Democracia, segundo o Integralismo Lusitano
O Integralismo Lusitano surgiu em defesa da democracia orgânica reagindo aos regimes em que os profissionais da política monopolizam a representação popular através de partidos ideológicos. Os partidocratas consideram a sociedade como um agregado de indivíduos que, no plano do Estado, apenas se podem exprimir através de partidos e ideologias. Os integralistas surgiram defendendo que a sociedade é constituída por órgãos ou corpos anteriores ao Estado - famílias, freguesias, municípios, sindicatos, associações profissionais - e que devem ser esses os órgãos a constituir a base da representação da República.
DEMOCRACIA ORGÂNICA
- REPRESENTAÇÃO DOS ÓRGÃOS OU CORPOS ANTERIORES AO ESTADO - REPRESENTAÇÃO DOS INTERESSES DAS COMUNIDADES E SUAS ACTIVIDADES -
*
DEMOCRACIA INORGÂNICA
- REPRESENTAÇÃO DE PARTIDOS POLÍTICOS - REPRESENTAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DA POLÍTICA E DE SUAS IDEOLOGIAS -
- REPRESENTAÇÃO DOS ÓRGÃOS OU CORPOS ANTERIORES AO ESTADO - REPRESENTAÇÃO DOS INTERESSES DAS COMUNIDADES E SUAS ACTIVIDADES -
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DEMOCRACIA INORGÂNICA
- REPRESENTAÇÃO DE PARTIDOS POLÍTICOS - REPRESENTAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DA POLÍTICA E DE SUAS IDEOLOGIAS -
[Após a Revolução francesa de 1789] - E para que o sarcasmo fosse mais cruel, viu-se o operário obrigado a trocar a soberania real, que ele tinha dos direitos da associação, pela soberania ilusória da lista de voto, que tantas vezes dissimula apenas a soberania efectiva das forças secretas do dinheiro! - Luís de Almeida Braga, in Paixão e Graça da Terra.
... ao centralismo e às ficções ou abstrações das representações político-ideológicas, das "esquerdas" e das "direitas", os integralistas contrapõem uma descentralização dos poderes do Estado e uma representação nacional por delegação directa dos municípios e sindicatos.
O programa do Integralismo Lusitano, apresentado na revista Nação Portuguesa incluiu um propósito “antiparlamentar” - "O que nós queremos - monarquia orgânica, tradicionalista, antiparlamentar" (1914) - denunciando, desde o seu preambulo, o que designam por "mentira democrático-parlamentar".
Nas eleições legislativas realizadas em Agosto de 1910, o Partido Republicano manteve a sua habitual ínfima votação fora dos grandes centros urbanos, mas conseguindo 9% dos votos a nível nacional, elegendo 14 deputados de uma Câmara com 155 deputados. Após o 5 de Outubro de 1910, as eleições de Agosto foram declaradas nulas logo no dia 24 e, em 28 de Maio de 1911, o governo provisório fez eleger 229 deputados republicanos (91 foram nomeados) dos 234 lugares disponíveis (3 foram para Independentes e 2 para o Partido Socialista) para uma Assembleia Nacional Constituinte.
Em 1912, os republicanos dividiram-se em três partidos - Democrático, Evolucionista e da União. A 1ª República (1910-26) decorreu sob uma ditadura do Partido Democrático, num ambiente de grande instabilidade política e de violência, até 1917 fortemente marcado pela sua agenda político-religiosa. Em Outubro de 1910, tinham sido repostas em vigor as leis de 1759 e de 1767 sobre a expulsão dos jesuítas; a lei de 1834, sobre o encerramento dos conventos de todas as ordens religiosas; seguindo-se vários decretos proibindo o ensino da doutrina cristã nas escolas primárias, os dias santificados e as festas religiosas, inclusive as procissões fora dos perímetros das igrejas. É nesse contexto que se insere a nova Lei eleitoral de 1913, negando o direito de voto aos analfabetos e às mulheres (Lei nº 3, Art. 1º). A população portuguesa era maioritariamente católica, temendo os novos detentores do poder uma reação das massas populares através do voto - "Lá fora", como disse uma voz no parlamento, "as mulheres têm sido quase todas reacionárias". Com o "lá fora" identificava-se a França, cuja legislação antirreligiosa de Émile Combes (1905) fora em grande medida traduzida para português por Afonso Costa.
O que os integralistas denunciavam com a expressão "mentira democrático-parlamentar" ia para além de uma simples rejeição das restrições impostas ao voto, ou do cozinhado dos resultados eleitorais - quem detinha a imprensa e as rédeas do poder ganhava em regra as eleições. Na perspetiva integralista, a mentira do parlamentarismo estava sobretudo em se permitir apenas a representação de profissionais da política organizados em partidos, com as suas ficções ou abstrações das "esquerdas" e das "direitas" - aí é que, segundo os integralistas, estava o cerne da "estupenda burla" parlamentar (Hipólito Raposo), da "enganosa democracia" (Luís de Almeida Braga), do “ignóbil embuste” (António Sardinha).
Na expressão de Hipólito Raposo, a "soberania do povo" poderia ter sido uma mentira ingénua em 1820, mas tornara-se uma mentira cínica após o 5 de Outubro de 1910; o que os integralistas pretendiam, resumiu então Raposo de forma bem singela: "A moderna representação tem de ser integral, abranger todos os interesses, exprimir os direitos e aspirações de quantos trabalham em qualquer ramo de produção ou atividade. Aqui está em poucas palavras, o que nós pretendemos substituir e opor à mentira da representação política de agora" ("Natureza da Representação", 1914).
Em "Aqui d'El-Rei!..." (1914), escrevia João do Amaral: "nas democracias, a luta das classes termina sempre pela vitória da mais forte, a que tem dinheiro, da que, munindo os cofres dos partidos para a campanha eleitoral, traz o poder acorrentado à sua força." E, citando o sindicalista Georges Sorel: "la democratie est le pays de Cocagne rêvé par das financiers sans scrupules" (a democracia é o paraíso na terra sonhado pelos financeiros sem escrúpulos).
No primeiro número da revista Nação Portuguesa, António Sardinha lembrou alguns paralelismos e antecedentes históricos: "Corresponde ... a forma republicana a um hermético sistema de casta onde a concentração do domínio se reparte por um clã reduzido, abastecendo-se do privilégio e da isenção. Ontem as composições aristocráticas, monopolizando os meios e os fins, dispondo em absoluto da terra, da numária, dos cargos, do sacerdócio, - como na Roma consular - hoje as supostas democracias devoradas pelo plutocratismo, com o capitalista a aprisioná-las nos tentáculos sôfregos". ("Teófilo, Mestre da Contra-Revolução", 1914). Mais tarde, descendo ao cerne doutrinário do parlamentarismo contemporâneo, esclarecia: "Quem diz «democracia» diz «individualismo». Quem diz «individualismo» diz por sua vez «burguesia» e «capitalismo». Na pavorosa confusão mental de que a Europa é vítima há mais de um século, acredita-se ainda que a Revolução Francesa, porque proclamou os Imortais Princípios, abriu às classes pobres uma era nova de emancipação e prosperidade. Se a superstição liberalista não falasse tanto à sentimentalidade das massas, com certeza que não se teria ido tão longe num ludíbrio que encobre a maior das falsidades."("A Ordem Burguesa", 1917).
Ao lançarem o seu movimento de ideias políticas, os integralistas declararam-se municipalistas na linha de Alexandre Herculano (Hipólito Raposo, A voz do profeta, 1914) e defensores de um sindicalismo cristão inspirado pela Encíclica Rerum Novarum de Leão XIII (Luís de Almeida Braga, Sindicalismo e República, 1914). Retomavam diagnósticos e reflexões como a de Alexandre Herculano na sua Carta aos Eleitores do Círculo Eleitoral de Sintra (1858) ou de Oliveira Martins que, em As Eleições (1878), defendera a inclusão de representações sociais no parlamento. Decerto que o poder das multidões só pode ser exercido por delegação, mas, para existir uma autêntica democracia, ao centralismo e às ficções ou abstrações das representações político-ideológicas, das "esquerdas" e das "direitas", era necessário realizar uma descentralização dos poderes do Estado e levar até ao Parlamento delegações diretas das comunidades (municípios) e representações sindicalistas das profissões e sectores de atividade.
Na época em que o Integralismo Lusitano se lançou como movimento de ideias políticas, o republicano João Chagas não deixou de reconhecer implicitamente a mentira da "democracia parlamentar" então vigente, ao escrever num opúsculo, posto à venda no dia 3 de Maio de 1915 - “A Última Crise – Comentários à situação da República Portuguesa”: “A Nação é de todos, mas o Estado é nosso.”
O cinismo da mentira democrática acabara de subir ao mais alto nível do Estado, mas os integralistas não deixavam de se mostrar otimistas: “Cotejados hoje os dois sistemas de representação, nós assistimos ao descrédito mortal do parlamentarismo, que cede sensivelmente à velha representação territorial e técnica o lugar que em justiça lhe pertence.” (António Sardinha, "O testamento de Garrett", 1915).
Poucos anos depois, perante a tragédia da revolução bolchevique na Rússia, uma lição surgiu bem clara: "Recolhem-se por fim os frutos da sementeira louca do 89! E na destruição dos organismos tradicionais, ou seja daqueles corpos que entre os indivíduos e o Estado tornavam outrora fácil e resistente a vida social, não era impossível prever que, vítimas das oligarquias financeiras e parlamentaristas, os povos, arrastados pelo desenvolvimento dominador do industrialismo e do capitalismo, aos abusos execráveis da plutocracia, acordariam em peso para mais uma utopia – a utopia da ditadura do proletariado." Para os integralistas, o logro bolchevique era evidente, pelo que se insistia com otimismo: "ao confessarmo-nos antiparlamentaristas no político e descentralizadores no administrativo, nos declaramos conjuntamente sindicalistas no social e no económico." (António Sardinha, "A Ordem-Nova", 1922).
Durante todo o século XX, o ideário de uma representação municipal e sindical sofreu porém sucessivas e evidentes derrotas, e sempre que esteve perto de alguma forma de realização concreta: o presidente Sidónio Pais, com a colaboração dos integralistas, adotou o projeto de uma representação socioprofissional no Senado, mas acabou sendo assassinado; o general Gomes da Costa apresentou a proposta de uma representação nacional por delegação directa dos municípios e das profissões, mas foi preso e deportado para os Açores; Rolão Preto e Alberto de Monsaraz retomaram no Nacional-Sindicalismo os elementos essenciais do projecto constitucional do general Gomes da Costa, mas acabaram sendo presos e expulsos de Portugal quando Rolão Preto protestou contra a repressão e a implantação de um regime de partido único inspirado no fascismo italiano - o Estado Novo (1933-1974).
Após o 25 de Abril de 1974, os portugueses passaram a usufruir de maiores liberdades cívicas e políticas mas, na perspetiva integralista, ficando ainda longe de uma autêntica democracia. Se os regimes oligárquicos assentes em representações por intermédio de partidos político-ideológicos forem considerados como a única forma aceite de "democracia", então afirmar-se-ão antidemocratas, traduzindo desse modo a sua "intransigência aos regimes de partidos". Para os integralistas, como para Mário Saraiva, uma autêntica democracia significa:
"autodeterminação do Povo, nas condições e nos meios onde efetivamente ela se possa exercer, sem adulterações nem sofismas. Nos Municípios e nos Sindicatos, está aí o lugar. Aliás, dentro deste sentido, foi a doutrina democrática que vigorou ao longo da nossa Monarquia medieval.
Dentro dos seus concelhos, o Povo administrava-se autonomamente, elaborava as suas leis próprias, as suas posturas, escolhia os seus governantes e os seus párocos, elegia os seus magistrados e, até, constituía a sua própria força armada.
Quem tenha lido os nossos forais, não poderá em justiça negar que essa vida concelhia, tão independente e tão importante, tenha sido, até hoje, o exemplo mais concreto, talvez único, do «governo do Povo pelo Povo»." (Mário Saraiva, Às portas da Cidade, Lisboa, 1976, p. 186; negritos acrescentados).
Alguns anos depois, em Outra Democracia (1983), acrescentava Mário Saraiva:
“A decrépita democracia dos partidos políticos continua a ser, na inércia secular da sua forma primitiva, o ídolo apregoado por uns e por outros, como se consubstanciasse o grau mais elevado da perfeição atingível. Deplorável sintoma de debilidade mental!” (…) "... ressalta à evidência o absurdo, a irracionalidade, a fraude, de, a priori, se vincular a Democracia a um prefixado modelo de governo, um especificado regime. Não pode haver uma forma canónica de Democracia. A existência de autêntica democracia consiste em o povo escolher livremente a forma do seu governo e as pessoas dos seus governantes.”
A quarta-via política aberta por Francisco Rolão Preto em defesa de um ideário democrático de base municipal e sindical, rompendo com os vários regimes centralistas e oligárquicos saídos da Revolução francesa de 1789 - democratismo, comunismo e fascismo - está no cerne do legado político do Integralismo Lusitano, acolhido, entre outros, por Mário Saraiva e António Jacinto Ferreira.
Resumindo, os conservadores da partidocracia consideram que a democracia se esgota na representação do pluralismo dos partidos ideológicos. O conceito de democracia dos integralistas é bem mais exigente, reclamando que ao pluralismo ideológico é necessário acrescentar o pluralismo social. Francisco Rolão Preto, ao referi-se a Afonso Lopes Vieira - o "preceptor da sensibilidade portuguesa", na expressão de António Sardinha - definiu do seguinte modo as exigências de uma autêntica Democracia:
"Era ele então um democrata? Era-o por certo no mais belo e mais alto sentido, se com isso se excluía tudo aquilo que tantas vezes estabelece entre homens de boa vontade um dramático equívoco. Se Democracia queria dizer o reinado das virtudes do povo – nobreza, candura e solidariedade – através da conduta das instituições abertas a todos os anseios, seguras contra todos os assaltos em que periga a liberdade humana; se a Democracia para além de qualquer conceito de facção significava como ética-política a equidade no ponto de partida de todos os trabalhadores; se a Democracia, para além de qualquer sistema rígido, podia ser um regime que incessantemente se renovasse, reconhecendo erros para os evitar, confessando os abusos para lhe dar castigo, aceitando as lições do tempo para se rectificar; se, finalmente, a Democracia, repelindo as traições da Burguesia, encontrava enfim o seu caminho de governo do povo – onde estaria o homem livre que não fosse democrata? Sim, decerto, Afonso Lopes Vieira fazia à Democracia estas exigências."
Nas eleições legislativas realizadas em Agosto de 1910, o Partido Republicano manteve a sua habitual ínfima votação fora dos grandes centros urbanos, mas conseguindo 9% dos votos a nível nacional, elegendo 14 deputados de uma Câmara com 155 deputados. Após o 5 de Outubro de 1910, as eleições de Agosto foram declaradas nulas logo no dia 24 e, em 28 de Maio de 1911, o governo provisório fez eleger 229 deputados republicanos (91 foram nomeados) dos 234 lugares disponíveis (3 foram para Independentes e 2 para o Partido Socialista) para uma Assembleia Nacional Constituinte.
Em 1912, os republicanos dividiram-se em três partidos - Democrático, Evolucionista e da União. A 1ª República (1910-26) decorreu sob uma ditadura do Partido Democrático, num ambiente de grande instabilidade política e de violência, até 1917 fortemente marcado pela sua agenda político-religiosa. Em Outubro de 1910, tinham sido repostas em vigor as leis de 1759 e de 1767 sobre a expulsão dos jesuítas; a lei de 1834, sobre o encerramento dos conventos de todas as ordens religiosas; seguindo-se vários decretos proibindo o ensino da doutrina cristã nas escolas primárias, os dias santificados e as festas religiosas, inclusive as procissões fora dos perímetros das igrejas. É nesse contexto que se insere a nova Lei eleitoral de 1913, negando o direito de voto aos analfabetos e às mulheres (Lei nº 3, Art. 1º). A população portuguesa era maioritariamente católica, temendo os novos detentores do poder uma reação das massas populares através do voto - "Lá fora", como disse uma voz no parlamento, "as mulheres têm sido quase todas reacionárias". Com o "lá fora" identificava-se a França, cuja legislação antirreligiosa de Émile Combes (1905) fora em grande medida traduzida para português por Afonso Costa.
O que os integralistas denunciavam com a expressão "mentira democrático-parlamentar" ia para além de uma simples rejeição das restrições impostas ao voto, ou do cozinhado dos resultados eleitorais - quem detinha a imprensa e as rédeas do poder ganhava em regra as eleições. Na perspetiva integralista, a mentira do parlamentarismo estava sobretudo em se permitir apenas a representação de profissionais da política organizados em partidos, com as suas ficções ou abstrações das "esquerdas" e das "direitas" - aí é que, segundo os integralistas, estava o cerne da "estupenda burla" parlamentar (Hipólito Raposo), da "enganosa democracia" (Luís de Almeida Braga), do “ignóbil embuste” (António Sardinha).
Na expressão de Hipólito Raposo, a "soberania do povo" poderia ter sido uma mentira ingénua em 1820, mas tornara-se uma mentira cínica após o 5 de Outubro de 1910; o que os integralistas pretendiam, resumiu então Raposo de forma bem singela: "A moderna representação tem de ser integral, abranger todos os interesses, exprimir os direitos e aspirações de quantos trabalham em qualquer ramo de produção ou atividade. Aqui está em poucas palavras, o que nós pretendemos substituir e opor à mentira da representação política de agora" ("Natureza da Representação", 1914).
Em "Aqui d'El-Rei!..." (1914), escrevia João do Amaral: "nas democracias, a luta das classes termina sempre pela vitória da mais forte, a que tem dinheiro, da que, munindo os cofres dos partidos para a campanha eleitoral, traz o poder acorrentado à sua força." E, citando o sindicalista Georges Sorel: "la democratie est le pays de Cocagne rêvé par das financiers sans scrupules" (a democracia é o paraíso na terra sonhado pelos financeiros sem escrúpulos).
No primeiro número da revista Nação Portuguesa, António Sardinha lembrou alguns paralelismos e antecedentes históricos: "Corresponde ... a forma republicana a um hermético sistema de casta onde a concentração do domínio se reparte por um clã reduzido, abastecendo-se do privilégio e da isenção. Ontem as composições aristocráticas, monopolizando os meios e os fins, dispondo em absoluto da terra, da numária, dos cargos, do sacerdócio, - como na Roma consular - hoje as supostas democracias devoradas pelo plutocratismo, com o capitalista a aprisioná-las nos tentáculos sôfregos". ("Teófilo, Mestre da Contra-Revolução", 1914). Mais tarde, descendo ao cerne doutrinário do parlamentarismo contemporâneo, esclarecia: "Quem diz «democracia» diz «individualismo». Quem diz «individualismo» diz por sua vez «burguesia» e «capitalismo». Na pavorosa confusão mental de que a Europa é vítima há mais de um século, acredita-se ainda que a Revolução Francesa, porque proclamou os Imortais Princípios, abriu às classes pobres uma era nova de emancipação e prosperidade. Se a superstição liberalista não falasse tanto à sentimentalidade das massas, com certeza que não se teria ido tão longe num ludíbrio que encobre a maior das falsidades."("A Ordem Burguesa", 1917).
Ao lançarem o seu movimento de ideias políticas, os integralistas declararam-se municipalistas na linha de Alexandre Herculano (Hipólito Raposo, A voz do profeta, 1914) e defensores de um sindicalismo cristão inspirado pela Encíclica Rerum Novarum de Leão XIII (Luís de Almeida Braga, Sindicalismo e República, 1914). Retomavam diagnósticos e reflexões como a de Alexandre Herculano na sua Carta aos Eleitores do Círculo Eleitoral de Sintra (1858) ou de Oliveira Martins que, em As Eleições (1878), defendera a inclusão de representações sociais no parlamento. Decerto que o poder das multidões só pode ser exercido por delegação, mas, para existir uma autêntica democracia, ao centralismo e às ficções ou abstrações das representações político-ideológicas, das "esquerdas" e das "direitas", era necessário realizar uma descentralização dos poderes do Estado e levar até ao Parlamento delegações diretas das comunidades (municípios) e representações sindicalistas das profissões e sectores de atividade.
Na época em que o Integralismo Lusitano se lançou como movimento de ideias políticas, o republicano João Chagas não deixou de reconhecer implicitamente a mentira da "democracia parlamentar" então vigente, ao escrever num opúsculo, posto à venda no dia 3 de Maio de 1915 - “A Última Crise – Comentários à situação da República Portuguesa”: “A Nação é de todos, mas o Estado é nosso.”
O cinismo da mentira democrática acabara de subir ao mais alto nível do Estado, mas os integralistas não deixavam de se mostrar otimistas: “Cotejados hoje os dois sistemas de representação, nós assistimos ao descrédito mortal do parlamentarismo, que cede sensivelmente à velha representação territorial e técnica o lugar que em justiça lhe pertence.” (António Sardinha, "O testamento de Garrett", 1915).
Poucos anos depois, perante a tragédia da revolução bolchevique na Rússia, uma lição surgiu bem clara: "Recolhem-se por fim os frutos da sementeira louca do 89! E na destruição dos organismos tradicionais, ou seja daqueles corpos que entre os indivíduos e o Estado tornavam outrora fácil e resistente a vida social, não era impossível prever que, vítimas das oligarquias financeiras e parlamentaristas, os povos, arrastados pelo desenvolvimento dominador do industrialismo e do capitalismo, aos abusos execráveis da plutocracia, acordariam em peso para mais uma utopia – a utopia da ditadura do proletariado." Para os integralistas, o logro bolchevique era evidente, pelo que se insistia com otimismo: "ao confessarmo-nos antiparlamentaristas no político e descentralizadores no administrativo, nos declaramos conjuntamente sindicalistas no social e no económico." (António Sardinha, "A Ordem-Nova", 1922).
Durante todo o século XX, o ideário de uma representação municipal e sindical sofreu porém sucessivas e evidentes derrotas, e sempre que esteve perto de alguma forma de realização concreta: o presidente Sidónio Pais, com a colaboração dos integralistas, adotou o projeto de uma representação socioprofissional no Senado, mas acabou sendo assassinado; o general Gomes da Costa apresentou a proposta de uma representação nacional por delegação directa dos municípios e das profissões, mas foi preso e deportado para os Açores; Rolão Preto e Alberto de Monsaraz retomaram no Nacional-Sindicalismo os elementos essenciais do projecto constitucional do general Gomes da Costa, mas acabaram sendo presos e expulsos de Portugal quando Rolão Preto protestou contra a repressão e a implantação de um regime de partido único inspirado no fascismo italiano - o Estado Novo (1933-1974).
Após o 25 de Abril de 1974, os portugueses passaram a usufruir de maiores liberdades cívicas e políticas mas, na perspetiva integralista, ficando ainda longe de uma autêntica democracia. Se os regimes oligárquicos assentes em representações por intermédio de partidos político-ideológicos forem considerados como a única forma aceite de "democracia", então afirmar-se-ão antidemocratas, traduzindo desse modo a sua "intransigência aos regimes de partidos". Para os integralistas, como para Mário Saraiva, uma autêntica democracia significa:
"autodeterminação do Povo, nas condições e nos meios onde efetivamente ela se possa exercer, sem adulterações nem sofismas. Nos Municípios e nos Sindicatos, está aí o lugar. Aliás, dentro deste sentido, foi a doutrina democrática que vigorou ao longo da nossa Monarquia medieval.
Dentro dos seus concelhos, o Povo administrava-se autonomamente, elaborava as suas leis próprias, as suas posturas, escolhia os seus governantes e os seus párocos, elegia os seus magistrados e, até, constituía a sua própria força armada.
Quem tenha lido os nossos forais, não poderá em justiça negar que essa vida concelhia, tão independente e tão importante, tenha sido, até hoje, o exemplo mais concreto, talvez único, do «governo do Povo pelo Povo»." (Mário Saraiva, Às portas da Cidade, Lisboa, 1976, p. 186; negritos acrescentados).
Alguns anos depois, em Outra Democracia (1983), acrescentava Mário Saraiva:
“A decrépita democracia dos partidos políticos continua a ser, na inércia secular da sua forma primitiva, o ídolo apregoado por uns e por outros, como se consubstanciasse o grau mais elevado da perfeição atingível. Deplorável sintoma de debilidade mental!” (…) "... ressalta à evidência o absurdo, a irracionalidade, a fraude, de, a priori, se vincular a Democracia a um prefixado modelo de governo, um especificado regime. Não pode haver uma forma canónica de Democracia. A existência de autêntica democracia consiste em o povo escolher livremente a forma do seu governo e as pessoas dos seus governantes.”
A quarta-via política aberta por Francisco Rolão Preto em defesa de um ideário democrático de base municipal e sindical, rompendo com os vários regimes centralistas e oligárquicos saídos da Revolução francesa de 1789 - democratismo, comunismo e fascismo - está no cerne do legado político do Integralismo Lusitano, acolhido, entre outros, por Mário Saraiva e António Jacinto Ferreira.
Resumindo, os conservadores da partidocracia consideram que a democracia se esgota na representação do pluralismo dos partidos ideológicos. O conceito de democracia dos integralistas é bem mais exigente, reclamando que ao pluralismo ideológico é necessário acrescentar o pluralismo social. Francisco Rolão Preto, ao referi-se a Afonso Lopes Vieira - o "preceptor da sensibilidade portuguesa", na expressão de António Sardinha - definiu do seguinte modo as exigências de uma autêntica Democracia:
"Era ele então um democrata? Era-o por certo no mais belo e mais alto sentido, se com isso se excluía tudo aquilo que tantas vezes estabelece entre homens de boa vontade um dramático equívoco. Se Democracia queria dizer o reinado das virtudes do povo – nobreza, candura e solidariedade – através da conduta das instituições abertas a todos os anseios, seguras contra todos os assaltos em que periga a liberdade humana; se a Democracia para além de qualquer conceito de facção significava como ética-política a equidade no ponto de partida de todos os trabalhadores; se a Democracia, para além de qualquer sistema rígido, podia ser um regime que incessantemente se renovasse, reconhecendo erros para os evitar, confessando os abusos para lhe dar castigo, aceitando as lições do tempo para se rectificar; se, finalmente, a Democracia, repelindo as traições da Burguesia, encontrava enfim o seu caminho de governo do povo – onde estaria o homem livre que não fosse democrata? Sim, decerto, Afonso Lopes Vieira fazia à Democracia estas exigências."
A democracia orgânica, segundo o Integralismo Lusitano
«[...] Os princípios que defendemos, antes de serem princípios foram conclusões. Nós não significamos aqui mais do que um voto unânime da nacionalidade pelo apelo sagrado dos seus Mortos. A nossa política não é uma política de profissionais mas uma política de profissões. Assentamos numa concepção orgânica da sociedade, com a diferenciação e a competência por critérios reguladores. Se nos insurgimos contra a Democracia, é porque a Democracia é a negação de todo o estímulo e de toda a disciplina. Somos antiliberais. Mas somos antiliberais, porque, municipalistas, em relação ao localismo, e sindicalistas, em relação aos problemas do trabalho, é pelas liberdades, de sentido restrito e concreto, que dedicadamente nos inscrevemos. [...]»
António Sardinha
António Sardinha
Para os integralistas - importa ter sempre presente - "Democracia" é sinónimo de individualismo, oligarquia, partidismo político-ideológico, ficção, mentira.
Nas teorias contemporâneas da representação política, defrontam-se duas concepções que vão para além do político, tocando a própria noção de sociedade: para uns, "a sociedade é um corpo vivo"; para outros, a sociedade é "um agregado de indivíduos".
Ainda que sumariamente, importa esclarecer algumas diferenças essenciais entre essas duas concepções no plano dos fundamentos filosóficos porque, antes de se disputarem duas concepções de representação política, disputam-se duas concepções de sociedade e, antes de se disputarem duas concepções de sociedade, disputam-se duas concepções do homem e da natureza.
Para o naturalismo individualista (base filosófica da concepção inorgânica da sociedade) — de que Rousseau foi um dos máximos expoentes —, o estado natural do homem é o estado de isolamento individualista, sendo o contrato social um acto absolutamente voluntário e livre. Ao contrário, para a concepção orgânica — contando com S. Tomás de Aquino e Francisco Suárez entre os seus mais categorizados teorizadores — o homem é um ser social por natureza, concebido em sociedade e para viver em sociedade. Enquanto o pacto ou contrato social de que falava Rousseau é voluntário; o pacto ou contrato social de que falavam os Doutores da Igreja, longe de ser voluntário, é um ato imperado pela natureza humana.
Partindo de tão distintas concepções da natureza do homem e das sociedades, é natural que ao abordar o problema das formas de representação política, bem como o da própria origem e da legitimidade do poder, se acentue a oposição entre as duas teorias.
Na concepção inorgânica, o poder é considerado disperso nos indivíduos e expressa-se como vontade no momento da eleição. Como a soberania popular só se exerce quando se somam esses poderes, também uma só condição é suficiente para atribuir ou retirar legitimidade: a vontade do povo. Para uma concepção orgânica, de forma bem diferente, o poder político não se encontra atomizado, disperso pelos vários indivíduos de que se compõe a comunidade. O poder apenas se constitui no agregado social quando este se constitui em pessoa moral autónoma. E, ao constituir-se, o poder não é um simples somatório de parcelas, sendo antes uma espécie de propriedade — é uma realidade moral. Isto é, existe uma realidade moral no todo, que não resulta da soma das partes. Um exemplo clássico, muito referido, retirado do mundo físico, ajuda a explicar essa “espécie de propriedade” que define a realidade moral do poder político (ou soberania): a água, resultado da junção de oxigénio e hidrogénio, tem uma natureza que a define e que é diversa do simples somatório das propriedades dos elementos que a constituem. De modo análogo, também a soberania não é apenas a soma das vontades dispersas pelos membros da comunidade.
A soberania é algo que só existe na comunidade enquanto sociedade política constituída. A concepção inorgânica do poder político, além de lhe negar a sua realidade moral — abrindo a via pela qual a ditadura das maiorias se pode impor sem qualquer constrangimento; e, até hoje, sem olhar à cor política, sabemos como todos os regimes totalitários contemporâneos do Ocidente buscaram e obtiveram legalidade por via do sufrágio —, nega também, de forma mais ou menos mitigada, consoante os autores, que a sociedade antecede o Direito e o Estado. Ora, segundo a teoria orgânica — é o que importa aqui sublinhar e destacar quanto ao problema da representação política —, as personalidades de direito natural das entidades anteriores ao Estado (como a família, a freguesia, o município) são consideradas como realidades sociais concretas que o Estado deve respeitar nas suas autonomias e funções próprias. Mais: são essas entidades - as famílias, freguesias, municípios - e não as ideologias, que deveram estar na base da representação política, como aliás em geral acontece no norte da Europa e nos países de tradição democrática anglo-saxónica - Reino Unido, Canadá, Austrália, EUA, entre outros -, em que, nos seus parlamentos ou câmaras de representantes, se representam circunscrições ou comunidades. Os candidatos podem apresentar-se ao sufrágio por intermédio de partidos ideológicos, mas são eleitos em comunidades de residência e para representar essas comunidades (entre nós, era o que defendia Alexandre Herculano na sua Carta aos Eleitores do Círculo Eleitoral de Sintra, em 1858).
Porque é que, para um defensor de uma concepção orgânica de democracia, existe sofisma ou embuste no sufrágio individualista, ideológico e inorgânico?
Porque nesse tipo de sufrágio, — além de não se respeitar a pluralidade dos grupos que compõem a sociedade, e as diversas aspirações dos seus membros com seus direitos e interesses — apenas contam os indivíduos agregados em torno de projetos ideológicos acerca dos quais a grande maioria é incapaz de formular opiniões fundadas. A representação inorgânica contém como que um fundo monstruoso: o de forçar os cidadãos a opinar sobre assuntos e problemas que desconhece. Ao contrário, o voto orgânico lançado na urna por um eleitor de um Município ou Corpo Social, sabe o que vota porque vota em vista ao concreto interesse da localidade ou grupo sócio-profissional a que pertence, que faz parte do seu próprio interesse.
O integralista Mário Saraiva (1910-1998), exprimiu assim a vantagem da representação orgânica: "Cada pessoa cria os seus interesses, integra-se no seu meio, e sente espontaneamente os hábitos comuns dos grupos em que se integra. Aí traça os projetos dos seus desejos, levanta as esperanças do seu futuro. Pode não possuir preparação suficiente para votar um projeto ideológico, mas tem consciência das pessoas e das coisas do meio em que se move e com as quais está diretamente relacionado. Está, por exemplo, apto a escolher como seu representante um vizinho na sua freguesia, um camarada de trabalho para o sindicato, um consócio para uma sociedade, um agremiado para uma associação agrícola, comercial, industrial, etc." (in Outra Democracia - Uma Alternativa Nacional, 1983).
Em síntese, segundo a concepção orgânica, nas formas inorgânicas de representação há simultaneamente um sofisma e um déficit de representação. E o que defendem os defensores da democracia orgânica, entre os quais se destacaram os integralistas lusitanos, é que seja permitida a expressão ou a representação das pessoas através dos órgãos naturais a que pertencem no seio da sociedade — através das freguesias ou paróquias, dos municípios, das regiões, mas também por intermédio dos diversos esteios ou grupos sociais (de profissão, de atividade económica, de cultura, de espiritualidade, etc.) no seio dos quais contribuem, pela sua atividade e esforço, para o bem comum da sociedade. Os integralistas bateram-se sempre por uma representação municipal e sindical, como a base de uma autêntica representação democrática da República.
José Manuel Quintas
10.01.2024 - 03.01.2025
(Nota: este texto resulta de uma adaptação de um comentário publicado no fórum Unica Semper Avis, em 2001, no âmbito de uma discussão a respeito do conceito de democracia orgânica para Oliveira Martins ("Os costumes e as leis" in Dispersos, II, 1924, pp. 53-66; Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 24 de Agosto de 1891, em reacção crítica ao parlamentarismo partidocrático, neste particular um dos autores de referência dos integralistas, a par de Alexandre Herculano (Carta aos Eleitores do Círculo Eleitoral de Sintra) ou de Almeida Garrett.
Refs.
Nas teorias contemporâneas da representação política, defrontam-se duas concepções que vão para além do político, tocando a própria noção de sociedade: para uns, "a sociedade é um corpo vivo"; para outros, a sociedade é "um agregado de indivíduos".
Ainda que sumariamente, importa esclarecer algumas diferenças essenciais entre essas duas concepções no plano dos fundamentos filosóficos porque, antes de se disputarem duas concepções de representação política, disputam-se duas concepções de sociedade e, antes de se disputarem duas concepções de sociedade, disputam-se duas concepções do homem e da natureza.
Para o naturalismo individualista (base filosófica da concepção inorgânica da sociedade) — de que Rousseau foi um dos máximos expoentes —, o estado natural do homem é o estado de isolamento individualista, sendo o contrato social um acto absolutamente voluntário e livre. Ao contrário, para a concepção orgânica — contando com S. Tomás de Aquino e Francisco Suárez entre os seus mais categorizados teorizadores — o homem é um ser social por natureza, concebido em sociedade e para viver em sociedade. Enquanto o pacto ou contrato social de que falava Rousseau é voluntário; o pacto ou contrato social de que falavam os Doutores da Igreja, longe de ser voluntário, é um ato imperado pela natureza humana.
Partindo de tão distintas concepções da natureza do homem e das sociedades, é natural que ao abordar o problema das formas de representação política, bem como o da própria origem e da legitimidade do poder, se acentue a oposição entre as duas teorias.
Na concepção inorgânica, o poder é considerado disperso nos indivíduos e expressa-se como vontade no momento da eleição. Como a soberania popular só se exerce quando se somam esses poderes, também uma só condição é suficiente para atribuir ou retirar legitimidade: a vontade do povo. Para uma concepção orgânica, de forma bem diferente, o poder político não se encontra atomizado, disperso pelos vários indivíduos de que se compõe a comunidade. O poder apenas se constitui no agregado social quando este se constitui em pessoa moral autónoma. E, ao constituir-se, o poder não é um simples somatório de parcelas, sendo antes uma espécie de propriedade — é uma realidade moral. Isto é, existe uma realidade moral no todo, que não resulta da soma das partes. Um exemplo clássico, muito referido, retirado do mundo físico, ajuda a explicar essa “espécie de propriedade” que define a realidade moral do poder político (ou soberania): a água, resultado da junção de oxigénio e hidrogénio, tem uma natureza que a define e que é diversa do simples somatório das propriedades dos elementos que a constituem. De modo análogo, também a soberania não é apenas a soma das vontades dispersas pelos membros da comunidade.
A soberania é algo que só existe na comunidade enquanto sociedade política constituída. A concepção inorgânica do poder político, além de lhe negar a sua realidade moral — abrindo a via pela qual a ditadura das maiorias se pode impor sem qualquer constrangimento; e, até hoje, sem olhar à cor política, sabemos como todos os regimes totalitários contemporâneos do Ocidente buscaram e obtiveram legalidade por via do sufrágio —, nega também, de forma mais ou menos mitigada, consoante os autores, que a sociedade antecede o Direito e o Estado. Ora, segundo a teoria orgânica — é o que importa aqui sublinhar e destacar quanto ao problema da representação política —, as personalidades de direito natural das entidades anteriores ao Estado (como a família, a freguesia, o município) são consideradas como realidades sociais concretas que o Estado deve respeitar nas suas autonomias e funções próprias. Mais: são essas entidades - as famílias, freguesias, municípios - e não as ideologias, que deveram estar na base da representação política, como aliás em geral acontece no norte da Europa e nos países de tradição democrática anglo-saxónica - Reino Unido, Canadá, Austrália, EUA, entre outros -, em que, nos seus parlamentos ou câmaras de representantes, se representam circunscrições ou comunidades. Os candidatos podem apresentar-se ao sufrágio por intermédio de partidos ideológicos, mas são eleitos em comunidades de residência e para representar essas comunidades (entre nós, era o que defendia Alexandre Herculano na sua Carta aos Eleitores do Círculo Eleitoral de Sintra, em 1858).
Porque é que, para um defensor de uma concepção orgânica de democracia, existe sofisma ou embuste no sufrágio individualista, ideológico e inorgânico?
Porque nesse tipo de sufrágio, — além de não se respeitar a pluralidade dos grupos que compõem a sociedade, e as diversas aspirações dos seus membros com seus direitos e interesses — apenas contam os indivíduos agregados em torno de projetos ideológicos acerca dos quais a grande maioria é incapaz de formular opiniões fundadas. A representação inorgânica contém como que um fundo monstruoso: o de forçar os cidadãos a opinar sobre assuntos e problemas que desconhece. Ao contrário, o voto orgânico lançado na urna por um eleitor de um Município ou Corpo Social, sabe o que vota porque vota em vista ao concreto interesse da localidade ou grupo sócio-profissional a que pertence, que faz parte do seu próprio interesse.
O integralista Mário Saraiva (1910-1998), exprimiu assim a vantagem da representação orgânica: "Cada pessoa cria os seus interesses, integra-se no seu meio, e sente espontaneamente os hábitos comuns dos grupos em que se integra. Aí traça os projetos dos seus desejos, levanta as esperanças do seu futuro. Pode não possuir preparação suficiente para votar um projeto ideológico, mas tem consciência das pessoas e das coisas do meio em que se move e com as quais está diretamente relacionado. Está, por exemplo, apto a escolher como seu representante um vizinho na sua freguesia, um camarada de trabalho para o sindicato, um consócio para uma sociedade, um agremiado para uma associação agrícola, comercial, industrial, etc." (in Outra Democracia - Uma Alternativa Nacional, 1983).
Em síntese, segundo a concepção orgânica, nas formas inorgânicas de representação há simultaneamente um sofisma e um déficit de representação. E o que defendem os defensores da democracia orgânica, entre os quais se destacaram os integralistas lusitanos, é que seja permitida a expressão ou a representação das pessoas através dos órgãos naturais a que pertencem no seio da sociedade — através das freguesias ou paróquias, dos municípios, das regiões, mas também por intermédio dos diversos esteios ou grupos sociais (de profissão, de atividade económica, de cultura, de espiritualidade, etc.) no seio dos quais contribuem, pela sua atividade e esforço, para o bem comum da sociedade. Os integralistas bateram-se sempre por uma representação municipal e sindical, como a base de uma autêntica representação democrática da República.
José Manuel Quintas
10.01.2024 - 03.01.2025
(Nota: este texto resulta de uma adaptação de um comentário publicado no fórum Unica Semper Avis, em 2001, no âmbito de uma discussão a respeito do conceito de democracia orgânica para Oliveira Martins ("Os costumes e as leis" in Dispersos, II, 1924, pp. 53-66; Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 24 de Agosto de 1891, em reacção crítica ao parlamentarismo partidocrático, neste particular um dos autores de referência dos integralistas, a par de Alexandre Herculano (Carta aos Eleitores do Círculo Eleitoral de Sintra) ou de Almeida Garrett.
Refs.
- 1858 - Alexandre Herculano, Carta aos Eleitores do Círculo Eleitoral de Sintra
- 1878 - J. P. Oliveira Martins - As Eleições
- 1887 - 1891 - J. P. de Oliveira Martins - Os costumes e as leis & Lei e costumes
- 1910 - Expulsão dos jesuítas e encerramento dos conventos, etc - Diário do Governo - 10 de Outubro
- 1911 - Diário da Assembleia Nacional Constituinte, Sessão nº 21, 14 de Julho de 1911, p. 22.
- 1914 - João do Amaral - Aqui d'El-Rei!...
- 1914 - Nação Portuguesa, O que nós queremos
- 1914 - Adriano Xavier Cordeiro - As velhas liberdades e a nova Liberdade.
- 1914 - António Sardinha - Poder Pessoal e Poder Absoluto.
- 1914 - Hipólito Raposo - A voz do profeta [ Alexandre Herculano ]
- 1914 - Luís de Almeida Braga - Sindicalismo e República.
- 1914 - Hipólito Raposo - Natureza da Representação.
- 1914 - António Sardinha - Teófilo, Mestre da Contra-Revolução.
- 1915 - António Sardinha - O testamento de Garrett.
- 1915 - Luís de Almeida Braga - Do espírito da Democracia
- 1917 - António Sardinha - A Ordem Burguesa.
- 1918 - Sufrágio Universal.
- 1924 - António Sardinha - Teoria do Município.
- 1945 - Hipólito Raposo - Folhas do meu Cadastro - Volume I (1911-1925)
- 1976 - Mário Saraiva - Às portas da Cidade.
- 1983 - A. Jesus Ramos - A Igreja e a 1ª República - A reacção católica em Portugal às leis persecutórias
- 1983 - Mário Saraiva - Outra Democracia - Uma Alternativa Nacional
- 1987 - António Jacinto Ferreira - Poder Local e Corpos Intermédios.