Franco Nogueira, Salazar - Volume II - Os tempos áureos (1928-1936), Coimbra, Atlântida Editora, 1977, p. 191.
Um distorcido perfil de Rolão Preto
Franco Nogueira, no II volume da sua biografia de Oliveira Salazar, (Salazar, Volume II, Os tempos áureos (1928-1936) (Coimbra, Atlântida Editora, 1977) refere o folheto de Francisco Rolão Preto, Salazar e a sua época (Lisboa, Janeiro, 1933), para "caracterizar um perfil de Salazar segundo os nacionais-sindicalistas".
Segundo Franco Nogueira, Rolão Preto teria ali sustentado que "os chefes das nações que se estão libertando das ruínas europeias DEVEM VESTIR, como signo da sua fé nas virtudes militares,"uma farda ou uma camisa de combate"".
Trata-se de uma citação inexacta, não respeitando as palavras e a intenção do seu autor. Rolão Preto escreveu: "Os chefes das nações que se estão libertando das ruínas europeias VESTEM por toda a parte, como signo da sua fé nas virtudes militares, uma farda ou uma camisa de combate". E acrescentou: "Quererá Salazar, dentro do seu temperamento, aceitar a missão imposta pela sua época?" (negrito acrescentado).
Não bastou a Franco Nogueira alterar as palavras e a intenção de Rolão Preto. Com acrimónia, prosseguiu considerando que Rolão Preto teria "acusado" Salazar de ser um financeiro, um economista, uma "mentalidade ponderada e tranquila", um homem de equilíbrio. Não houve obviamente qualquer acusação a Salazar, antes lhe atribuiu essas qualidades, inclusive a de economista, quando havia então quem dissesse "ter mais fé nas virtudes financeiras (...) do que nas suas qualidades de economista.". Uma nuance podia ser de considerar, mas Salazar era, segundo Rolão Preto, "não só o grande financeiro que todo o país aprecia, mas o economista."
Nas entrevistas a António Ferro, Salazar mostrou-se um admirador sincero de Mussolini. Não o apresentou como modelo, é certo, mas ao continuar o desenho do perfil de Salazar segundo Rolão Preto, Nogueira volta a não ser fiel ao texto dando a entender que ali se teria escrito que Salazar não seria capaz de assomar a uma varanda e, com a mão erguida ao céu à maneira romana, fazer ressoar "o sopro heróico do espírito da raça", etc., ao jeito de Benito Mussolini. No seu comentário, Rolão Preto descreveu o triunfo político de Mussolini, aludindo aos métodos e mesmo a um discurso nas varandas do Palácio Chigi, mas não fazendo qualquer comparação com Salazar, sem dúvida por patriotismo, mas também decerto por decoro. Imaginar o chefe de um governo português, como Oliveira Salazar, assomando a uma varanda, elevando a sua mão romanamente ao céu, e gritando com a sua voz de falsete a certeza numa vitória, só podia resultar em comédia.
A que propósito veio tudo isto do biógrafo de Salazar?
A tese que Salazar e o seu entourage difundiu ao proibir o Nacional-Sindicalismo, foi a de que este se teria inspirado "em certos modelos estrangeiros”. A acusação negava o carácter nacional das suas ideias, tal como se fazia quando se acusava o Integralismo Lusitano de ser uma cópia da Action française. Esse era um expediente habitual de ataque dos seus adversários políticos, como Raúl Proença, por exemplo, mais tarde secundado por Carlos Ferrão, João Medina, entre outros.
Negar o carácter nacional do ideário de um nacionalista é a forma mais elementar de o desqualificar, quando não de o insultar. Em resposta, os nacional-sindicalistas de Rolão Preto, refutam a acusação do Governo, como que repelindo e devolvendo o insulto: "O Movimento N. S. nunca se inspirou, nem tinha que inspirar-se em ideologias de modelos estrangeiros, fundada como foi por nacionalistas portuguêses, cuja doutrina é anterior, não só à dos homens do Govêrno e à sua «União Nacional» — o que seria pouco em verdade — como também à doutrinação fascista e nazista, ou a qualquer outro aspecto de Revolução Nacionalista na Europa."
Em 1934 e 1935, o governo de Salazar conviveu muito bem, paredes-meias, com o fascismo italiano: estava estabelecida a União Nacional (o partido único do regime) e a Acção Escolar de Vanguarda (AEV) destinada à juventude, seria representada por António Eça de Queirós, em Dezembro, no Congresso da "Internacional Fascista" (CAUR) em Montreux. Em 29 de Abril de 1935, a sessão de estreia do filme Camicia Nera (G. Forzano, 1933), no Teatro São Luís, contou com a presença do presidente Óscar Carmona, do chefe do governo Oliveira Salazar, de Mesquita Guimarães, vários ministros, e duzentos Vanguardistas uniformizados com as suas "Camisas Verdes". No ano seguinte, seria mesmo criada a Mocidade Portuguesa, organização segundo o figurino da Opera Nazionale Balilla da Itália fascista e da Juventude Hitleriana (Hitlerjugend) do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP).
Viera depois a II Guerra Mundial e a derrota dos Fascismos, com o governo de Salazar a reciclar-se ao ponto de, em 1949, ser fundador da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN / NATO), a organização de defesa militar das democracias.
Nos anos de 1970, em especial após o 25 de Abril, identificar o nacional-sindicalismo com o fascismo adquiria um novo significado e importância. Para quem tivesse servido no governo de Salazar, soava muito bem dizer-se que o fascismo português teria existido de facto, mas não no Estado Novo, antes nos "camisas azuis" de Rolão Preto, movimento que Salazar eliminou. Reagindo ao que diziam os políticos dos partidos do novo regime, subscritores do "Pacto-MFA - Partidos", que em regra identificavam o Salazarismo com o Fascismo, várias foram as personalidades políticas do antigo regime difundindo a ideia que Salazar teria triunfado sobre os fascistas. Entre outros, José Hermano Saraiva terá sido um dos que maior visibilidade virá a obter por se ter dedicado à divulgação da História de Portugal por meios audio-visuais.
Em 1977, na biografia de Salazar, Franco Nogueira está entre os que inauguram uma literatura capciosa procurando forçar as fontes primárias a dizer ou sugerir que Rolão Preto seria o "fascista português": a um fascista não bastaria que o seu chefe vestisse farda ou "camisa de combate", tal seria um dever; um fascista não podia mostrar qualquer espécie de apreciação por Salazar, devendo rejeitar como uma aberração a sua "mentalidade ponderada e tranquila"; em suma, um fascista deploraria Salazar por não ser um "líder cesarista, espalhafatoso, galvanizador - por não copiar Mussolini", como diria João Medina. As "pinceladas" de distorção que Nogueira introduziu no "retrato" de Rolão Preto, visavam apresentá-lo como um fascista credível. O tal "fascista" que Salazar decidiu eliminar.
O comentário de Rolão Preto às entrevistas de Salazar com António Ferro, revela porém uma outra história, que importa revisitar.
Por mais de uma vez, Rolão Preto refere Mussolini no citado folheto, colocando-o ao lado de dirigentes bolcheviques, como Trotsky e Lenine:
"O Duce cria um movimento que galvaniza a Itália e à frente dele conquista o Estado, depois de ter partido a espinha dorsal ao inimigo. Mil batalhas nas ruas e na imprensa; Trotsky, o criador e a alma do golpe de Estado de Outubro que deu o poder ao bolchevismo, é, como o Duce, um homem de acção (...)"
Mais adiante, Mussolini surge junto de mais personalidades históricas:
"Sidónio, como Mussolini, como Kemal Pachá, como Lenine, ao contrário [de Salazar, o "Ditador das Finanças"] empunha a bandeira da sua eleição, ergue-a à altura de ser vista por todo o país e comanda: Quem for por nós que nos siga. Nesta bandeira, está a verdade necessária, sem compromissos entre ela e a mentira. Em frente!"
Rolão Preto descreve esses políticos como "homens de acção", em flagrante contraste com o chefe do governo português:
"Salazar é o professor calmo, reflectido, que conhece os homens através dos modelos da sua cultura, que os pesa, soma, diminui, divide e multiplica segundo as regras de há muito fixas pelo seu método, pelo seu critério de formalista universitário.
Bem? Mal? É assim"
É assim. Mas qual é o foco principal de Rolão Preto no seu comentário às entrevistas?
Em síntese, segundo Rolão Preto, havia quatro problemas por resolver: militar, económico, social, e político.
No aspecto militar, prover à defesa, sobretudo à defesa externa, era urgente quando estava causando alarme "a pobreza do nosso exército diante do vulcão temeroso que é a Espanha nossa vizinha". Havia também o problema económico e quem colocasse em dúvida os resultados da avareza financeira do Ditador, considerando urgente olhar à "situação desesperada da economia nacional mesmo com o prejuízo do equilíbrio das contas públicas". Foi, porém, ao abordar o problema social que Rolão Preto fez a mais importante demarcação. Seguindo-se o critério de Salazar, exposto nas entrevistas, fundado em dicotomias como "proletariado" e "anti-proletariado", como se fazia no tempo de Jaurès, Sambat, Seyés, Haas e Karl Liebknech, era mostrar-se "impermeável aos ensinamentos da revolução industrial moderna". Os conceitos da social-democracia, eram já "uma pura ficção": "quem actua no seio das massas operárias, quem manobra nos sindicatos, ou são as influencias pessoais de certos chefes burgueses, ou o extremismo violento e absorvente dos comunistas... ou a polícia." Para Rolão Preto, a solução do problema social não estava no Estado, nem em qualquer forma de Estatismo, fosse na linha de Ramada Curto ou na de Benito Mussolini.
A solução do problema social estaria no Sindicalismo. No seu comentário, é enunciada uma clara recusa do Estatismo: "aqueles que julgam que bastará decretar o sindicalismo para que ele viva e conduza a vida nacional enganam-se redondamente.
Não é depois de cem anos de liberalismo económico e social, em que se matou todo o espírito associativo, em que se combateram todos os impulsos da solidariedade profissional por contrários à disciplina dos partidos políticos; não é depois de cem anos de liberal-democracia em que todos nasceram e viveram na desconfiança mútua, no ódio sectário das facções; não é depois de cem anos de permanente desagregação nacional que se vai, a frio e diante da indiferença com que tudo o que vem do Estado é recebido, decretar a vida sindical e corporativa."
Era pois necessário continuar a propagar o ideário Sindicalista, indo para além do clamor das reivindicações da mão-de-obra, pugnando pela organização e o voto de todos os trabalhadores, seja qual for a sua função ou categoria. Em suma, após cem anos de liberalismo económico e social, não seria possível "decretar a vida sindical e corporativa”.
Naquela conjuntura de inícios de 1933, a solução dos problemas económicos e sociais impunha, no entanto, uma firme e testada autoridade política: estaria Salazar à altura do que se lhe exigia?
Uma pergunta crucial foi ali colocada por Rolão Preto:
"É Salazar um chefe político?"
Eis as palavras de Rolão Preto:
"Na segunda entrevista a António Ferro, o Ditador das Finanças declara simples e sinceramente que o não é, nem o pretende ser."
- Como assim? Não é chefe político, nem o pretende ser?
Prossegue Rolão Preto no seu comentário:
"A confissão tem uma nobreza que cativa.
Num país em que tantos são chefes por vaidade, há um homem que o não quer ser por modéstia.
Salazar, chefe do governo, é pois apenas o fulcro supremo de uma engrenagem, a cúpula necessária de um edifício que a revolução criou e mantém".
Entre Salazar e os outros ditadores, havia na verdade uma diferença essencial, exposta por Rolão Preto:
"os outros conquistaram eles o poder, Salazar aceitou que outros lhe conquistassem o lugar mas não deu para isso o seu esforço".
O Comentário concluiu com as seguintes palavras, destacadas do corpo do texto:
"Salazar, para realizar a sua obra política, tem que pôr ousadamente a sua candidatura de chefe nacional, sujeitando-se a todos os riscos, mas colhendo todos os louros da vitória".
Em Janeiro de 1933, ao comentar as entrevistas de Salazar a Ferro, estava-se ainda nas vésperas do referendo à Constituição, que virá a ser realizado em Março. No ano seguinte, estava prevista a realização de eleições para a Assembleia Nacional, cujo processo de recenseamento ficará concluído em Julho. Oliveira Salazar não quis correr qualquer risco e mandou prender e desterrar para Espanha os dois dirigentes integralistas do Nacional-Sindicalismo. Poucos dias depois, Salazar proibiu o Nacional-Sindicalismo.
A definição de um colégio eleitoral único, de lista completa, só viria a ser feita em Novembro, perto de um mês antes do acto eleitoral, a realizar em 16 de Dezembro. A opção pelo colégio eleitoral único, de lista completa, baseou-se num conceito totalitário, decalcado da doutrina Fascista, claramente expresso no preâmbulo do Decreto-lei 24:631, de 6 de Novembro de 1934: "a Nação é um todo orgânico superior e diferente dos indivíduos que a compõem em determinado ponto da sua evolução, uma unidade moral política e económica, formando um todo uno com o Estado e com ele integrado.". Benito Mussolini, ao definir o Fascismo, expressara a mesma ideia do todo uno da Nação integrado no Estado do seguinte modo: "o estado fascista, síntese e unidade de todo valor, interpreta, desenvolve e fortalece toda a vida do povo./ Nem indivíduos fora do Estado, nem grupos (partidos políticos, associações, sindicatos, classes)."
Seguiu-se a farsa eleitoral, garantindo à União Nacional o pleno dos deputados na Assembleia Nacional. Em 1936, no livro Justiça!, Rolão Preto classificará o nascente Estado Novo, como um estatismo totalitário. A inspiração do fascismo italiano era por demais evidente.
21 de Maio de 2024 - J. M. Q.
Relacionado
Franco Nogueira, no II volume da sua biografia de Oliveira Salazar, (Salazar, Volume II, Os tempos áureos (1928-1936) (Coimbra, Atlântida Editora, 1977) refere o folheto de Francisco Rolão Preto, Salazar e a sua época (Lisboa, Janeiro, 1933), para "caracterizar um perfil de Salazar segundo os nacionais-sindicalistas".
Segundo Franco Nogueira, Rolão Preto teria ali sustentado que "os chefes das nações que se estão libertando das ruínas europeias DEVEM VESTIR, como signo da sua fé nas virtudes militares,"uma farda ou uma camisa de combate"".
Trata-se de uma citação inexacta, não respeitando as palavras e a intenção do seu autor. Rolão Preto escreveu: "Os chefes das nações que se estão libertando das ruínas europeias VESTEM por toda a parte, como signo da sua fé nas virtudes militares, uma farda ou uma camisa de combate". E acrescentou: "Quererá Salazar, dentro do seu temperamento, aceitar a missão imposta pela sua época?" (negrito acrescentado).
Não bastou a Franco Nogueira alterar as palavras e a intenção de Rolão Preto. Com acrimónia, prosseguiu considerando que Rolão Preto teria "acusado" Salazar de ser um financeiro, um economista, uma "mentalidade ponderada e tranquila", um homem de equilíbrio. Não houve obviamente qualquer acusação a Salazar, antes lhe atribuiu essas qualidades, inclusive a de economista, quando havia então quem dissesse "ter mais fé nas virtudes financeiras (...) do que nas suas qualidades de economista.". Uma nuance podia ser de considerar, mas Salazar era, segundo Rolão Preto, "não só o grande financeiro que todo o país aprecia, mas o economista."
Nas entrevistas a António Ferro, Salazar mostrou-se um admirador sincero de Mussolini. Não o apresentou como modelo, é certo, mas ao continuar o desenho do perfil de Salazar segundo Rolão Preto, Nogueira volta a não ser fiel ao texto dando a entender que ali se teria escrito que Salazar não seria capaz de assomar a uma varanda e, com a mão erguida ao céu à maneira romana, fazer ressoar "o sopro heróico do espírito da raça", etc., ao jeito de Benito Mussolini. No seu comentário, Rolão Preto descreveu o triunfo político de Mussolini, aludindo aos métodos e mesmo a um discurso nas varandas do Palácio Chigi, mas não fazendo qualquer comparação com Salazar, sem dúvida por patriotismo, mas também decerto por decoro. Imaginar o chefe de um governo português, como Oliveira Salazar, assomando a uma varanda, elevando a sua mão romanamente ao céu, e gritando com a sua voz de falsete a certeza numa vitória, só podia resultar em comédia.
A que propósito veio tudo isto do biógrafo de Salazar?
A tese que Salazar e o seu entourage difundiu ao proibir o Nacional-Sindicalismo, foi a de que este se teria inspirado "em certos modelos estrangeiros”. A acusação negava o carácter nacional das suas ideias, tal como se fazia quando se acusava o Integralismo Lusitano de ser uma cópia da Action française. Esse era um expediente habitual de ataque dos seus adversários políticos, como Raúl Proença, por exemplo, mais tarde secundado por Carlos Ferrão, João Medina, entre outros.
Negar o carácter nacional do ideário de um nacionalista é a forma mais elementar de o desqualificar, quando não de o insultar. Em resposta, os nacional-sindicalistas de Rolão Preto, refutam a acusação do Governo, como que repelindo e devolvendo o insulto: "O Movimento N. S. nunca se inspirou, nem tinha que inspirar-se em ideologias de modelos estrangeiros, fundada como foi por nacionalistas portuguêses, cuja doutrina é anterior, não só à dos homens do Govêrno e à sua «União Nacional» — o que seria pouco em verdade — como também à doutrinação fascista e nazista, ou a qualquer outro aspecto de Revolução Nacionalista na Europa."
Em 1934 e 1935, o governo de Salazar conviveu muito bem, paredes-meias, com o fascismo italiano: estava estabelecida a União Nacional (o partido único do regime) e a Acção Escolar de Vanguarda (AEV) destinada à juventude, seria representada por António Eça de Queirós, em Dezembro, no Congresso da "Internacional Fascista" (CAUR) em Montreux. Em 29 de Abril de 1935, a sessão de estreia do filme Camicia Nera (G. Forzano, 1933), no Teatro São Luís, contou com a presença do presidente Óscar Carmona, do chefe do governo Oliveira Salazar, de Mesquita Guimarães, vários ministros, e duzentos Vanguardistas uniformizados com as suas "Camisas Verdes". No ano seguinte, seria mesmo criada a Mocidade Portuguesa, organização segundo o figurino da Opera Nazionale Balilla da Itália fascista e da Juventude Hitleriana (Hitlerjugend) do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP).
Viera depois a II Guerra Mundial e a derrota dos Fascismos, com o governo de Salazar a reciclar-se ao ponto de, em 1949, ser fundador da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN / NATO), a organização de defesa militar das democracias.
Nos anos de 1970, em especial após o 25 de Abril, identificar o nacional-sindicalismo com o fascismo adquiria um novo significado e importância. Para quem tivesse servido no governo de Salazar, soava muito bem dizer-se que o fascismo português teria existido de facto, mas não no Estado Novo, antes nos "camisas azuis" de Rolão Preto, movimento que Salazar eliminou. Reagindo ao que diziam os políticos dos partidos do novo regime, subscritores do "Pacto-MFA - Partidos", que em regra identificavam o Salazarismo com o Fascismo, várias foram as personalidades políticas do antigo regime difundindo a ideia que Salazar teria triunfado sobre os fascistas. Entre outros, José Hermano Saraiva terá sido um dos que maior visibilidade virá a obter por se ter dedicado à divulgação da História de Portugal por meios audio-visuais.
Em 1977, na biografia de Salazar, Franco Nogueira está entre os que inauguram uma literatura capciosa procurando forçar as fontes primárias a dizer ou sugerir que Rolão Preto seria o "fascista português": a um fascista não bastaria que o seu chefe vestisse farda ou "camisa de combate", tal seria um dever; um fascista não podia mostrar qualquer espécie de apreciação por Salazar, devendo rejeitar como uma aberração a sua "mentalidade ponderada e tranquila"; em suma, um fascista deploraria Salazar por não ser um "líder cesarista, espalhafatoso, galvanizador - por não copiar Mussolini", como diria João Medina. As "pinceladas" de distorção que Nogueira introduziu no "retrato" de Rolão Preto, visavam apresentá-lo como um fascista credível. O tal "fascista" que Salazar decidiu eliminar.
O comentário de Rolão Preto às entrevistas de Salazar com António Ferro, revela porém uma outra história, que importa revisitar.
Por mais de uma vez, Rolão Preto refere Mussolini no citado folheto, colocando-o ao lado de dirigentes bolcheviques, como Trotsky e Lenine:
"O Duce cria um movimento que galvaniza a Itália e à frente dele conquista o Estado, depois de ter partido a espinha dorsal ao inimigo. Mil batalhas nas ruas e na imprensa; Trotsky, o criador e a alma do golpe de Estado de Outubro que deu o poder ao bolchevismo, é, como o Duce, um homem de acção (...)"
Mais adiante, Mussolini surge junto de mais personalidades históricas:
"Sidónio, como Mussolini, como Kemal Pachá, como Lenine, ao contrário [de Salazar, o "Ditador das Finanças"] empunha a bandeira da sua eleição, ergue-a à altura de ser vista por todo o país e comanda: Quem for por nós que nos siga. Nesta bandeira, está a verdade necessária, sem compromissos entre ela e a mentira. Em frente!"
Rolão Preto descreve esses políticos como "homens de acção", em flagrante contraste com o chefe do governo português:
"Salazar é o professor calmo, reflectido, que conhece os homens através dos modelos da sua cultura, que os pesa, soma, diminui, divide e multiplica segundo as regras de há muito fixas pelo seu método, pelo seu critério de formalista universitário.
Bem? Mal? É assim"
É assim. Mas qual é o foco principal de Rolão Preto no seu comentário às entrevistas?
Em síntese, segundo Rolão Preto, havia quatro problemas por resolver: militar, económico, social, e político.
No aspecto militar, prover à defesa, sobretudo à defesa externa, era urgente quando estava causando alarme "a pobreza do nosso exército diante do vulcão temeroso que é a Espanha nossa vizinha". Havia também o problema económico e quem colocasse em dúvida os resultados da avareza financeira do Ditador, considerando urgente olhar à "situação desesperada da economia nacional mesmo com o prejuízo do equilíbrio das contas públicas". Foi, porém, ao abordar o problema social que Rolão Preto fez a mais importante demarcação. Seguindo-se o critério de Salazar, exposto nas entrevistas, fundado em dicotomias como "proletariado" e "anti-proletariado", como se fazia no tempo de Jaurès, Sambat, Seyés, Haas e Karl Liebknech, era mostrar-se "impermeável aos ensinamentos da revolução industrial moderna". Os conceitos da social-democracia, eram já "uma pura ficção": "quem actua no seio das massas operárias, quem manobra nos sindicatos, ou são as influencias pessoais de certos chefes burgueses, ou o extremismo violento e absorvente dos comunistas... ou a polícia." Para Rolão Preto, a solução do problema social não estava no Estado, nem em qualquer forma de Estatismo, fosse na linha de Ramada Curto ou na de Benito Mussolini.
A solução do problema social estaria no Sindicalismo. No seu comentário, é enunciada uma clara recusa do Estatismo: "aqueles que julgam que bastará decretar o sindicalismo para que ele viva e conduza a vida nacional enganam-se redondamente.
Não é depois de cem anos de liberalismo económico e social, em que se matou todo o espírito associativo, em que se combateram todos os impulsos da solidariedade profissional por contrários à disciplina dos partidos políticos; não é depois de cem anos de liberal-democracia em que todos nasceram e viveram na desconfiança mútua, no ódio sectário das facções; não é depois de cem anos de permanente desagregação nacional que se vai, a frio e diante da indiferença com que tudo o que vem do Estado é recebido, decretar a vida sindical e corporativa."
Era pois necessário continuar a propagar o ideário Sindicalista, indo para além do clamor das reivindicações da mão-de-obra, pugnando pela organização e o voto de todos os trabalhadores, seja qual for a sua função ou categoria. Em suma, após cem anos de liberalismo económico e social, não seria possível "decretar a vida sindical e corporativa”.
Naquela conjuntura de inícios de 1933, a solução dos problemas económicos e sociais impunha, no entanto, uma firme e testada autoridade política: estaria Salazar à altura do que se lhe exigia?
Uma pergunta crucial foi ali colocada por Rolão Preto:
"É Salazar um chefe político?"
Eis as palavras de Rolão Preto:
"Na segunda entrevista a António Ferro, o Ditador das Finanças declara simples e sinceramente que o não é, nem o pretende ser."
- Como assim? Não é chefe político, nem o pretende ser?
Prossegue Rolão Preto no seu comentário:
"A confissão tem uma nobreza que cativa.
Num país em que tantos são chefes por vaidade, há um homem que o não quer ser por modéstia.
Salazar, chefe do governo, é pois apenas o fulcro supremo de uma engrenagem, a cúpula necessária de um edifício que a revolução criou e mantém".
Entre Salazar e os outros ditadores, havia na verdade uma diferença essencial, exposta por Rolão Preto:
"os outros conquistaram eles o poder, Salazar aceitou que outros lhe conquistassem o lugar mas não deu para isso o seu esforço".
O Comentário concluiu com as seguintes palavras, destacadas do corpo do texto:
"Salazar, para realizar a sua obra política, tem que pôr ousadamente a sua candidatura de chefe nacional, sujeitando-se a todos os riscos, mas colhendo todos os louros da vitória".
Em Janeiro de 1933, ao comentar as entrevistas de Salazar a Ferro, estava-se ainda nas vésperas do referendo à Constituição, que virá a ser realizado em Março. No ano seguinte, estava prevista a realização de eleições para a Assembleia Nacional, cujo processo de recenseamento ficará concluído em Julho. Oliveira Salazar não quis correr qualquer risco e mandou prender e desterrar para Espanha os dois dirigentes integralistas do Nacional-Sindicalismo. Poucos dias depois, Salazar proibiu o Nacional-Sindicalismo.
A definição de um colégio eleitoral único, de lista completa, só viria a ser feita em Novembro, perto de um mês antes do acto eleitoral, a realizar em 16 de Dezembro. A opção pelo colégio eleitoral único, de lista completa, baseou-se num conceito totalitário, decalcado da doutrina Fascista, claramente expresso no preâmbulo do Decreto-lei 24:631, de 6 de Novembro de 1934: "a Nação é um todo orgânico superior e diferente dos indivíduos que a compõem em determinado ponto da sua evolução, uma unidade moral política e económica, formando um todo uno com o Estado e com ele integrado.". Benito Mussolini, ao definir o Fascismo, expressara a mesma ideia do todo uno da Nação integrado no Estado do seguinte modo: "o estado fascista, síntese e unidade de todo valor, interpreta, desenvolve e fortalece toda a vida do povo./ Nem indivíduos fora do Estado, nem grupos (partidos políticos, associações, sindicatos, classes)."
Seguiu-se a farsa eleitoral, garantindo à União Nacional o pleno dos deputados na Assembleia Nacional. Em 1936, no livro Justiça!, Rolão Preto classificará o nascente Estado Novo, como um estatismo totalitário. A inspiração do fascismo italiano era por demais evidente.
21 de Maio de 2024 - J. M. Q.
Relacionado
Na biografia de Salazar, Franco Nogueira não se limitou a distorcer o conteúdo do folheto Salazar e a sua época de Rolão Preto. Em várias passagens, a intenção capciosa de Nogueira é manifesta, omitindo sempre o caracter anti-oligárquico, municipalista e sindicalista, do movimento nacional-sindicalista, como chegando mesmo a atribuir-lhe, sem especificar, "iniciativas de cariz totalitário" e, aos seus comícios, intenção de "exaltação dos movimentos nazi e fascista".
Curiosamente, segundo Franco Nogueira, os nacional-sindicalistas faziam a "saudação romana" nos seus desfiles, enquanto os vanguardistas (da AEV do governo) faziam saudações "de braço estendido ao alto e palma da mão aberta". Salazar teria um perfil hirto e severo, colocando as mãos atrás das costas, ao ver desfilar os seus vanguardistas, o que nem sempre foi verdade, como está bem documentado.
Seguem documentos ilustrativos, a que se juntam algumas explicações.
Curiosamente, segundo Franco Nogueira, os nacional-sindicalistas faziam a "saudação romana" nos seus desfiles, enquanto os vanguardistas (da AEV do governo) faziam saudações "de braço estendido ao alto e palma da mão aberta". Salazar teria um perfil hirto e severo, colocando as mãos atrás das costas, ao ver desfilar os seus vanguardistas, o que nem sempre foi verdade, como está bem documentado.
Seguem documentos ilustrativos, a que se juntam algumas explicações.
Página 192:
O jornal Revolução, nº 292, de 20 de Fevereiro de 1933, faz a cobertura do banquete do Parque Eduardo VII. Rolão Preto disse: "Eu, que nunca pedi nada ao Dr. Oliveira Salazar, eu que nada lhe peço, eu que só apareceria distante do Dr. Oliveira Salazar com a cabeça bem erguida digo, a ele que me está ouvindo: Sr. Dr. Oliveira Salazar, oiça V. Exª. a alma nacional que vibra, escute os votos da mocidade portuguesa e, se quer, ALEA JACTA EST".
"Alea Jacta Est" é uma expressão latina atribuída a Suetónio, dirigindo-se a César, quando este passou o rio Rubicão com as suas tropas, no limite Norte do território sob a jurisdição do Senado de Roma. César recebera ordem do Senado para desmobilizar as suas tropas antes de passar o Rubicão. Ao transpor as águas do Rubicão, César desafiava o poder do órgão máximo da oligarquia de Roma.
Em Fevereiro de 1933, o ALEA JACTA EST de Rolão Preto, podia ser interpretado como um último apelo dirigido a Salazar para que se juntasse ao espírito e ao propósito anti-oligárquico da Revolução Nacional do 28 de Maio de 1926, de que Rolão Preto fora um dos obreiros-chave junto do general Gomes da Costa, cujo "projecto constitucional, apresentado em 14 de Junho de 1926, tinha na base uma Câmara de Representantes por delegação directa dos Municípios. Naquela data, era conhecido o projecto constitucional de Salazar, baseado no modelo oligárquico do grupo da Seara Nova, com uma Câmara para representação de partidos políticos. Dada a proximidade do referendo à Constituição, a realizar em Março, Rolão Preto estaria sobretudo a dizer que tinha consigo a alma nacional, e a juventude, e que estava disposto a desafiar a oligarquia reunida ao redor de Salazar.
Na biografia de Salazar, Franco Nogueira, identifica o que terão sido os vários grupos presentes então no Parque Eduardo VII - "integralismo lusitano", "nacionalismo português", "meios militares e jornalísticos", "gerações novas" - mas, sem fazer qualquer referência ao discurso de Rolão Preto, omite os seus propósitos ou intenções, acrescentando capciosamente que “de camisa azul e saudação romana, os nacionais-sindicalistas exaltam os movimentos nazi e fascista" (Salazar, II, p. 192).
O jornal Revolução, nº 292, de 20 de Fevereiro de 1933, faz a cobertura do banquete do Parque Eduardo VII. Rolão Preto disse: "Eu, que nunca pedi nada ao Dr. Oliveira Salazar, eu que nada lhe peço, eu que só apareceria distante do Dr. Oliveira Salazar com a cabeça bem erguida digo, a ele que me está ouvindo: Sr. Dr. Oliveira Salazar, oiça V. Exª. a alma nacional que vibra, escute os votos da mocidade portuguesa e, se quer, ALEA JACTA EST".
"Alea Jacta Est" é uma expressão latina atribuída a Suetónio, dirigindo-se a César, quando este passou o rio Rubicão com as suas tropas, no limite Norte do território sob a jurisdição do Senado de Roma. César recebera ordem do Senado para desmobilizar as suas tropas antes de passar o Rubicão. Ao transpor as águas do Rubicão, César desafiava o poder do órgão máximo da oligarquia de Roma.
Em Fevereiro de 1933, o ALEA JACTA EST de Rolão Preto, podia ser interpretado como um último apelo dirigido a Salazar para que se juntasse ao espírito e ao propósito anti-oligárquico da Revolução Nacional do 28 de Maio de 1926, de que Rolão Preto fora um dos obreiros-chave junto do general Gomes da Costa, cujo "projecto constitucional, apresentado em 14 de Junho de 1926, tinha na base uma Câmara de Representantes por delegação directa dos Municípios. Naquela data, era conhecido o projecto constitucional de Salazar, baseado no modelo oligárquico do grupo da Seara Nova, com uma Câmara para representação de partidos políticos. Dada a proximidade do referendo à Constituição, a realizar em Março, Rolão Preto estaria sobretudo a dizer que tinha consigo a alma nacional, e a juventude, e que estava disposto a desafiar a oligarquia reunida ao redor de Salazar.
Na biografia de Salazar, Franco Nogueira, identifica o que terão sido os vários grupos presentes então no Parque Eduardo VII - "integralismo lusitano", "nacionalismo português", "meios militares e jornalísticos", "gerações novas" - mas, sem fazer qualquer referência ao discurso de Rolão Preto, omite os seus propósitos ou intenções, acrescentando capciosamente que “de camisa azul e saudação romana, os nacionais-sindicalistas exaltam os movimentos nazi e fascista" (Salazar, II, p. 192).
Página 226:
Em nota, Fernando Martins de Carvalho, é descrito como "Antigo ministro da Monarquia e jurista eminente"; os integralistas referir-se-ão à sua filiação na maçonaria e, sem gralha, como "advogafo" dado seu papel na apropriação pelo Estado dos bens vinculados da Casa de Bragança ao institui-se a Fundação da Casa de Bragança (ver José Manuel Quintas, A fundação da Salazarquia, p. 113).
Página 227:
Franco Nogueira escreve que Rolão Preto teria "iniciativas de cariz totalitário", sem especificar quais.
Em nota, Fernando Martins de Carvalho, é descrito como "Antigo ministro da Monarquia e jurista eminente"; os integralistas referir-se-ão à sua filiação na maçonaria e, sem gralha, como "advogafo" dado seu papel na apropriação pelo Estado dos bens vinculados da Casa de Bragança ao institui-se a Fundação da Casa de Bragança (ver José Manuel Quintas, A fundação da Salazarquia, p. 113).
Página 227:
Franco Nogueira escreve que Rolão Preto teria "iniciativas de cariz totalitário", sem especificar quais.
Página 238:
Interessante transcrição da minuta da conferência de Salazar com o Chefe do Estado, em Cascais, em 16 de Outubro de 1933, com referência ao Tenente Carvalho Nunes, "ardoroso nacional-sindicalista", que tudo indica, sê-lo-ia na verdade.
Interessante transcrição da minuta da conferência de Salazar com o Chefe do Estado, em Cascais, em 16 de Outubro de 1933, com referência ao Tenente Carvalho Nunes, "ardoroso nacional-sindicalista", que tudo indica, sê-lo-ia na verdade.
Páginas 192 e 263: um contraste esclarecedor.
No parque Eduardo VII, "de camisa azul e saudação romana, os nacionais-sindicalistas exaltam os movimentos nazi e fascista" (Salazar, II, p. 192). No Terreiro do Paço, os "vanguardistas alinhados nas suas camisas verdes" (...) fazem saudações "de braço estendido ao alto e palma da mão aberta" (Salazar, II, p. 263).
De notar que os vanguardistas, da AEV do governo de Salazar, estiveram representados por António Eça de Queirós no Congresso de Montreux, em Dezembro de 1934 - tentativa de organização de uma Internacional Fascista promovida pelo governo de Mussolini.
As fotografias seguintes, que Franco Nogueira obviamente não reproduziu, dispensam mais comentários. Ver também a página da "Acção Escolar de Vanguarda".
No parque Eduardo VII, "de camisa azul e saudação romana, os nacionais-sindicalistas exaltam os movimentos nazi e fascista" (Salazar, II, p. 192). No Terreiro do Paço, os "vanguardistas alinhados nas suas camisas verdes" (...) fazem saudações "de braço estendido ao alto e palma da mão aberta" (Salazar, II, p. 263).
De notar que os vanguardistas, da AEV do governo de Salazar, estiveram representados por António Eça de Queirós no Congresso de Montreux, em Dezembro de 1934 - tentativa de organização de uma Internacional Fascista promovida pelo governo de Mussolini.
As fotografias seguintes, que Franco Nogueira obviamente não reproduziu, dispensam mais comentários. Ver também a página da "Acção Escolar de Vanguarda".
Ler comunicado de resposta do Nacional-Sindicalismo, em "1934-07-29 - Salazar e a proibição do Nacional-Sindicalismo"
Relacionado
- A Verdade e a Mentira - A literatura capciosa acerca do Integralismo Lusitano
- 1934 - Acção Escolar de Vanguarda
- 1934-06-20 - Francisco Rolão Preto - Representação ao Presidente da República em Junho de 1934
- 1934-07-29 - Salazar e a proibição do Nacional-Sindicalismo
- 1934-12-24 - O Nacional-Sindicalismo após a Farsa Eleitoral
- 1934 - Hipólito Raposo, O Pombal da Rotunda
- 1936 - Francisco Rolão Preto - Justiça!