Democracia, segundo o Integralismo Lusitano
O programa do Integralismo Lusitano, apresentado na revista Nação Portuguesa incluiu um propósito “anti-parlamentar” - "O que nós queremos - monarquia orgânica, tradicionalista, anti-parlamentar" - denunciando, desde o seu preambulo, o que designam por "mentira democrático-parlamentar".
Na linguagem dos integralistas, expressões como “parlamentarismo”, “democracia parlamentar”, ou simplesmente "a democracia”, são usadas como sinónimos de regimes políticos centralizados sob o domínio de oligarquias. Ao falarem de "democracia" os integralistas referem-se sempre, explicita ou implicitamente, a uma MENTIRA. O voto individualista, mesmo que viesse um dia a ser universal, ao ser atirado para dentro de uma urna para escolher políticos organizados em partidos ideológicos - esse era o ponto essencial - sofismava uma autentica representação popular, sendo denunciada, rejeitada, como "a mentira democrático-parlamentar" - a "estupenda burla" (Hipólito Raposo), a "enganosa democracia" (Luís de Almeida Braga) ou o “ignóbil embuste” (António Sardinha).
Em "Aqui d'El-Rei!..." (1914), escrevia João do Amaral: "nas democracias, a luta das classes termina sempre pela vitória da mais forte, a que tem dinheiro, da que, munindo os cofres dos partidos para a campanha eleitoral, traz o poder acorrentado à sua força." E, citando o sindicalista Georges Sorel: "la democratie est le pays de Cocagne rêvé par das financiers sans scrupules" (a democracia é o paraíso na terra sonhado pelos financeiros sem escrúpulos).
Nas páginas do primeiro número da revista Nação Portuguesa, António Sardinha retomava também os escritores que "qualificam as situações electivas, em que o agregado se confrange na luta cúpida das clientelas, como governos de classe contra as classes, - como o império da burguesia financeira, desnorteando pelos ergotismos anfigúricos dos doutores, pela falácia enredadora dos verborreicos, as reparações exigidas pelo operário, quase esmagado na rudeza brônzea da Oferta-e-Procura". Havia que atentar em alguns paralelismos e antecedentes históricos: "Corresponde ... a forma republicana a um hermético sistema de casta onde a concentração do domínio se reparte por um clã reduzido, abastecendo-se do privilégio e da isenção. Ontem as composições aristocráticas, monopolizando os meios e os fins, dispondo em absoluto da terra, da numária, dos cargos, do sacerdócio, - como na Roma consular - hoje as supostas democracias devoradas pelo plutocratismo, com o capitalista a aprisioná-las nos tentáculos sôfregos". (ver António Sardinha, "Teófilo, Mestre da Contra-Revolução", in Nação Portuguesa - Revista de filosofia política, ano I, nº 1, 8 de Abril de 1914, pp. 7-15 (I); nº 2, 8 de Maio de 1914, pp. 38-52 (II); nº 3, Junho de 1914, pp. 92-100 (III); reeditado em Glossário dos Tempos, Lisboa, Edições Gama, 1942, pp. 123-214)
Em suma, o que a chamada “democracia parlamentar” estabelece é "o governo de uma aristocracia plutocrática contra os interesses de uma grande massa de deserdados". Decerto que o poder das multidões só pode ser exercido por delegação, mas ao centralismo e às ficções ou abstrações das representações político-ideológicas, das "esquerdas" e das "direitas", os integralistas contrapunham uma descentralização dos poderes do Estado e uma representação nacional por delegação directa dos municípios e sindicatos. Acolhiam a proposta de Alexandre Herculano na Carta aos Eleitores do Círculo Eleitoral de Sintra (1858) e do essencial do diagnóstico da geração de 70, como o de Oliveira Martins em As Eleições (1878) - seria possível estabelecer uma autêntica democracia em Portugal se a escolha dos membros do Parlamento resultasse de uma delegação directa das comunidades (municípios) e de uma representação sindicalista dos interesses e das profissões. [ver também a página "Oligarquia e Corrupção"].
Ao lançarem o seu movimento de ideias políticas, os integralistas mostraram-se optimistas: “Cotejados hoje os dois sistemas de representação, nós assistimos ao descrédito mortal do parlamentarismo, que cede sensivelmente à velha representação territorial e técnica o lugar que em justiça lhe pertence.” (cf. António Sardinha "O testamento de Garrett" (1915), Glossário dos Tempos, Porto, Edições Gama, 1942, pp. 51-119).
Durante todo o século XX, o ideário democrático do Integralismo Lusitano, de base municipal e sindical, sofreu porém sucessivas e evidentes derrotas, e sempre que esteve perto de alguma forma de realização concreta: o presidente Sidónio Pais foi assassinado, tombando com ele o projecto de uma representação socio-profissional no Senado; o general Gomes da Costa foi preso e deportado para os Açores ao defender uma representação nacional por delegação directa dos municípios e das profissões; Francisco Rolão Preto (1893-1977) e Alberto de Monsaraz (1889-1959) foram presos e expulsos de Portugal quando reagiam contra a implantação de um regime de inspiração fascista - o Estado Novo -, com partido único e corporativismo de Estado.
Após o 25 de Abril de 1974, os portugueses passaram a usufruir de maiores liberdades cívicas e políticas mas, na perspectiva integralista, ainda longe de uma autêntica democracia. Se os regimes oligárquicos assentes em representações por intermédio de partidos político-ideológicos forem considerados como a única forma aceite de "democracia", então afirmar-se-ão anti-democratas, traduzindo desse modo a sua "intransigência aos regimes de partidos". Para os integralistas, como para Mário Saraiva, por exemplo, uma autêntica democracia significa "autodeterminação do Povo, nas condições e nos meios onde efectivamente ela se possa exercer, sem adulterações nem sofismas. Nos Municípios e nos Sindicatos, está aí o lugar. Aliás, dentro deste sentido, foi a doutrina democrática que vigorou ao longo da nossa Monarquia medieval. / Dentro dos seus concelhos, o Povo administrava-se autonomamente, elaborava as suas leis próprias, as suas posturas, escolhia os seus governantes e os seus párocos, elegia os seus magistrados e, até, constituía a sua própria força armada. / Quem tenha lido os nossos forais, não poderá em justiça negar que essa vida concelhia, tão independente e tão importante, tenha sido, até hoje, o exemplo mais concreto, talvez único, do «governo do Povo pelo Povo»." (Mário Saraiva, Às portas da Cidade, Lisboa, 1976, p. 186; negritos acrescentados).
Alguns anos depois, em Outra Democracia (1983), acrescentava Mário Saraiva: “A decrépita democracia dos partidos políticos continua a ser, na inércia secular da sua forma primitiva, o ídolo apregoado por uns e por outros, como se consubstanciasse o grau mais elevado da perfeição atingível. Deplorável sintoma de debilidade mental!” (…) "... ressalta à evidência o absurdo, a irracionalidade, a fraude, de, a priori, se vincular a Democracia a um prefixado modelo de governo, um especificado regime. Não pode haver uma forma canónica de Democracia. A existência de autêntica democracia consiste em o povo escolher livremente a forma do seu governo e as pessoas dos seus governantes.”
A quarta-via política aberta por Francisco Rolão Preto em defesa de um ideário democrático de base municipal e sindical, rompendo com os vários regimes centralistas e oligárquicos saídos da Revolução francesa de 1789 - democratismo, comunismo e fascismo - está no cerne do legado político do Integralismo Lusitano, acolhido, entre outros, por Mário Saraiva e António Jacinto Ferreira.
Na linguagem dos integralistas, expressões como “parlamentarismo”, “democracia parlamentar”, ou simplesmente "a democracia”, são usadas como sinónimos de regimes políticos centralizados sob o domínio de oligarquias. Ao falarem de "democracia" os integralistas referem-se sempre, explicita ou implicitamente, a uma MENTIRA. O voto individualista, mesmo que viesse um dia a ser universal, ao ser atirado para dentro de uma urna para escolher políticos organizados em partidos ideológicos - esse era o ponto essencial - sofismava uma autentica representação popular, sendo denunciada, rejeitada, como "a mentira democrático-parlamentar" - a "estupenda burla" (Hipólito Raposo), a "enganosa democracia" (Luís de Almeida Braga) ou o “ignóbil embuste” (António Sardinha).
Em "Aqui d'El-Rei!..." (1914), escrevia João do Amaral: "nas democracias, a luta das classes termina sempre pela vitória da mais forte, a que tem dinheiro, da que, munindo os cofres dos partidos para a campanha eleitoral, traz o poder acorrentado à sua força." E, citando o sindicalista Georges Sorel: "la democratie est le pays de Cocagne rêvé par das financiers sans scrupules" (a democracia é o paraíso na terra sonhado pelos financeiros sem escrúpulos).
Nas páginas do primeiro número da revista Nação Portuguesa, António Sardinha retomava também os escritores que "qualificam as situações electivas, em que o agregado se confrange na luta cúpida das clientelas, como governos de classe contra as classes, - como o império da burguesia financeira, desnorteando pelos ergotismos anfigúricos dos doutores, pela falácia enredadora dos verborreicos, as reparações exigidas pelo operário, quase esmagado na rudeza brônzea da Oferta-e-Procura". Havia que atentar em alguns paralelismos e antecedentes históricos: "Corresponde ... a forma republicana a um hermético sistema de casta onde a concentração do domínio se reparte por um clã reduzido, abastecendo-se do privilégio e da isenção. Ontem as composições aristocráticas, monopolizando os meios e os fins, dispondo em absoluto da terra, da numária, dos cargos, do sacerdócio, - como na Roma consular - hoje as supostas democracias devoradas pelo plutocratismo, com o capitalista a aprisioná-las nos tentáculos sôfregos". (ver António Sardinha, "Teófilo, Mestre da Contra-Revolução", in Nação Portuguesa - Revista de filosofia política, ano I, nº 1, 8 de Abril de 1914, pp. 7-15 (I); nº 2, 8 de Maio de 1914, pp. 38-52 (II); nº 3, Junho de 1914, pp. 92-100 (III); reeditado em Glossário dos Tempos, Lisboa, Edições Gama, 1942, pp. 123-214)
Em suma, o que a chamada “democracia parlamentar” estabelece é "o governo de uma aristocracia plutocrática contra os interesses de uma grande massa de deserdados". Decerto que o poder das multidões só pode ser exercido por delegação, mas ao centralismo e às ficções ou abstrações das representações político-ideológicas, das "esquerdas" e das "direitas", os integralistas contrapunham uma descentralização dos poderes do Estado e uma representação nacional por delegação directa dos municípios e sindicatos. Acolhiam a proposta de Alexandre Herculano na Carta aos Eleitores do Círculo Eleitoral de Sintra (1858) e do essencial do diagnóstico da geração de 70, como o de Oliveira Martins em As Eleições (1878) - seria possível estabelecer uma autêntica democracia em Portugal se a escolha dos membros do Parlamento resultasse de uma delegação directa das comunidades (municípios) e de uma representação sindicalista dos interesses e das profissões. [ver também a página "Oligarquia e Corrupção"].
Ao lançarem o seu movimento de ideias políticas, os integralistas mostraram-se optimistas: “Cotejados hoje os dois sistemas de representação, nós assistimos ao descrédito mortal do parlamentarismo, que cede sensivelmente à velha representação territorial e técnica o lugar que em justiça lhe pertence.” (cf. António Sardinha "O testamento de Garrett" (1915), Glossário dos Tempos, Porto, Edições Gama, 1942, pp. 51-119).
Durante todo o século XX, o ideário democrático do Integralismo Lusitano, de base municipal e sindical, sofreu porém sucessivas e evidentes derrotas, e sempre que esteve perto de alguma forma de realização concreta: o presidente Sidónio Pais foi assassinado, tombando com ele o projecto de uma representação socio-profissional no Senado; o general Gomes da Costa foi preso e deportado para os Açores ao defender uma representação nacional por delegação directa dos municípios e das profissões; Francisco Rolão Preto (1893-1977) e Alberto de Monsaraz (1889-1959) foram presos e expulsos de Portugal quando reagiam contra a implantação de um regime de inspiração fascista - o Estado Novo -, com partido único e corporativismo de Estado.
Após o 25 de Abril de 1974, os portugueses passaram a usufruir de maiores liberdades cívicas e políticas mas, na perspectiva integralista, ainda longe de uma autêntica democracia. Se os regimes oligárquicos assentes em representações por intermédio de partidos político-ideológicos forem considerados como a única forma aceite de "democracia", então afirmar-se-ão anti-democratas, traduzindo desse modo a sua "intransigência aos regimes de partidos". Para os integralistas, como para Mário Saraiva, por exemplo, uma autêntica democracia significa "autodeterminação do Povo, nas condições e nos meios onde efectivamente ela se possa exercer, sem adulterações nem sofismas. Nos Municípios e nos Sindicatos, está aí o lugar. Aliás, dentro deste sentido, foi a doutrina democrática que vigorou ao longo da nossa Monarquia medieval. / Dentro dos seus concelhos, o Povo administrava-se autonomamente, elaborava as suas leis próprias, as suas posturas, escolhia os seus governantes e os seus párocos, elegia os seus magistrados e, até, constituía a sua própria força armada. / Quem tenha lido os nossos forais, não poderá em justiça negar que essa vida concelhia, tão independente e tão importante, tenha sido, até hoje, o exemplo mais concreto, talvez único, do «governo do Povo pelo Povo»." (Mário Saraiva, Às portas da Cidade, Lisboa, 1976, p. 186; negritos acrescentados).
Alguns anos depois, em Outra Democracia (1983), acrescentava Mário Saraiva: “A decrépita democracia dos partidos políticos continua a ser, na inércia secular da sua forma primitiva, o ídolo apregoado por uns e por outros, como se consubstanciasse o grau mais elevado da perfeição atingível. Deplorável sintoma de debilidade mental!” (…) "... ressalta à evidência o absurdo, a irracionalidade, a fraude, de, a priori, se vincular a Democracia a um prefixado modelo de governo, um especificado regime. Não pode haver uma forma canónica de Democracia. A existência de autêntica democracia consiste em o povo escolher livremente a forma do seu governo e as pessoas dos seus governantes.”
A quarta-via política aberta por Francisco Rolão Preto em defesa de um ideário democrático de base municipal e sindical, rompendo com os vários regimes centralistas e oligárquicos saídos da Revolução francesa de 1789 - democratismo, comunismo e fascismo - está no cerne do legado político do Integralismo Lusitano, acolhido, entre outros, por Mário Saraiva e António Jacinto Ferreira.
A democracia orgânica, segundo o Integralismo Lusitano
Nas teorias contemporâneas da representação política, defrontam-se duas concepções que vão para além do político, tocando a própria noção de sociedade: para uns, "a sociedade é um corpo vivo"; para outros, a sociedade é "um agregado de indivíduos".
Ainda que sumariamente, importa esclarecer algumas diferenças essenciais entre essas duas concepções no plano dos fundamentos filosóficos porque, antes de se disputarem duas concepções de representação política, disputam-se duas concepções de sociedade e, antes de se disputarem duas concepções de sociedade, disputam-se duas concepções do homem e da natureza.
Para o naturalismo individualista (base filosófica da concepção inorgânica da sociedade) — de que Rousseau foi um dos máximos expoentes —, o estado natural do homem é o estado de isolamento individualista, sendo o contrato social um acto absolutamente voluntário e livre. Ao contrário, para a concepção orgânica — contando com S. Tomás de Aquino e Francisco Suárez entre os seus mais categorizados teorizadores — o homem é um ser social por natureza, concebido em sociedade e para viver em sociedade. Enquanto o pacto ou contrato social de que falava Rousseau é voluntário; o pacto ou contrato social de que falavam os Doutores da Igreja, longe de ser voluntário, é um ato imperado pela natureza humana.
Partindo de tão distintas concepções da natureza do homem e das sociedades, é natural que ao abordar o problema das formas de representação política, bem como o da própria origem e da legitimidade do poder, se acentue a oposição entre as duas teorias.
Na concepção inorgânica, o poder é considerado disperso nos indivíduos e expressa-se como vontade no momento da eleição. Como a soberania popular só se exerce quando se somam esses poderes, também uma só condição é suficiente para atribuir ou retirar legitimidade: a vontade do povo. Para uma concepção orgânica, de forma bem diferente, o poder político não se encontra atomizado, disperso pelos vários indivíduos de que se compõe a comunidade. O poder apenas se constitui no agregado social quando este se constitui em pessoa moral autónoma. E, ao constituir-se, o poder não é um simples somatório de parcelas, sendo antes uma espécie de propriedade — é uma realidade moral. Isto é, existe uma realidade moral no todo, que não resulta da soma das partes. Um exemplo clássico, muito referido, retirado do mundo físico, ajuda a explicar essa “espécie de propriedade” que define a realidade moral do poder político (ou soberania): a água, resultado da junção de oxigénio e hidrogénio, tem uma natureza que a define e que é diversa do simples somatório das propriedades dos elementos que a constituem. De modo análogo, também a soberania não é apenas a soma das vontades dispersas pelos membros da comunidade.
A soberania é algo que só existe na comunidade enquanto sociedade política constituída. A concepção inorgânica do poder político, além de lhe negar a sua realidade moral — abrindo a via pela qual a ditadura das maiorias se pode impor sem qualquer constrangimento; e, até hoje, sem olhar à cor política, sabemos como todos os regimes totalitários contemporâneos do Ocidente buscaram e obtiveram legalidade por via do sufrágio —, nega também, de forma mais ou menos mitigada, consoante os autores, que a sociedade antecede o Direito e o Estado. Ora, segundo a teoria orgânica — é o que importa aqui sublinhar e destacar quanto ao problema da representação política —, as personalidades de direito natural das entidades anteriores ao Estado (como a família, a freguesia, o município) são consideradas como realidades sociais concretas que o Estado deve respeitar nas suas autonomias e funções próprias. Mais: são essas entidades - as famílias, freguesias, municípios - e não as ideologias, que deveram estar na base da representação política, como aliás em geral acontece no norte da Europa e nos países de tradição democrática anglo-saxónica - Reino Unido, Canadá, Austrália, EUA, entre outros -, em que, nos seus parlamentos ou câmaras de representantes, se representam circunscrições ou comunidades. Os candidatos podem apresentar-se ao sufrágio por intermédio de partidos ideológicos, mas são eleitos em comunidades de residência e para representar essas comunidades (entre nós, era o que defendia Alexandre Herculano na sua Carta aos Eleitores do Círculo Eleitoral de Sintra, em 1858).
Porque é que, para um defensor de uma concepção orgânica de democracia, existe sofisma ou embuste no sufrágio individualista, ideológico e inorgânico?
Porque nesse tipo de sufrágio, — além de não se respeitar a pluralidade dos grupos que compõem a sociedade, e as diversas aspirações dos seus membros com seus direitos e interesses — apenas contam os indivíduos agregados em torno de projetos ideológicos acerca dos quais a grande maioria é incapaz de formular opiniões fundadas. A representação inorgânica contém como que um fundo monstruoso: o de forçar os cidadãos a opinar sobre assuntos e problemas que desconhece. Ao contrário, o voto orgânico lançado na urna por um eleitor de um Município ou Corpo Social, sabe o que vota porque vota em vista ao concreto interesse da localidade ou grupo sócio-profissional a que pertence, que faz parte do seu próprio interesse.
O integralista Mário Saraiva (1910-1998), exprimiu assim a vantagem da representação orgânica: "Cada pessoa cria os seus interesses, integra-se no seu meio, e sente espontaneamente os hábitos comuns dos grupos em que se integra. Aí traça os projetos dos seus desejos, levanta as esperanças do seu futuro. Pode não possuir preparação suficiente para votar um projeto ideológico, mas tem consciência das pessoas e das coisas do meio em que se move e com as quais está diretamente relacionado. Está, por exemplo, apto a escolher como seu representante um vizinho na sua freguesia, um camarada de trabalho para o sindicato, um consócio para uma sociedade, um agremiado para uma associação agrícola, comercial, industrial, etc." (in Outra Democracia - Uma Alternativa Nacional, 1983).
Em síntese, segundo a concepção orgânica, nas formas inorgânicas de representação há simultaneamente um sofisma e um déficit de representação. E o que defendem os defensores da democracia orgânica, entre os quais se destacaram os integralistas lusitanos, é que seja permitida a expressão ou a representação das pessoas através dos órgãos naturais a que pertencem no seio da sociedade — através das freguesias ou paróquias, dos municípios, das regiões, mas também por intermédio dos diversos esteios ou grupos sociais (de profissão, de atividade económica, de cultura, de espiritualidade, etc.) no seio dos quais contribuem, pela sua atividade e esforço, para o bem comum da sociedade. Os integralistas bateram-se sempre por uma representação municipal e sindical, como a base de uma autêntica representação democrática da República.
Na época em que o Integralismo Lusitano se lançou como movimento de ideias políticas, o republicano João Chagas não deixou de reconhecer implicitamente a mentira da "democracia parlamentar" então vigente, ao escrever num opúsculo, posto à venda no dia 3 de Maio de 1915 - “A Última Crise – Comentários à situação da República Portuguesa”: “A Nação é de todos, mas o Estado é nosso.”
José Manuel Quintas
10.01.2024
(Nota: este texto resulta de uma adaptação de um comentário publicado no fórum Unica Semper Avis, em 2001, no âmbito de uma discussão a respeito do conceito de democracia orgânica para Oliveira Martins ("Os costumes e as leis" in Dispersos, II, 1924, pp. 53-66; Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 24 de Agosto de 1891, em reacção crítica ao parlamentarismo partidocrático, neste particular um dos autores de referência dos integralistas, a par de Alexandre Herculano (Carta aos Eleitores do Círculo Eleitoral de Sintra) ou de Almeida Garrett.
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Ainda que sumariamente, importa esclarecer algumas diferenças essenciais entre essas duas concepções no plano dos fundamentos filosóficos porque, antes de se disputarem duas concepções de representação política, disputam-se duas concepções de sociedade e, antes de se disputarem duas concepções de sociedade, disputam-se duas concepções do homem e da natureza.
Para o naturalismo individualista (base filosófica da concepção inorgânica da sociedade) — de que Rousseau foi um dos máximos expoentes —, o estado natural do homem é o estado de isolamento individualista, sendo o contrato social um acto absolutamente voluntário e livre. Ao contrário, para a concepção orgânica — contando com S. Tomás de Aquino e Francisco Suárez entre os seus mais categorizados teorizadores — o homem é um ser social por natureza, concebido em sociedade e para viver em sociedade. Enquanto o pacto ou contrato social de que falava Rousseau é voluntário; o pacto ou contrato social de que falavam os Doutores da Igreja, longe de ser voluntário, é um ato imperado pela natureza humana.
Partindo de tão distintas concepções da natureza do homem e das sociedades, é natural que ao abordar o problema das formas de representação política, bem como o da própria origem e da legitimidade do poder, se acentue a oposição entre as duas teorias.
Na concepção inorgânica, o poder é considerado disperso nos indivíduos e expressa-se como vontade no momento da eleição. Como a soberania popular só se exerce quando se somam esses poderes, também uma só condição é suficiente para atribuir ou retirar legitimidade: a vontade do povo. Para uma concepção orgânica, de forma bem diferente, o poder político não se encontra atomizado, disperso pelos vários indivíduos de que se compõe a comunidade. O poder apenas se constitui no agregado social quando este se constitui em pessoa moral autónoma. E, ao constituir-se, o poder não é um simples somatório de parcelas, sendo antes uma espécie de propriedade — é uma realidade moral. Isto é, existe uma realidade moral no todo, que não resulta da soma das partes. Um exemplo clássico, muito referido, retirado do mundo físico, ajuda a explicar essa “espécie de propriedade” que define a realidade moral do poder político (ou soberania): a água, resultado da junção de oxigénio e hidrogénio, tem uma natureza que a define e que é diversa do simples somatório das propriedades dos elementos que a constituem. De modo análogo, também a soberania não é apenas a soma das vontades dispersas pelos membros da comunidade.
A soberania é algo que só existe na comunidade enquanto sociedade política constituída. A concepção inorgânica do poder político, além de lhe negar a sua realidade moral — abrindo a via pela qual a ditadura das maiorias se pode impor sem qualquer constrangimento; e, até hoje, sem olhar à cor política, sabemos como todos os regimes totalitários contemporâneos do Ocidente buscaram e obtiveram legalidade por via do sufrágio —, nega também, de forma mais ou menos mitigada, consoante os autores, que a sociedade antecede o Direito e o Estado. Ora, segundo a teoria orgânica — é o que importa aqui sublinhar e destacar quanto ao problema da representação política —, as personalidades de direito natural das entidades anteriores ao Estado (como a família, a freguesia, o município) são consideradas como realidades sociais concretas que o Estado deve respeitar nas suas autonomias e funções próprias. Mais: são essas entidades - as famílias, freguesias, municípios - e não as ideologias, que deveram estar na base da representação política, como aliás em geral acontece no norte da Europa e nos países de tradição democrática anglo-saxónica - Reino Unido, Canadá, Austrália, EUA, entre outros -, em que, nos seus parlamentos ou câmaras de representantes, se representam circunscrições ou comunidades. Os candidatos podem apresentar-se ao sufrágio por intermédio de partidos ideológicos, mas são eleitos em comunidades de residência e para representar essas comunidades (entre nós, era o que defendia Alexandre Herculano na sua Carta aos Eleitores do Círculo Eleitoral de Sintra, em 1858).
Porque é que, para um defensor de uma concepção orgânica de democracia, existe sofisma ou embuste no sufrágio individualista, ideológico e inorgânico?
Porque nesse tipo de sufrágio, — além de não se respeitar a pluralidade dos grupos que compõem a sociedade, e as diversas aspirações dos seus membros com seus direitos e interesses — apenas contam os indivíduos agregados em torno de projetos ideológicos acerca dos quais a grande maioria é incapaz de formular opiniões fundadas. A representação inorgânica contém como que um fundo monstruoso: o de forçar os cidadãos a opinar sobre assuntos e problemas que desconhece. Ao contrário, o voto orgânico lançado na urna por um eleitor de um Município ou Corpo Social, sabe o que vota porque vota em vista ao concreto interesse da localidade ou grupo sócio-profissional a que pertence, que faz parte do seu próprio interesse.
O integralista Mário Saraiva (1910-1998), exprimiu assim a vantagem da representação orgânica: "Cada pessoa cria os seus interesses, integra-se no seu meio, e sente espontaneamente os hábitos comuns dos grupos em que se integra. Aí traça os projetos dos seus desejos, levanta as esperanças do seu futuro. Pode não possuir preparação suficiente para votar um projeto ideológico, mas tem consciência das pessoas e das coisas do meio em que se move e com as quais está diretamente relacionado. Está, por exemplo, apto a escolher como seu representante um vizinho na sua freguesia, um camarada de trabalho para o sindicato, um consócio para uma sociedade, um agremiado para uma associação agrícola, comercial, industrial, etc." (in Outra Democracia - Uma Alternativa Nacional, 1983).
Em síntese, segundo a concepção orgânica, nas formas inorgânicas de representação há simultaneamente um sofisma e um déficit de representação. E o que defendem os defensores da democracia orgânica, entre os quais se destacaram os integralistas lusitanos, é que seja permitida a expressão ou a representação das pessoas através dos órgãos naturais a que pertencem no seio da sociedade — através das freguesias ou paróquias, dos municípios, das regiões, mas também por intermédio dos diversos esteios ou grupos sociais (de profissão, de atividade económica, de cultura, de espiritualidade, etc.) no seio dos quais contribuem, pela sua atividade e esforço, para o bem comum da sociedade. Os integralistas bateram-se sempre por uma representação municipal e sindical, como a base de uma autêntica representação democrática da República.
Na época em que o Integralismo Lusitano se lançou como movimento de ideias políticas, o republicano João Chagas não deixou de reconhecer implicitamente a mentira da "democracia parlamentar" então vigente, ao escrever num opúsculo, posto à venda no dia 3 de Maio de 1915 - “A Última Crise – Comentários à situação da República Portuguesa”: “A Nação é de todos, mas o Estado é nosso.”
José Manuel Quintas
10.01.2024
(Nota: este texto resulta de uma adaptação de um comentário publicado no fórum Unica Semper Avis, em 2001, no âmbito de uma discussão a respeito do conceito de democracia orgânica para Oliveira Martins ("Os costumes e as leis" in Dispersos, II, 1924, pp. 53-66; Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 24 de Agosto de 1891, em reacção crítica ao parlamentarismo partidocrático, neste particular um dos autores de referência dos integralistas, a par de Alexandre Herculano (Carta aos Eleitores do Círculo Eleitoral de Sintra) ou de Almeida Garrett.
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