, pois é a aliada do meu orgulho, e a minha maior inimiga, pois que se alia por vezes aos meus próprios inimigos), que a minha lealdade, ia eu dizendo, me obriga a reconhecer. É quando eu aplico aos membros dos conselhos técnicos a designação, de autocratas. Aqui o crítico sobrepôs-se ao expositor, numa invasão de atribuições a que não tinha direito. Porque ainda que o crítico julgue que se trata realmente de «autocratas», em relação à opinião pública do país, não é como «autocratas» que os apresentam os integralistas. Ora era como expositor que eu tinha então a palavra; para que deixei, nessa altura, ouvir a voz do crítico? Aceito a reprirnenda. Corrigindo o termo «autocratas» para «membros» tudo fica certo. A minha exposição dos princípios integralistas obtém o imprimatur do integralismo: com licença do Ordinário e do Santo Ofício, pode correr.
Antes de terminar, quero referir-me a umas palavras do meu opositor, que demonstram de maneira cabal como é incapaz de se colocar à minha altura. Sendo eu o primeiro que em Portugal lhes dá o gôsto de discutir o integralismo (porque os outros, todos os outros, teem feito a crítica dos integralistas e de certas afirmações acidentais dos integralistas), faço-o duma maneira honesta, conscienciosa, metódica e exaustiva, discutindo uma a uma todas as teses essenciais da sua doutrina, sem recorrer às fáceis disputas de pormenor, a questões bizantinas de palavras, e sem lançar mão desse sistema de impropérios, larachas e remoques pessoais que muita gente, alucinada do «espírito de crítica», dá como o sinal manifesto do «espírito crítico». Esquecendo todos os enxovalhes recebidos da Monarquia, pus-me a discuti-los com perfeita sinceridade e isenção. Pois o sr. de Monsaraz não tem pejo de pôr a hipótese de «a Seara nova receber um largo subsídio do Estado». Assim é correspondida a lealdade do republicano com a calúnia gratuita do monárquico. Sabe o sr. conde o que mais me repugna em quási todos os senhores? É a falta que a cada momento manifestam dos verdadeiros sentimentos aristocráticos.
[1] Palavras com que Raul Proença classificou as suas próprias intervenções polémicas, referindo-se ao combate que travou contra a ditadura militar, implantada em 28 de Maio de 1926; “Réplica de um Monstro de Egolatria a um Monstro de Modéstia, Seara Nova, 240, 26 de Fevereiro de 1931.
[2] Seara Nova, 5, 24 de Dezembro de 1921.
[3] Devemos observar que o nosso esfôrço constante por pôr ordem e clareza nas ideas nos levou a dar à doutrina integralista, na exposição que dela aqui fazemos, um pouco mais de coerência e limpidez que o que ela revela em geral nos seus tratadistas. Mas fazendo muitas vezes a diligência de penetrarmos no espírito dos nossos adversários, temos a consciência de não termos adulterado uma só das suas ideas.
[4] Monarquia, 3 de Janeiro de 1922.
[5] Seara Nova, 7, 1 de Fevereiro de 1922.
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