Salazar e a sua época
Francisco Rolão Preto
[Antes de ser preso e desterrado para Espanha, Rolão Preto julgava possível disputar o poder a Oliveira Salazar através de eleições para a Assembleia Nacional.
Em 1934, porém, realizou-se em Portugal um bizarro acto eleitoral, a que nem mesmo faltou uma justificação totalitária na lei especial que regeu a eleição: os 90 deputados foram escolhidos em colégio eleitoral único, de lista completa; a lista de candidatos do partido do governo foi a única admitida ao sufrágio; houve censura na imprensa e a proibição absoluta de qualquer propaganda da oposição.
- J. M. Q.]
Em 1934, porém, realizou-se em Portugal um bizarro acto eleitoral, a que nem mesmo faltou uma justificação totalitária na lei especial que regeu a eleição: os 90 deputados foram escolhidos em colégio eleitoral único, de lista completa; a lista de candidatos do partido do governo foi a única admitida ao sufrágio; houve censura na imprensa e a proibição absoluta de qualquer propaganda da oposição.
- J. M. Q.]
[Rolão Preto, Salazar e a sua época - Comentário às entrevistas do actual chefe de governo com o jornalista António Ferro, Janeiro, 1933]
No ano de 1932, o processo de institucionalização do regime do Estado Novo entrou na sua fase final.
A revolta militar que eclodira em Braga, em 28 de Maio de 1926, tivera em Rolão Preto um dos seus principais protagonistas civis. Colaborador do general Gomes da Costa, Rolão Preto escreveu o Manifesto em 12 pontos afixado nas paredes de Braga, no qual se formulavam as bases programáticas do movimento militar, sendo depois o director efectivo do seu órgão de imprensa - Revolução Nacional; a direcção aparente era de Armando Pinto Correia, ajudante do general, mas era Rolão Preto o director efectivo, assinando com os pseudónimos de "Plures" e "Pluribus".
O general Gomes da Costa apresentou o seu projecto constitucional em 14 de Junho. Outros integralistas da Junta Central do Integralismo Lusitano - Hipólito Raposo, Pequito Rebelo, Afonso Lucas - estão entre os seus principais mentores e redactores. Nesse projecto, previa-se o estabelecimento de uma representação nacional por delegação directa dos municípios, dos sindicatos e das corporações (O "programa retroactivo" do 28 de Maio). Após o afastamento do general Gomes da Costa da direcção da Ditadura Militar - em 9 de Julho, foi preso e deportado para os Açores - os Integralistas ficaram naturalmente apreensivos. Seguiram-se anos de incerteza e expectativa até que, em 30 de Julho de 1930, Salazar promete abandonar a ficção da representação por intermédio de partidos políticos. Reacende-se então a esperança entre os integralistas que, através de Hipólito Raposo, retomam na imprensa a divulgação do seu ideário descentralizador e municipalista.
Quando o projecto constitucional do governo foi por fim apresentado publicamente em Março de 1932, a decepção foi total. Adoptava-se o modelo bicamaral que vinha sendo proposto pelo grupo da Seara Nova, tendo por base o restabelecimento de uma câmara legislativa com partidos políticos. Previa-se também uma câmara corporativa, mas apenas com carácter consultivo. O protesto dos integralistas fez-se imediatamente ouvir: "Não nos alegram as desventuras e as misérias, mas chegou a hora de celebrar a justificação com que sempre fulminámos os vícios e abusos do dinheiro na aliança dos plutocratas de todas as cores com a Democracia Política de todos os partidos. O século XX tem de repudiar uma herança maldita, esse brilho metálico de um falso progresso que foi crestando de aridez as almas, cobriu a terra de máquinas e espalhou a fome no mundo."
Foi nesse contexto que, em Maio, dois membros da Junta Central - Alberto de Monsaraz e Rolão Preto - se juntaram aos jovens do jornal Revolução para lançar o Movimento Nacional-Sindicalista. Hipólito Raposo, aprofundava então o teor das objecções dos integralistas, referindo-se a uma deliberada confusão de poderes no projecto constitucional: por um lado, restaurava-se a engrenagem parlamentar e, por outro lado, propunha-se representar o que não existe: "em Portugal não há corporações do Trabalho; há pequenas assembleias partidárias, dentro de algumas profissões. Não é possível mesmo com a força de uma ditadura, organizar a representação do que não existe. Depois, a Câmara Corporativa não é componente da Assembleia Nacional."
Os estatutos do que virá a ser o partido único do regime - a União Nacional - são publicados em Agosto e, em Novembro, tomam posse as respectivas Comissão Central e Junta Consultiva, na qual surgem dois dissidentes do Integralismo Lusitano: João do Amaral e Marcello Caetano. Na cerimónia da tomada de posse, Salazar pronuncia um discurso em que se dirige tanto aos seus ex-correligionários católicos como em geral aos monárquicos. Aos filiados no Centro Católico, diz que se deveriam doravante abster de qualquer actividade política, dedicando-se apenas à "acção social"; aos monárquicos, dá por encerrada a questão do regime após a recente morte de D. Manuel II, dizendo: ”leva-o a morte, sem descendentes, nem sucessor”.
Eis a resposta dos integralistas:
"O Dr. Salazar não pode ter a compreensão do que seja a dor de uma inteligência, posta à prova da adversidade política.
Podia ser democrata e parlamentarista, a 27 de Maio de 1926. Anti-democrata e corporativista começaria a ser em 28, encontrando já o caminho aberto à sua acção e tornando-se assim o beneficiário do alheio esforço.
Ao nosso caso de consciência política consagrámos a mocidade, já distante, e por ele muitas vezes temos arriscado a vida. Há muito que o resolvemos sem ter de nos penitenciar...
O sr. Dr. Oliveira Salazar só agora resolve o seu, e com tal desembaraço o faz, que não permite dúvidas a ninguém sobre a coerência do seu pensamento com a sua acção futura.
Antes assim. Sempre admirámos a sinceridade, tanto nos homens públicos, como nos particulares, mas ficamos ainda certos de que se não mata uma causa política por asfixia, nem se pode empreender a regeneração nacional com ambiciosos e trânsfugas, gafaria moral de que são feitas normalmente as camarilhas de aduladores.”
Em Dezembro, o Diário de Notícias publicou uma série de entrevistas de Oliveira Salazar, chefe do governo, com António Ferro. A primeira reacção de Rolão Preto, um dos obreiros-chave do 28 de Maio, foi elucidativa: "Salazar não está dentro da Revolução, não comunga dos seus ideais fundamentais” (6 de Janeiro de 1933). Pela mesma altura, Hipólito Raposo tinha já criado um neologismo político para caracterizar o novo regime oligárquico em gestação: "Salazarquia".
Nesse início de 1933, não eram ainda explícitos os propósitos totalitários de Salazar - a Lei Eleitoral só virá a ser publicada em 6 de Novembro de 1934 - mas, não estaria também Rolão Preto alinhado com os fascismos então em ascensão eleitoral na Europa? A United Press colocou-he a seguinte pergunta: "- Existe alguma diferença entre o Nacional-Sindicalismo e o fascismo ou o hitlerismo?”
Eis a sua resposta:
"O fascismo, o hitlerismo são totalitários divinizadores do Estado cesarista, nós outros pretendemos encontrar na tradição cristianíssima do Povo Português a fórmula que permita harmonizar a soberania indiscutível do Interesse Nacional com a nossa moral de homens livres, de vivos seres espirituais” (Revolução, nº 258, 10 de Janeiro de 1933).
O texto do folheto que aqui se reproduz - Salazar e a sua época - Comentário às entrevistas do actual chefe de governo com o jornalista António Ferro, então publicado, veio também fixar os rigorosos termos da sua demarcação, tanto em relação à Salazarquia, como em relação aos emergentes estatismos totalitários.
Rolão Preto identifica aqui quatro problemas maiores a resolver pela Ditadura: militar, económico, social e político.
No aspecto militar, prover à defesa, sobretudo à defesa externa, era urgente quando estava causando alarme "a pobreza do nosso exército diante do vulcão temeroso que é a Espanha nossa vizinha". Havia também o problema económico e quem colocasse em dúvida os resultados da avareza financeira do Ditador, considerando urgente olhar à "situação desesperada da economia nacional mesmo com o prejuízo do equilíbrio das contas públicas". Foi, porém, ao abordar o problema social que Rolão Preto fez a mais importante demarcação. Seguindo-se o critério de Salazar, exposto nas entrevistas, fundado em dicotomias como "proletariado" e "anti-proletariado", como se fazia no tempo de Jaurès e Karl Liebknech, era mostrar-se "impermeável aos ensinamentos da revolução industrial moderna". Os conceitos da social-democracia, eram já "uma pura ficção": "quem actua no seio das massas operárias, quem manobra nos sindicatos, ou são as influencias pessoais de certos chefes burgueses, ou o extremismo violento e absorvente dos comunistas... ou a polícia."
Para Rolão Preto, a solução do problema social não estava no Estado, nem em qualquer forma de Estatismo:
"... aqueles que julgam que bastará decretar o sindicalismo para que ele viva e conduza a vida nacional enganam-se redondamente.
Não é depois de cem anos de liberalismo económico e social, em que se matou todo o espírito associativo, em que se combateram todos os impulsos da solidariedade profissional por contrários à disciplina dos partidos políticos; não é depois de cem anos de liberal-democracia em que todos nasceram e viveram na desconfiança mútua, no ódio sectário das facções; não é depois de cem anos de permanente desagregação nacional que se vai, a frio e diante da indiferença com que tudo o que vem do Estado é recebido, decretar a vida sindical e corporativa."
Era pois necessário continuar a propagar o ideário Sindicalista, indo para além do clamor das reivindicações da mão-de-obra, pugnando pela organização e o voto de todos os trabalhadores, seja qual for a sua função ou categoria.
Naquela conjuntura, a solução dos problemas económicos e sociais impunha, no entanto, segundo Rolão Preto, uma firme e testada autoridade política: estaria Salazar à altura do que se lhe exigia?
Uma pergunta crucial foi ali colocada por Rolão Preto: "É Salazar um chefe político?"
Eis o seu comentário:
“Na segunda entrevista a Ferro, o Ditador das Finanças declara simples e sinceramente que o não é, nem o pretende ser.
A confissão tem uma nobreza que cativa.
Num país em que tantos são chefes por vaidade, há um homem que o não quer ser por modéstia.
Salazar, chefe do governo, é pois apenas o fulcro supremo de uma engrenagem, a cúpula necessária de um edifício que a revolução criou e mantém".
Entre Salazar e os outros ditadores, havia pois uma diferença essencial: "os outros conquistaram eles o poder, Salazar aceitou que outros lhe conquistassem o lugar mas não deu para isso o seu esforço".
Conclusão de Rolão Preto, que surge destacada graficamente do corpo do texto:
"Salazar, para realizar a sua obra política, tem que pôr ousadamente a sua candidatura de chefe nacional, sujeitando-se a todos os riscos, mas colhendo todos os louros da vitória".
Em 19 de Março de 1933, como se previa, o projecto de Constituição da República foi submetido a plebiscito e aprovado sem qualquer tentativa de oposição. As abstensões contavam como votos favoráveis, anunciara previamente o governo.
Após a morte de D. Manuel II, em Julho de 1932, todos os organismos monárquicos existentes reconheceram D. Duarte Nuno de Bragança como legítimo sucessor dos reis de Portugal, decidindo dissolver-se para integrar a Causa Monárquica. A Junta Central do Integralismo Lusitano não foi excepção, anunciando, em Julho de 1933, a sua dissolução enquanto organização política.
Aos integralistas restava doravante o Movimento Nacional-Sindicalista que, sem se saber ainda como viria a ser organizado o Colégio Eleitoral, começava a preparar-se para disputar as eleições. O folheto de Rolão Preto, Salazar e a sua época, concluía precisamente tendo em vista a realização de futuras eleições.
No ano seguinte, Oliveira Salazar resolveu não correr qualquer risco e, em 14 de Julho, mandou prender e desterrar para Espanha, Rolão Preto e Alberto de Monsaraz, os dois chefes integralistas do Movimento Nacional-Sindicalista. Em 29 de Julho, dois dias antes de encerrar o processo de recenseamento eleitoral, o Nacional-Sindicalismo foi oficialmente proibido, sendo os seus aderentes e simpatizantes convidados a aderir à União Nacional ou, sendo estudantes, à Acção Escolar de Vanguarda.
Foi ainda necessário esperar pelo dia 6 de Novembro de 1934, para ser por fim revelado, sem subterfúgios, um Estatismo totalitário no lançamento do Estado Novo. A eleição para a Assembleia Nacional iria ser realizada em colégio eleitoral único, de lista completa, em obediência a um novo conceito constitucional, segundo qual "a Nação é um todo orgânico superior e diferente dos indivíduos que a compõem em determinado ponto da sua evolução, uma unidade moral política e económica, formando um todo uno com o Estado e com ele integrado." (Decreto-lei 24:631, de 6 de Novembro de 1934). Dois anos antes, Benito Mussolini definira a doutrina do Fascismo através desse conceito de um todo uno da Nação integrado no Estado: "o estado fascista, síntese e unidade de todo valor, interpreta, desenvolve e fortalece toda a vida do povo./ Nem indivíduos fora do Estado, nem grupos (partidos políticos, associações, sindicatos, classes)." A pedra angular da Doutrina fascista, como explicou Mussolini, é essa concepção totalitária do Estado - ganhava por fim pleno sentido a palavra "unitária" usada na definição constitucional: "O Estado Português é uma República unitária e corporativa" (Artº 5).
Em 16 de Dezembro de 1934, realizou-se assim em Portugal uma bizarra farsa eleitoral, a que nem mesmo faltou uma justificação totalitária: apenas o partido do governo foi admitido ao sufrágio, houve censura na imprensa, proibição absoluta de qualquer propaganda da oposição, sendo previamente presos e desterrados os mais destacados opositores, Rolão Preto e Alberto de Monsaraz. O comunicado da Junta de Acção Nacional-Sindicalista, emitido na véspera do Natal desse ano, considerava que Salazar estava bem consciente da sua impopularidade, confessando "o evidente temor que o afligia, de ser julgado, livre e lealmente, pela Nação."
Em 1936, no livro Justiça!, Rolão Preto classificou e denunciou o estatismo totalitário triunfante no estabelecimento da Salazarquia. O livro foi retirado de circulação e proibido pelo governo de Oliveira Salazar.
28 de Maio de 2024, José Manuel Quintas
A revolta militar que eclodira em Braga, em 28 de Maio de 1926, tivera em Rolão Preto um dos seus principais protagonistas civis. Colaborador do general Gomes da Costa, Rolão Preto escreveu o Manifesto em 12 pontos afixado nas paredes de Braga, no qual se formulavam as bases programáticas do movimento militar, sendo depois o director efectivo do seu órgão de imprensa - Revolução Nacional; a direcção aparente era de Armando Pinto Correia, ajudante do general, mas era Rolão Preto o director efectivo, assinando com os pseudónimos de "Plures" e "Pluribus".
O general Gomes da Costa apresentou o seu projecto constitucional em 14 de Junho. Outros integralistas da Junta Central do Integralismo Lusitano - Hipólito Raposo, Pequito Rebelo, Afonso Lucas - estão entre os seus principais mentores e redactores. Nesse projecto, previa-se o estabelecimento de uma representação nacional por delegação directa dos municípios, dos sindicatos e das corporações (O "programa retroactivo" do 28 de Maio). Após o afastamento do general Gomes da Costa da direcção da Ditadura Militar - em 9 de Julho, foi preso e deportado para os Açores - os Integralistas ficaram naturalmente apreensivos. Seguiram-se anos de incerteza e expectativa até que, em 30 de Julho de 1930, Salazar promete abandonar a ficção da representação por intermédio de partidos políticos. Reacende-se então a esperança entre os integralistas que, através de Hipólito Raposo, retomam na imprensa a divulgação do seu ideário descentralizador e municipalista.
Quando o projecto constitucional do governo foi por fim apresentado publicamente em Março de 1932, a decepção foi total. Adoptava-se o modelo bicamaral que vinha sendo proposto pelo grupo da Seara Nova, tendo por base o restabelecimento de uma câmara legislativa com partidos políticos. Previa-se também uma câmara corporativa, mas apenas com carácter consultivo. O protesto dos integralistas fez-se imediatamente ouvir: "Não nos alegram as desventuras e as misérias, mas chegou a hora de celebrar a justificação com que sempre fulminámos os vícios e abusos do dinheiro na aliança dos plutocratas de todas as cores com a Democracia Política de todos os partidos. O século XX tem de repudiar uma herança maldita, esse brilho metálico de um falso progresso que foi crestando de aridez as almas, cobriu a terra de máquinas e espalhou a fome no mundo."
Foi nesse contexto que, em Maio, dois membros da Junta Central - Alberto de Monsaraz e Rolão Preto - se juntaram aos jovens do jornal Revolução para lançar o Movimento Nacional-Sindicalista. Hipólito Raposo, aprofundava então o teor das objecções dos integralistas, referindo-se a uma deliberada confusão de poderes no projecto constitucional: por um lado, restaurava-se a engrenagem parlamentar e, por outro lado, propunha-se representar o que não existe: "em Portugal não há corporações do Trabalho; há pequenas assembleias partidárias, dentro de algumas profissões. Não é possível mesmo com a força de uma ditadura, organizar a representação do que não existe. Depois, a Câmara Corporativa não é componente da Assembleia Nacional."
Os estatutos do que virá a ser o partido único do regime - a União Nacional - são publicados em Agosto e, em Novembro, tomam posse as respectivas Comissão Central e Junta Consultiva, na qual surgem dois dissidentes do Integralismo Lusitano: João do Amaral e Marcello Caetano. Na cerimónia da tomada de posse, Salazar pronuncia um discurso em que se dirige tanto aos seus ex-correligionários católicos como em geral aos monárquicos. Aos filiados no Centro Católico, diz que se deveriam doravante abster de qualquer actividade política, dedicando-se apenas à "acção social"; aos monárquicos, dá por encerrada a questão do regime após a recente morte de D. Manuel II, dizendo: ”leva-o a morte, sem descendentes, nem sucessor”.
Eis a resposta dos integralistas:
"O Dr. Salazar não pode ter a compreensão do que seja a dor de uma inteligência, posta à prova da adversidade política.
Podia ser democrata e parlamentarista, a 27 de Maio de 1926. Anti-democrata e corporativista começaria a ser em 28, encontrando já o caminho aberto à sua acção e tornando-se assim o beneficiário do alheio esforço.
Ao nosso caso de consciência política consagrámos a mocidade, já distante, e por ele muitas vezes temos arriscado a vida. Há muito que o resolvemos sem ter de nos penitenciar...
O sr. Dr. Oliveira Salazar só agora resolve o seu, e com tal desembaraço o faz, que não permite dúvidas a ninguém sobre a coerência do seu pensamento com a sua acção futura.
Antes assim. Sempre admirámos a sinceridade, tanto nos homens públicos, como nos particulares, mas ficamos ainda certos de que se não mata uma causa política por asfixia, nem se pode empreender a regeneração nacional com ambiciosos e trânsfugas, gafaria moral de que são feitas normalmente as camarilhas de aduladores.”
Em Dezembro, o Diário de Notícias publicou uma série de entrevistas de Oliveira Salazar, chefe do governo, com António Ferro. A primeira reacção de Rolão Preto, um dos obreiros-chave do 28 de Maio, foi elucidativa: "Salazar não está dentro da Revolução, não comunga dos seus ideais fundamentais” (6 de Janeiro de 1933). Pela mesma altura, Hipólito Raposo tinha já criado um neologismo político para caracterizar o novo regime oligárquico em gestação: "Salazarquia".
Nesse início de 1933, não eram ainda explícitos os propósitos totalitários de Salazar - a Lei Eleitoral só virá a ser publicada em 6 de Novembro de 1934 - mas, não estaria também Rolão Preto alinhado com os fascismos então em ascensão eleitoral na Europa? A United Press colocou-he a seguinte pergunta: "- Existe alguma diferença entre o Nacional-Sindicalismo e o fascismo ou o hitlerismo?”
Eis a sua resposta:
"O fascismo, o hitlerismo são totalitários divinizadores do Estado cesarista, nós outros pretendemos encontrar na tradição cristianíssima do Povo Português a fórmula que permita harmonizar a soberania indiscutível do Interesse Nacional com a nossa moral de homens livres, de vivos seres espirituais” (Revolução, nº 258, 10 de Janeiro de 1933).
O texto do folheto que aqui se reproduz - Salazar e a sua época - Comentário às entrevistas do actual chefe de governo com o jornalista António Ferro, então publicado, veio também fixar os rigorosos termos da sua demarcação, tanto em relação à Salazarquia, como em relação aos emergentes estatismos totalitários.
Rolão Preto identifica aqui quatro problemas maiores a resolver pela Ditadura: militar, económico, social e político.
No aspecto militar, prover à defesa, sobretudo à defesa externa, era urgente quando estava causando alarme "a pobreza do nosso exército diante do vulcão temeroso que é a Espanha nossa vizinha". Havia também o problema económico e quem colocasse em dúvida os resultados da avareza financeira do Ditador, considerando urgente olhar à "situação desesperada da economia nacional mesmo com o prejuízo do equilíbrio das contas públicas". Foi, porém, ao abordar o problema social que Rolão Preto fez a mais importante demarcação. Seguindo-se o critério de Salazar, exposto nas entrevistas, fundado em dicotomias como "proletariado" e "anti-proletariado", como se fazia no tempo de Jaurès e Karl Liebknech, era mostrar-se "impermeável aos ensinamentos da revolução industrial moderna". Os conceitos da social-democracia, eram já "uma pura ficção": "quem actua no seio das massas operárias, quem manobra nos sindicatos, ou são as influencias pessoais de certos chefes burgueses, ou o extremismo violento e absorvente dos comunistas... ou a polícia."
Para Rolão Preto, a solução do problema social não estava no Estado, nem em qualquer forma de Estatismo:
"... aqueles que julgam que bastará decretar o sindicalismo para que ele viva e conduza a vida nacional enganam-se redondamente.
Não é depois de cem anos de liberalismo económico e social, em que se matou todo o espírito associativo, em que se combateram todos os impulsos da solidariedade profissional por contrários à disciplina dos partidos políticos; não é depois de cem anos de liberal-democracia em que todos nasceram e viveram na desconfiança mútua, no ódio sectário das facções; não é depois de cem anos de permanente desagregação nacional que se vai, a frio e diante da indiferença com que tudo o que vem do Estado é recebido, decretar a vida sindical e corporativa."
Era pois necessário continuar a propagar o ideário Sindicalista, indo para além do clamor das reivindicações da mão-de-obra, pugnando pela organização e o voto de todos os trabalhadores, seja qual for a sua função ou categoria.
Naquela conjuntura, a solução dos problemas económicos e sociais impunha, no entanto, segundo Rolão Preto, uma firme e testada autoridade política: estaria Salazar à altura do que se lhe exigia?
Uma pergunta crucial foi ali colocada por Rolão Preto: "É Salazar um chefe político?"
Eis o seu comentário:
“Na segunda entrevista a Ferro, o Ditador das Finanças declara simples e sinceramente que o não é, nem o pretende ser.
A confissão tem uma nobreza que cativa.
Num país em que tantos são chefes por vaidade, há um homem que o não quer ser por modéstia.
Salazar, chefe do governo, é pois apenas o fulcro supremo de uma engrenagem, a cúpula necessária de um edifício que a revolução criou e mantém".
Entre Salazar e os outros ditadores, havia pois uma diferença essencial: "os outros conquistaram eles o poder, Salazar aceitou que outros lhe conquistassem o lugar mas não deu para isso o seu esforço".
Conclusão de Rolão Preto, que surge destacada graficamente do corpo do texto:
"Salazar, para realizar a sua obra política, tem que pôr ousadamente a sua candidatura de chefe nacional, sujeitando-se a todos os riscos, mas colhendo todos os louros da vitória".
Em 19 de Março de 1933, como se previa, o projecto de Constituição da República foi submetido a plebiscito e aprovado sem qualquer tentativa de oposição. As abstensões contavam como votos favoráveis, anunciara previamente o governo.
Após a morte de D. Manuel II, em Julho de 1932, todos os organismos monárquicos existentes reconheceram D. Duarte Nuno de Bragança como legítimo sucessor dos reis de Portugal, decidindo dissolver-se para integrar a Causa Monárquica. A Junta Central do Integralismo Lusitano não foi excepção, anunciando, em Julho de 1933, a sua dissolução enquanto organização política.
Aos integralistas restava doravante o Movimento Nacional-Sindicalista que, sem se saber ainda como viria a ser organizado o Colégio Eleitoral, começava a preparar-se para disputar as eleições. O folheto de Rolão Preto, Salazar e a sua época, concluía precisamente tendo em vista a realização de futuras eleições.
No ano seguinte, Oliveira Salazar resolveu não correr qualquer risco e, em 14 de Julho, mandou prender e desterrar para Espanha, Rolão Preto e Alberto de Monsaraz, os dois chefes integralistas do Movimento Nacional-Sindicalista. Em 29 de Julho, dois dias antes de encerrar o processo de recenseamento eleitoral, o Nacional-Sindicalismo foi oficialmente proibido, sendo os seus aderentes e simpatizantes convidados a aderir à União Nacional ou, sendo estudantes, à Acção Escolar de Vanguarda.
Foi ainda necessário esperar pelo dia 6 de Novembro de 1934, para ser por fim revelado, sem subterfúgios, um Estatismo totalitário no lançamento do Estado Novo. A eleição para a Assembleia Nacional iria ser realizada em colégio eleitoral único, de lista completa, em obediência a um novo conceito constitucional, segundo qual "a Nação é um todo orgânico superior e diferente dos indivíduos que a compõem em determinado ponto da sua evolução, uma unidade moral política e económica, formando um todo uno com o Estado e com ele integrado." (Decreto-lei 24:631, de 6 de Novembro de 1934). Dois anos antes, Benito Mussolini definira a doutrina do Fascismo através desse conceito de um todo uno da Nação integrado no Estado: "o estado fascista, síntese e unidade de todo valor, interpreta, desenvolve e fortalece toda a vida do povo./ Nem indivíduos fora do Estado, nem grupos (partidos políticos, associações, sindicatos, classes)." A pedra angular da Doutrina fascista, como explicou Mussolini, é essa concepção totalitária do Estado - ganhava por fim pleno sentido a palavra "unitária" usada na definição constitucional: "O Estado Português é uma República unitária e corporativa" (Artº 5).
Em 16 de Dezembro de 1934, realizou-se assim em Portugal uma bizarra farsa eleitoral, a que nem mesmo faltou uma justificação totalitária: apenas o partido do governo foi admitido ao sufrágio, houve censura na imprensa, proibição absoluta de qualquer propaganda da oposição, sendo previamente presos e desterrados os mais destacados opositores, Rolão Preto e Alberto de Monsaraz. O comunicado da Junta de Acção Nacional-Sindicalista, emitido na véspera do Natal desse ano, considerava que Salazar estava bem consciente da sua impopularidade, confessando "o evidente temor que o afligia, de ser julgado, livre e lealmente, pela Nação."
Em 1936, no livro Justiça!, Rolão Preto classificou e denunciou o estatismo totalitário triunfante no estabelecimento da Salazarquia. O livro foi retirado de circulação e proibido pelo governo de Oliveira Salazar.
28 de Maio de 2024, José Manuel Quintas
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O presente folheto não é um trabalho de crítica que as circunstâncias, de resto, desaconselhariam. É apenas a contribuição do seu autor para melhor esclarecimento da fisionomia política de Salazar posta em confronto com a sua época.
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É Salazar um chefe político?
Na segunda entrevista a A. Ferro, o Ditador das Finanças declara simples e sinceramente que o não é, nem o pretende ser. A confissão tem uma nobreza que cativa.
Num país em que tantos são chefes por vaidade, há um homem que o não quer ser por modéstia.
Salazar, chefe do governo, é pois apenas o fulcro supremo de uma engrenagem, a cúpula necessária de um edifício que a revolução criou e mantém.
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... os outros conquistaram eles o poder, Salazar aceitou que outros lhe conquistassem o lugar mas não deu para isso o seu esforço.
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Salazar, para realizar a sua obra política, tem que pôr ousadamente a sua candidatura de chefe nacional, sujeitando-se a todos os riscos, mas colhendo todos os louros da vitória.
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É Salazar um chefe político?
Na segunda entrevista a A. Ferro, o Ditador das Finanças declara simples e sinceramente que o não é, nem o pretende ser. A confissão tem uma nobreza que cativa.
Num país em que tantos são chefes por vaidade, há um homem que o não quer ser por modéstia.
Salazar, chefe do governo, é pois apenas o fulcro supremo de uma engrenagem, a cúpula necessária de um edifício que a revolução criou e mantém.
...
... os outros conquistaram eles o poder, Salazar aceitou que outros lhe conquistassem o lugar mas não deu para isso o seu esforço.
...
Salazar, para realizar a sua obra política, tem que pôr ousadamente a sua candidatura de chefe nacional, sujeitando-se a todos os riscos, mas colhendo todos os louros da vitória.
Rolão Preto, Salazar e a sua época, Janeiro de 1933 (aqui reproduzido a partir de Obras Completas, Volume I, Edições Colibri, 2015, pp. 213-230)