1975 - Entrevista com Francisco Rolão Preto - "Não, não e não"
PARA ALÉM DA REVOLUÇÃO... A REVOLUÇÃO
[Esta entrevista pertence ao acervo documental reunido sob o título "A Verdade e a Mentira - A literatura capciosa acerca do Integralismo Lusitano"]
Em 27 de Junho de 1975, João Medina deslocou-se à Soalheira e obteve uma entrevista com Francisco Rolão Preto, 1893-1977. A entrevista terá sido gravada e a sua transcrição lida e retificada por Rolão Preto que, em Julho desse ano, lhe terá acrescentado uma adenda. Após a morte de Rolão Preto, a entrevista foi publicada no livro Salazar e os Fascistas (Lisboa, Bertrand, 1978, pp. 155-191). Aqui a publicamos sob o título "Não, não e não", sem poder confirmar a sua integral autenticidade, mas por nela se verificar a recusa de Rolão Preto em ser identificado como fascista ou com o fascismo. Apresentar Rolão Preto como "o fascista português" foi o propósito de Medina, bem reflectido no tom e no teor de um obsessivo interrogatório. As respostas negativas de Rolão Preto, bem como as informações e pistas fornecidas, foram ignoradas e não demoveram Medina. Também por isso este é um interessante documento historiográfico, mostrando até onde pode ir o enamoramento de um historiador pela sua tese. No corpo do livro, ficaram por elucidar os Princípios do Nacional-Sindicalismo; o conteúdo da sua doutrina anti-totalitária, personalista e comunitária; os motivos da sua rejeição do Estado Novo (na entrevista denunciado como pseudo-sindicalista e sem liberdades públicas, classificado como um "estatismo totalitário" no livro Justiça! - um regime de partido único e corporativismo de Estado, estabelecido sob a influência do fascismo); a sua permanente defesa do interesse nacional dentro da Aliança Luso-Britânica. No seu afã falsificador, Medina chegou ao ponto de mentir sem rebuço a respeito da posição de Rolão Preto face aos beligerantes da Segunda Guerra Mundial (ver A Verdade e a Mentira - A literatura capciosa acerca do Integralismo Lusitano). Os meus apontamentos, comentários e destaques, vão em negrito. - J.M.Q.
ENTREVISTA:
ROLÃO PRETO RECUSA IDENTIFICAR O NACIONAL-SINDICALISMO COM O FASCISMO. ROLÃO PRETO E OLIVEIRA SALAZAR.
- João Medina - O que foi o movimento nacional-sindicalista? Terá sido o primeiro movimento fascista em Portugal?
- Francisco Rolão Preto. "Fascista", não... Pré-fascista. O movimento nacional-sindicalista correspondia de certo modo à ansiedade do social que havia na geração nova. Havia o jornal criado em Lisboa por gente nova que dizia essa ansiedade, e que eu traduzi criando uma organização. Essa organização não era particularmente isto ou aquilo - isto ou aquilo "fascista" -, porque o fascismo nessa altura não tinha ainda a influencia que veio a ter com a Itália fascista e a Alemanha triunfante. De resto, o problema punha-se assim: nem o fascismo tinha o mau nome que hoje tem, nem a democracia tinha o bom nome que hoje apresenta. Não havia, pois, o fascismo entre nós.
- Não havia quem em Portugal se reclamasse aberta, confessadamente, do fascismo italiano?
- Não. O fascismo não tinha eco nenhum em Portugal. Em Portugal havia esta ansiedade: uma ordem, porque o regime anterior tinha criado a desordem. Esse regime tinha-se mostrado incompatível com qualquer realização verdadeiramente prática porque os governos se sucediam, caíam em oito dias... Por qualquer pressão sem importância, deitava-se um Ministério abaixo. Não havia portanto esperança nenhuma de realizar um programa democrático - ou fosse lá o que fosse. De maneira que, quando os estudantes integralistas começaram a fazer o jornal A Revolução, era com a intenção dum certo autoritarismo, a de criar uma força, uma base. Era o que o País precisava naquela altura - mas não o fascismo. Porque o fascismo naquela altura não representava nada. Representava uma tentativa italiana que em Portugal não se percebia bem qual seria a tendência.
- Mas porque é que as pessoas não aderiram pura e simplesmente ao salazarismo - o Salazar já era uma força em 1932...?
- Isso faz parte das razões que criaram o salazarismo. Salazar chegou a Lisboa na altura em que os partidos estavam completamente "partidos"... Não havia de facto nenhuma organização capaz de realmente resolver os problemas urgentes: a começar pelo problema económico. Todos esses problemas eram de longe ultrapassados pelas dificuldades existentes. E o Salazar chega a Lisboa com um programa financeiro. Tanto o seu discurso da Sala do Risco, como todas as suas tentativas de fazer uma política representam sobretudo a ambição, um triunfo pessoal. Salazar, acima de tudo era um orgulhoso. Uma vez procurado da nossa parte por Alberto de Monsaraz (1889-1959) - através de Alberto mantínhamos contactos políticos, isto à volta de 1932, talvez (note-se que Monsaraz era a pessoa indicada para ir falar com ele porque tinham sido companheiros em Coimbra, eram amigos, tratavam-se por tu) - Salazar disse-lhe: "Eu não queria ser um ditador. O que eu queria sobretudo, se o destino me fosse propício, era ser o primeiro-ministro de um rei absoluto". Salazar tinha vindo nessa altura de Coimbra com Manuel Rodrigues e Mendes dos Remédios: chamavam-lhes "a tuna académica". Monsaraz fez um relatório que nos leu, à noite. Outro aspecto em que o Salazar define a sua maneira de ser, diabólica: "Se vocês", disse ele a Monsaraz referindo-se a nós, nessa altura integralistas, só integralistas, "se vocês forem contra mim, eu pego em vocês, ponho-os ao lado das esquerdas e bato em todos...". Esta era a maneira como Salazar ocupava a sua posição no Poder. É curioso o que ele disse e mostra bem como fazia tudo em função dele próprio e não queria saber nem de sistemas, nem de regimes, nem de ideias, a não ser que lhe servissem de pedestal... Era um pragmático.
- No fundo, não havia uma ideologia salazarista - não será isso o que quer dizer?
- Havia Salazar, ele só. Mais nada. A mim contava-me o presidente do Conselho (de ministros) de então, o general Vicente de Freitas, que Salazar, na altura apenas ministro das Finanças, levava o dia de gabinete em gabinete a conspirar com os outros ministros, contra o presidente do Conselho... Foi assim que ele conseguiu intrigar para ter alguns elementos no Ministério que o apoiassem. Depois, Salazar servia-se do prestígio que lhe dera ter sido ditador das Finanças: lugar importante nessa altura. depois dum desequilíbrio crónico dos orçamentos. Estava-se numa crise temerosa, falhara o empréstimo estrangeiro, procurava-se quem conseguisse fazer qualquer coisa de positivo, mesmo que fosse uma mera jonglerie como ele fez. Foi isso que lhe deu enorme projecção: era o homem das Finanças.
- Salazar tinha, além disso, uma máquina de propaganda bem montada. Houve o (António Joaquim Tavares) Ferro...
- Depois veio, efectivamente, o Ferro. Foi um homem importante na construção do Salazar. Fez muito por ele: fez dele um mito. Era um homem esperto, inteligente mesmo. Era artista, no que escrevia via-se sobretudo a preocupação de uma certa estética. O Ferro não era nada vulgar. Tenho até a impressão de que era mais inteligente que Salazar...
- Os Salazaristas nunca foram muito inteligentes ou brilhantes - falo sobretudo dos ideólogos do Salazarismo...
- Às vezes parecia. Se eles tivessem compreendido, teriam eles feito a Revolução...
- Mas nunca teria havido um homem de génio ao lado dele?
- Ele também não queria ninguém... Esses homens indiscutíveis não querem ninguém inteligente ao lado. Salazar nunca o quis. Ele considerava-se superior. Lembra-me bem que ele disse a alguém que lhe falava de uma pessoa inteligente: "Ora, passam-me todos por aqui." (e apontava o ombro). Salazar tinha uma vaidade incomensurável. Era um homem à parte, arredado, já mesmo quando estudante coimbrão. Nunca teve contactos connosco, monárquicos. Nunca teve mulheres nem paixões por mulheres. Nunca quis mulher. Tenho o retrato dele aqui numa gaveta, ao lado da condessa de... , creio (Rolão Preto procura numa gaveta uma foto, encontra-a: Salazar, elegante, ao lado de uma bela senhora, sentados num banco). Mas Salazar era um homem frio. Era tal a frieza dele - contava-me uma cunhada minha - que um dia que recebia esta senhora da foto, esta condessa, ela, ao fazer um gesto, deixou que se soltasse um bracelete, que caiu por terra. Então o Salazar, em vez de o apanhar, chamou um áulico - e mando-o apanhar o bracelete da senhora...
- Salazar teve uma paixão por essa senhora?...
- Salazar dificilmente podia ter tido paixões. Em todo o caso, tiravam fotografias juntos - já não era brincadeira, nessa altura.
- E o Salazar estudante, como era?
- Na Faculdade, tinha fama de ser monárquico, andava perto dos que faziam o jornal lá de Coimbra. Mas depressa passou a ser apenas católico, do Centro Católico, de que ele fez os estatutos. Foi deputado pelo Centro Católico, mais tarde (em 1921) . Deputado efémero: o Cunha Leal venceu-o logo... Leal era um dos grande inimigos dele; tinha uma enorme facilidade de falar e uma verve... Coisa que Salazar não tinha - e isto foi uma coisa que talvez prejudicasse Salazar no seu destino: é que ele não era orador. De modo que não podia fazer um parlamento em que tivesse que intervir pessoalmente. A primeira coisa que fez, uma vez chefe indiscutível, foi um parlamento perante o qual os ministros não são responsáveis. Lia os discursos dele, discursos escritos...E nisso era completo: não faltava uma vírgula.
- Quem seriam então os seus ideólogos, os mestres do Salazar? Teria lido Maurras antes de ser dirigente político?
- Eu tenho a impressão que ele não conhecia o Maurras nessa altura. Em Portugal conhecia-se pouco o Maurras, nesse tempo. Fomos nós que o trouxemos do exílio.
- Mas houve um homem que escreveu sobre Maurras nessa altura, em 1914, o conselheiro Aires de Ornelas...
- Sim, talvez, mas Aires de Ornelas era mais um militar do que um espírito informado. Tenho essa impressão. Nos meios intelectuais, foram os estudantes que revelaram em Portugal a personalidade do chefe da Action française. Nós, os estudantes monárquicos que vivíamos em França.
- Quem é que o Salazar lia então?
- Eu tenho a impressão que ele lia os católicos...
- Joseph de Maistre, De Bonald, os papas?...
- Sim, esses, as encíclicas, o Leão XIII. Era natural que fosse isso.
- E quem é que ele admirava? O João Franco? Trocaram cartas em 1929...
- Ele admirava o Franco, sim. Mas o que o João Franco queria era sobretudo obras materiais, estradas, enfim, um certo fontismo...
- Voltemos às suas relações com Salazar. Os integralistas sentiam-se identificados com ele - ou ele com vocês?
- Não é bem assim. Há sempre um grupo monárquico que tem esperanças que Salazar faça a monarquia. E ele não a faz. Não dizia que sim, nem que não. Ia-os iludindo, servia-se deles...
- Ideologicamente, eram afins, os integralistas e Salazar?
- Ele era sobretudo um ecléctico, largamente ecléctico. Onde Salazar via uma coisa que lhe interessava, que servia a sua maneira de ser e o triunfo da sua posição pessoal, era isso que lhe interessava mesmo. Não por ser integralista ou o contrário, monárquico ou não, católico ou não: ele servia-se de tudo isso, repito, para o seu prestígio pessoal. Tanto assim que veio a chocar-se com o bispo do Porto, a chocar-se várias vezes com a Igreja... A Igreja tinha medo dele, não lhe tinha grande amizade.
- Falemos agora de si. No seu livro de 1933, Salazar e a Sua Época, Rolão Preto deplora que Salazar não seja um ditador à maneira europeia, isto é, um leader cesarista, espalhafatoso, galvanizador - em suma, que Salazar, professor frio, não copie Mussolini. Como é que se deu então com ele, se afinal Salazar realizava de modo tão imperfeito o seu ideal cesarista? Foi por divergir do estilo Salazarista que decide criar, em 1932, o seu movimento próprio, de inspiração mais vincadamente "extrovertida" e guerreira, mais de acordo com a sua ideia de ditadura moderna?
[No livro Salazar e a sua época (Janeiro de 1933), Rolão Preto comentou as entrevistas do então chefe do governo com António Ferro, chamando a atenção para o facto de Salazar não ter criado uma Situação, antes ter aproveitado uma Situação criada por outros - a revolta militar do 28 de Maio. Em breve, porém, depois de aprovada a Constituição em referendo, Salazar deveria submeter-se a um julgamento eleitoral: "Salazar, para realizar a sua obra política, tem que pôr ousadamente a sua candidatura de chefe nacional, sujeitando-se a todos os riscos, mas colhendo todos os louros da vitória". No ano seguinte, Salazar não arriscou e, seis meses antes das eleições, proibiu o nacional-sindicalismo, mandando prender e desterrar Rolão Preto e Alberto de Monsaraz. Nesta entrevista, a resposta de Rolão Preto foi educada e serena, esclarecedora, sem acusar as espalhafatosas provocações do entrevistador, semelhantes à falsidade e caricatura contida no panegírico do "Ditador catedrático" por Franco Nogueira [Salazar, II, Os tempos áureos (1928-1936), Coimbra, 1977, página 191; ver 1977 - Franco Nogueira - Um falsidade e caricatura acerca de Rolão Preto].
O "cesarismo", referido por Medina na sua pergunta a Rolão Preto, vinha no entanto muito a propósito da situação ditatorial que Salazar herdou e manteve. O capítulo III do livro Justiça! (1936) inicia exactamente pela caracterização de Syla e dos que fazem a "apologia de César", "os convivas do banquete", os dissidentes da Revolução, "os reaccionários de todos os tempos" que sempre formam cortejo junto dos Césares vencedores:
"Enquanto os convivas do banquete, que consagrava o triunfo supremo de Syla, se entregavam totalmente ao delírio do festim, o Ditador romano - todos conhecem este traço singular do seu carácter - ia, friamente, anotando, naquela hora propícia a todas as indulgências, a lista trágica dos seus inimigos vencidos, que era preciso desterrar no dia seguinte...
Tal gesto, que define uma política e marca definitivamente uma personalidade, é apontado ainda hoje como um exemplo da vontade insensível de César, posta ao serviço de uma sociedade em perigo. Daqui tiram mesmo, os responsáveis da derrocada de velho mundo, a esperança de poder, a todo o tempo, opor ao assalto renovado dos "escravos" a "posição" e a insensibilidade de um Syla, duro salvador de privilégios. Assim, o clamor dos beneficiários da velha "ordem", proclamando a sua confiança num chefe impiedoso e forte, cujo orgulho se sobrepõe à justiça, confirma a opinião daqueles que os consideram refractários à lei de uma consciência "humanista" e cristã” (p. 21)
(...)
De certo, no corpo social (...) a função do chefe é uma exigência do equilíbrio do todo.
Equilibrar é, porém, forçar um dos braços da balança?
Todos aqueles que confundem a Justiça com a sua justiça, a Liberdade com a sua liberdade, o bem estar com o seu bem estar, todos esses saúdam em César, primeiro que tudo, o seu próprio triunfo.
(...)
Cortesãos, nunca leais conselheiros, são eles que formam todas as camarilhas que, pela trama tenaz da intriga sempre renovada, isolam o Poder da Nação, precipitando as catástrofes.
O chefe, como o regime que ele impõe ou garante, torna-se desta maneira, em breve tempo, coisa sua, e dela mantém o exclusivo, através duma luta na qual os escrúpulos não embaraçam a acção." (pp. 22-23)
Caracterizando o regime de Syla-César (de Oliveira Salazar), escreveu Rolão Preto:
..."para curar os males do Liberalismo, cujo pior pecado foi não ter garantido as liberdades essenciais, cria-se um estatismo totalitário, que é o esmagamento completo dessas liberdades que urgia salvar.” (p. 24)
Mas, não estaria nesse Estado Novo de Oliveira Salazar algum eco da Revolução preconizada por Rolão Preto, como pretendiam os "convivas do banquete", os dissidentes do Integralismo e do Nacional Sindicalismo que ingressaram na União Nacional?
Rolão Preto respondeu ali também claramente à questão:
“Estatismo totalitário fundado sobre as conquistas do direito revolucionário?
De nenhuma forma.
O Direito da Revolução não preconiza o desequilíbrio, e muito menos a sobreposição dos Poderes. Ordena-os de outra maneira e dá-lhes uma base diferente.
Nunca, por exemplo, a Revolução comprometeria a independência do Poder Judicial sem se contradizer a si própria.
Não é, porém, a essência mesma da Revolução ultrapassar as posições jurídicas que ela veio encontrar?
Decerto. O Direito Revolucionário é a definição jurídica de uma nova ordem. Simplesmente, essa ordem deixaria de o ser, se se fundasse ao arbítrio pessoal fosse de quem fosse. Não há Direito, mesmo aquele que significa a rotina com apport jurídico do passado, que possa servir apenas a vontade incerta e perigosa de um homem" (p. 24-25)
(ver Justiça!, Capítulo III - Apologia de César, 1936, pp. 21-27)]
- Salazar nunca aceitou que se fizesse um movimento fora do seu, sem ele, fosse qual fosse. Só aceitaria - e foi, o que nos mandou dizer - que entrássemos para a União Nacional, entretanto criada. Então nos daria, no interior dela, um valor de sector, de tendência. Recusámos qualquer contacto com ele. Alberto de Monsaraz foi então alvitrar-lhe que nos consentisse a nossa propaganda livre, como partido, como organização específica. Como integralistas, queríamos fazer algo que pudesse bater o regime e intentámos organizar uma campanha eleitoral. Salazar não aceitou. Só se calava se aparecessemos como uma organização parecida com aquela que ele tinha feito. Com a esperança de nos poder observar. Ora a União Nacional era uma organização apática, conservadora e reacionária que não nos convinha de forma alguma. De modo que nós decidimos não aceitar a União Nacional e fizemos um movimento nosso. Nessa altura, na Europa toda, saída há poucos anos da guerra, assistia-se à proliferação de organizações políticas que combatiam com uma característica especial, como a do fascismo italiano, que era um movimento de antigos combatentes. Até as esquerdas estavam por vezes organizadas da mesma maneira, cultivavam um estilo militarista de fazer política, andavam fardados, tinham cânticos de combate, milícias próprias, estandartes, etc. Mesmo os anarco-sindicalistas tinham uma farda. De modo que nós também adoptámos um estilo semelhante, um uniforme, uma camisa - éramos os camisas azuis. Mas o Nacional-Sindicalismo, note-se, era mais um movimento nosso, de pensamento português, do que uma cópia de qualquer outra organização política europeia. Naturalmente, a influência da Itália fascista e, depois, a do nazismo alemão, influenciaram, criaram um clima favorável...
- Houve nessa altura uma fascização do seu movimento, que teria passado a ser francamente fascista?
- Nós queríamos que ele tivesse características portuguesas, nossas...
- Ainda se sentiam monárquicos?
- No fundo, a maioria do movimento era monárquica, integralista, mas não se punha então o problema do regime.
[Após a apresentação do projecto constitucional do General Gomes da Costa no Conselho de Ministros, em 14 de Junho de 1926, o Integralismo Lusitano suspendeu a reivindicação política monárquica. Aquele projecto constitucional, escrito com a colaboração dos integralistas Hipólito Raposo, Pequito Rebelo e Afonso Lucas, previa uma "representação nacional por delegação directa dos municípios, na eleição dos quais o sufrágio será alargado de maneira a ser atribuído a todos os chefes de família, uniões económicas, e dos corpos educativos e espirituais, com exclusão absoluta do sufrágio individualista, e consequente representação partidária". Menos de um mês depois, o general Gomes da Costa foi preso e deportado para os Açores (ver "O Integralismo Lusitano perante a Salazarquia"). Os integralistas sofreram então um sério revés, mas não alteraram a sua posição, vindo a anunciar a sua dissolução enquanto organismo político na sequência da fusão dos organismos monárquicos na Causa de Dom Duarte Nuno de Bragança, em Julho de 1933. O Movimento Nacional-Sindicalista não colocou a questão do regime e tinha sido criado por dois membros da Junta Central do Integralismo Lusitano. Não representou uma cisão no seio do Integralismo, como adiante é dito, ao contrário do que João Medina supôs e quis por força fazer crer.]
- E continuavam a sê-lo ou eram já qualquer coisa de novo, para além da monarquia?
- Queríamos fazer um movimento "nacional" mais do que "nacionalista". Era um integralismo completamente diferente daquele que tinha havido, do mesmo modo que o integralismo já havia sido completamente diferente da organização monárquica tradicional... Éramos uma revolução em marcha.
- Seja como for, a certa altura surge portanto um conflito entre os nacionais-sindicalistas e o salazarismo. Falemos agora do célebre banquete que lhe é oferecido, Rolão Preto, no Parque Eduardo VII, a 18 de Fevereiro de 1933.
- Nessa altura há uma manifestação que de facto inspirou cuidados ao Salazar. Foi esse tal banquete do Parque Eduardo VII, em Fevereiro de 1933. O banquete foi-me oferecido no Pavilhão dos Desportos por um grupo de oficiais do exército, simpatizantes do movimento. Uns trezentos e cinquenta oficiais, todos fardados. Havia uma atmosfera especial. Falou o António Pedro (actor e artista plástico), falaram o Tinoco, o major Mário Pessoa, falei, eu, etc. O facto é que tínhamos grandes simpatias entre os militares. O major Crujeira de Carvalho, por exemplo, era chefe do secretariado militar do movimento. Estava connosco , embora não tomando a palavra no banquete para não se "queimar": ele era comandante do Regimento da Graça. Tínhamos apoios fortes no seio militar, em Caçadores 5, em Metralhadoras, etc.
- Chegou alguma vez a pensar num golpe de Estado para tomar o Poder?
- Nessa altura, não. O movimento nacional-sindicalista começava a orientar-se no sentido de querer ser nacional e não só partidário. Estabelecemos então contactos com as esquerdas - o general Ribeiro de Carvalho, por exemplo, foi contactado para efeitos da organização militar do movimento...
- O Nacional-Sindicalismo português teria alguma semelhança com o movimento de um Otto Strasser na Alemanha ou mesmo com o dos SA do capitão Roehm, liquidado por Hitler na "noite das facas longas"?
- Esses eram sobretudo cisões no interior do hitlerismo. Em Portugal não havia nada que lhes correspondesse. Nós nunca fomos cisão de quem quer que fosse e muito menos de Salazar, a quem nunca aceitámos.
- Falou então com gente de esquerda, democratas, inimigos de Salazar, com o intuito de o derrubar, não é?
- Sim queríamos uma aliança que criasse um sistema compatível com as liberdades públicas.
- Com quem falou?
- Falava por exemplo com o Joaquim Manso, do Diário de Lisboa; ele descia por vezes até à Baixa (de Lisboa) para conversar comigo, para vermos juntos como resolver os destinos... Falava com esse admirável António Sérgio...
- Pensavam francamente em derrubar o Salazar?
- Com um movimento nacional.
- O ferro-de-lança desse movimento de insurreição seria assim o seu, o Nacional-Sindicalista?
- Sim. Era além disso um partido com um programa novo, capaz de tomar o poder, que tinha apoios militares, com muita gente, mais de cinquenta mil aderentes, com força... No Porto, a seguir ao banquete do Parque Eduardo VII, houve uma réplica dessa homenagem. Aqui, os militares eram em menos número, claro. No Porto o nosso movimento era predominantemente civil, classe média e trabalhadores. O banquete foi no Palácio de Cristal, na noite de 7 de Maio de 1933. Não havia ali ricos. Estes julgavam que nós éramos...
- Bolchevistas?
- ... bolchevistas, arrepiavam-se connosco.
- Dentro da fileiras salazaristas, havia quem olhasse o seu movimento com simpatia?
- Havia, a começar pelo próprio ministro do interior de então, Albino dos Reis. Conspirou sempre connosco. Com ele combinámos tudo, até a revolução...
- Chegaram a marcar uma data para o vosso golpe de Estado?
- Marcámos uma data. Em Agosto de 1935, devíamos ir fazer uma manifestação à Batalha e , dali, marchávamos até Lisboa, até Belém, para reclamar do presidente da República, a destituição do Salazar. Ainda se revoltou a esquadra no Tejo. O movimento foi porém atraiçoado e adiado. Vários oficiais das unidades da Graça foram detidos à medida que procuravam entrar. Afonso Lopes Vieira foi quem fez o manifesto: tínhamos preparado um programa de governo que tencionávamos apresentar a Carmona, exigimos a transformação do regime, a restauração da liberdades públicas desaparecidas, etc. Tínhamos oficiais de Artilharia de Leiria e de Infantaria de Mafra, etc. Então Salazar, que soube de tudo aquilo, mandou-me prender. Foi isto em 1935. E fui posto na fronteira espanhola, juntamente com o secretário do movimento nacional-sindicalista, que era Alberto de Monsaraz.
- Quais eram, então, as forças que estavam do vosso lado? E que forças de esquerda vos apoiavam?
- Havia a esquerda que está sempre pronta. Mas havia sobretudo os democratas do anterior regime, os antigos ministros, os oficiais afastados, etc. Havia por fim um grupo de republicanos que ainda estavam no activo e que conspiravam connosco. Foram presos na mesma altura e muitos deles deportados para os Açores juntamente com os nacionais-sindicalistas. O nosso movimento foi então proibido por Salazar, que saiu de tudo isto ainda mais forte, com a sua posição mais reforçadas.
- E o grupo da Seara Nova, que fez ele em tudo isso?
- O grupo da Seara não participou muito no caso, a não ser através de Sérgio. António Sérgio era muito meu amigo e desenvolvia uma grande actividade conspiratória. Conheci-o uma vez numa reunião política e convidou-me a ir visitá-lo. Fui e tornámo-nos amigos. Mais tarde convidou-me a colaborar no jornal República. Sérgio fez esta coisa difícil: levou-me a colaborar no jornal fundado por António José de Almeida.
- Diga o nome de outros homens com os quais privou na altura.
- António Maria da Silva ainda chegou a estar com o nosso intento. Mas era muito "puro" diante de certas coisas ante as quais havia que ser flexível, transigir... Nunca chegou a perceber o que foi o 28 de Maio. Explicava-me o golpe de 1926 sem perceber que aquilo era fatal, que tinha mesmo de acontecer, que o regime estava minado e condenado à morte. Nunca o entendeu, interpretava tudo como o resultado da acção deste ou daquele, dizendo nomes, sem descer às causas profundas da crise donde resultou a derrocada da República democrática.
- E o Quirino de Jesus - antigo seareiro, aliás - conheceu-o bem?
- Muito bem. Encontrei-o várias vezes, sobretudo em casa do Sinel de Cordes. De vez em quando, mandava-me chamar. Esse sim, esse é que manobrava o Salazar. Quirino, é a minha impressão, era verdadeiramente o mentor do Salazar, o dirigente do Salazar do início. Através de uma senhora, cujo nome não me ocorre, e que era prima ou coisa assim de Quirino, Salazar frequentava a casa dele em Lisboa. Quirino ganhava muito dinheiro, tinha boas ligações com a finança, era ele mesmo um financeiro. Em suma, o homem ideal para ajudar Salazar, acabado de chegar de Coimbra, desconhecido, apagado, fechado. Salazar precisava de encontrar a realidade portuguesa, precisava de apoios - e Quirino de Jesus era a pessoa ideal para isso. Por outro lado, não inquietava Salazar, não lhe fazia sombra: ensinava-o, ajudava-o. O que Salazar não admitia é que alguém se opusesse a ele, o criticasse, lhe objectasse, contradizendo-o. Quirino era, como Salazar, uma pessoa fria, um calculista. Apesar do seu ar místico, não passava no fundo de um manobrador, dum jogador... E tinha no ânimo de Salazar um grande ascendente, tanto mais que não falava cá fora do que Salazar lhe confidenciava, sabia guardar segredos. Era, em suma, um bom sócio, o sócio ideal. A tal senhora chamava-lhes "os meus netos" ou uma expressão carinhosa assim. Como é que ela se chamava? Não me lembro, mas era sem dúvida interessante trazê-la à luz da História, pois ela teve uma grande responsabilidade em tudo o que aconteceu.
[João Medina crê tratar-se de Prudência Serras e Silva, mulher do professor de Medicina Serras e Silva, 1868-1956]
- E o Ezequiel de Campos, outro trânsfuga da Seara Nova: tinha escrito em 1923 um livro de colaboração com o Quirino, ocupou importantes funções no Salazarismo...?
- Sim, Ezequiel esperava que Salazar o deixasse realizar uma obra inovadora na lavoura, com as barragens, etc. Mas não. Salazar era isto: escolhia este ou aquele, mas depois, quando via que ele tinha um certo prestígio, retirava-o, afastava-o. A mim tentou-me também fazer o mesmo: utilizar-me e depois deitar-me fora. Mandou-me um dia chamar. Era isto depois do banquete do Parque Eduardo VII. Mandou-me pois convocar - mas eu não fui. E isso ele nunca mo perdoou. O secretário do Salazar na altura, o tenente Assis, uma homem de Bragança e que ainda está vivo, foi-me chamar ao jornal. E eu recusei, não fui ter com o Salazar. Eu sabia o que ele queria: queria dar-me uma pasta para acabar comigo, para me comprar, como comprava toda a gente. Era o sistema dele. E este homem, como eu não aceitei, decide expulsar-me de Portugal. Lembra-me que, oito dias depois de Monsaraz e eu estarmos expulsos em Espanha, exilados, chega António Ferro a Valência de Alcântara: vinha oferecer-me um lugar numa empresa que se ia formar na altura, a Sacor...
- Queria comprá-lo, calá-lo de vez...
- Pois, era assim que ele governava... Ferro era o agente dele. Foi especialmente a Espanha para me fazer a oferta de Salazar: se eu quisesse voltar a Lisboa e como tinha de educar os meus filhos - Salazar preocupava-se muito com os meus filhos, já se vê! , o melhor era eu aceitar o lugar que me era oferecido, desde que abandonasse por algum tempo a política. E eu não tinha qualquer emprego, tinha mulher e quatro filhos... Em suma, Salazar nunca me perdoou a recusa. Assim como nunca tolerava os êxitos dos outros, mesmo que fossem ministros seus, como aconteceu com Marcelo (Caetano).
- Em suma, desde a sua expulsão para Espanha, entre si e o Salazar não há nada a fazer...
- As nossas relações nunca tinham sido directas. Foi sempre através de amigos comuns que estabelecíamos contactos com ele. Pelo Monsaraz, pelo Pequito Rebelo, que tinham sido condiscípulos de Salazar. O Pequito era um homem tão frio como o Salazar. Aliás, um dia, foi ver Salazar para lhe pedir uma amnistia - ora Salazar, sempre que se falava de amnistia, era contra, sistematicamente contra -; depois de lhe falar no País, perguntou-lhe o que seria Portugal no dia em que Salazar não estivesse vivo. E Salazar, imperturbável: "Ouvi dizer que está doente. Está melhor?" O Pequito saiu porta fora, furioso. O Pequito tentou várias vezes congraçar-me com o Salazar, mas nunca deu resultado... [José Pequito Rebelo, 1893-1983]
- A partir de 1934, proibido o movimento nacional-sindicalista e fechado o jornal, Rolão Preto encontra-se definitivamente na barricada oposta à de Salazar?
- Estava do outro lado da barricada, completamente!
- E pensava mesmo em deitá-la abaixo?
- Claro, em jogo leal, em todo o minuto, em toda a hora! Mas lealmente sempre...
- E ele não: Salazar tem a política política, a censura, etc.... Continuemos: o que se passou consigo desde que posto na fronteira espanhola?
- A expulsão devia durar em princípio seis meses. Vivi com muitas dificuldades. Nesta casa da Soalheira passou-se fome... E quando fui preso, não tive oportunidade de avisar a mulher e a família: oito dias no Governo Civil e depois a fronteira espanhola. Monsaraz, como disse, foi também preso na mesma altura e mandado para Espanha.
- Foram juntos para o exílio?
- Foi o que nos valeu!... Monsaraz era uma pessoa de uma pureza, de uma lealdade absoluta. Um poeta. E bateu-se sempre, com denodo, sem quebrantos. Mais tarde voltaria para Lisboa, e ali viveu politicamente abandonado. Era rico. Em 1958, na altura da candidatura do general Humberto Delgado, procurei-o, mas já ele não interveio na luta. Não sei porquê. Estaria talvez doente. Repare que tinha perdido um rim em combate; em Monsanto, durante a revolta monárquica. A sua atitude em Monsanto foi admirável. Em certa altura do combate, Monsaraz observou os adversários e viu que este era o Povo que subia a montanha. Então o conde de Monsaraz exclamou. "É o Povo, não se bate no Povo!" E atirou com a espingarda ao chão. Poeta e nobre.
DO EXÍLIO ESPANHOL À CANDIDATURA DO GENERAL HUMBERTO DELGADO
- Conte-nos o que foi o seu exílio espanhol.
- Não durou muito: Salazar deixou-me um dia voltar. Ameaçava a guerra de Espanha...
- Conheceu em Madrid o José António Primo de Rivera, chefe da Falange?
- Era muito amigo dele. Salazar, quando fomos daqui para Valência de Alcântara, achou que estávamos muito perto de Portugal. E Salazar tinha por isso receio, de modo que resolveu fazer tudo, diplomaticamente, para nos pôr de lá para fora. A nós e às esquerdas que estavam lá: Cortesão e outros... Então eu fui a Madrid falar com os deputados que conhecíamos de nome, para lhes mostrar o que se passava e pedir-lhes que nos ajudassem...
- Deputados da Direita espanhola?...
- Deputados da Direita, como Calvo Sotelo, Maeztu, Pradera - mas não só da Direita: deputados da Esquerda também, como Azaña e Largo Caballero, mais o próprio chefe do Governo de então, o conde de Ramonones, que gentilmente nos recebeu e nos deu a certeza de podermos permanecer em Valência de Alcântara - nós e a Esquerda portuguesa, apesar da má vontade de Salazar.
- Lá conheceu José António?
- Com efeito, lá conheci José António Primo de Rivera, que nessa altura trabalhava no programa da Falange. Por sinal que me pareceu uma "coisa" bastante condescendente para com o processo capitalista. E eu que já levava de cá os meus fumos todos de revolta, uma atitude "à esquerda", social, procurei mostrar-lhe que aquilo não era o caminho e que ele não devia esquecer a posição revolucionária. Andámos um mês naquela colaboração, o mês que passei em casa dele.
- Primo de Rivera, cujo retrato inclui no seu livro sobre a guerra de Espanha com uma dedicatória do chefe da Falange, com data de 1934, e do qual se despediu, na primeira vez que esteve com ele, com a saudação romana - que tal era ele como homem, como pessoa? Todos os adversários dele o apresentam como um homem distinto, galante, de muita fineza, não é verdade?...
- Era alguém! Uma personalidade! Um hidalgo, um grande de Espanha!
- E fascista...
- Inabalável falangista! Sobre o ponto de vista Portugal-Espanha, tenho muito interesse em dizer-lhe que não se esqueça que, apesar de todas as nossas camaradagens, não houve dia que eu não tivesse que lhe dizer "não", como aliás, depois, ao generalíssimo Franco, quando se referiam aos destinos ibéricos - que segundo eles, impunham uma rectificação das posições respectivas dos nossos países.
[João Medina queria apresentar Francisco Rolão Preto e José António Primo de Rivera como fascistas. Teve aqui mais um tiro pela culatra. Rolão Preto deu-lhe como resposta uma corrigida exclamativa. Não era "Fascista", era "Inabalável falangista!". Na perspectiva de Rolão Preto, o Falangismo não podia ser confundido com o Fascismo: o Falangismo era o Nacional-Sindicalismo em Espanha - Rolão Preto colaborara com José António Primo de Rivera na elaboração do programa da Falange! - pela "conciliação de Liberdade com a Autoridade da conquista do Pão e da Justiça" (16 de Maio de 1939) (Para além da Revolução... A Revolução - Entrevistas, 1940, p. 134)]
- Conheceu Franco, em 1937, em Salamanca, em plena guerra, não foi?
- Conheci-o em Salamanca, efectivamente, em pleno combate, numa memorável tarde de bombardeamento da aviação roja. Por sinal, devo reconhecer como o general Franco se mostrou bravo na hora inquieta da metralha sobre o Palácio do Bispo que visavam. Pois nessa mesma hora em que, por toda a parte, as granadas estoiravam, Franco me ia dizendo, entre dois uísques, as suas intenções de estadista com uma tranquila coragem que nem sempre é apanágio de alguns generais nossos. Em verdade, bons são sempre os nossos soldados. Os generais, di-lo a História, nem sempre... Por vezes tivemos de os importar lá de fora... Bem, quanto ao Franco, que eu encontrei em pleno combate, com as granadas a estoirar à nossa volta - e ele, pequenino, frio - dizia-me ele que tinha pensado em fazer um jornal, o Tagus, que seria uma coisa que atravessava e abraçava toda a Península... Vi sempre nos espanhóis, em todos os aspectos, uma ansiedade: refazer a carta.
- Mas não era propriamente federalismo...?
- Não. Unificar a península, claro. Não era fácil.
- Foi então a Madrid e lá conheceu o José António. Teve outros contactos com políticos espanhóis? Com o Onésimo Redondo ou o Ledesma Ramos, por exemplo?
- Sim. O Ledesma, conheci-o. Sobretudo conheci gente que não estava ainda na Falange, que estava próximo dela mas não aceitavam José António.
- Porquê?
- Havia ali Robles, o chefe da democracia-cristã, e ele tinha toda a força política. A tentativa falangista era algo que a CEDA desprezava, até se riam disso. O falangismo era uma ideologia e eles não eram nada. Eram homens práticos.
[Medina publicou "fascista" onde aqui se lê "falangista"; Rolão Preto falava aqui dos falangistas e corrigiu Medina quando este classificou os falangistas como "fascistas". Importa repetir: na perspectiva de Rolão Preto, o Falangismo era sindicalista, antitotalitário, e não podia ser confundido com o Fascismo]
- No seu livro sobre a guerra de Espanha, Gil Robles é tratado com antipatia...
- Robles era outro Salazar! Foi ultrapassado por Franco, como Dollfus pelos nazis.
- E que mais houve no seu exílio em Espanha?
- Além da boa amizade com José António, tive contactos com dois deputados espanhóis que me fizeram a proposta de um plebiscito na Galiza, a favor da integração em Portugal. Nessa altura havia uma grande corrente a favor da união com Portugal. A manobra que me propuseram era fazer chegar a Salazar a ideia de um plebiscito. Salazar, claro, não quis: pensava sobretudo nele próprio, como sempre, não queria saber dos Galegos. Era um homem sem ilusões. E no entanto parecia ser um místico, um homem que vivia sozinho, com uma grande contemplação religiosa; e apesar disso não era nada místico: um tipo frio, extremamente realista. Quando lhe perguntavam porque é que não fazia um novo governo, que "isto está velho, está cansado", respondia sempre: "Para quê? São todos iguais..." Era a resposta dele.
- Era um céptico...
- Céptico. Os factos davam-lhe razão: quase todos os que chegavam ao pé dele queriam era dinheiro...
- Como o Fontes, que perguntava sempre: "O que é que ele quer?" Mas não teria havido homens puros ou homens à altura dele?
- Quando havia, ele afastava-os ou não lhes dava a possibilidade de realizarem uma obra. De certo modo, o Marcelo... Marcelo andou sempre aos baldões. Um dia Marcelo, que era ministro das Colónias, foi às Áfricas, arranjou lá uns batuques triunfais e voltou cheio de prestígio, conforme supunha. Fui ver nessa altura Marcelo para lhe pedir qualquer coisa - uma dessas coisas que a família nos pede por alguém que precisa de um emprego - e disse a Marcelo: "Você tenha cuidado: vem cheio de prestígio e Salazar não tolera homens com prestígio". Respondeu-me Marcelo: "Está enganado. Porque Salazar precisa de mim." E Marcelo só lá esteve três dias mais no Ministério - foi corrido!...
- Voltemos ao Quirino. Ouviu alguma vez dizer que o Salazar o teria mandado liquidar em 1935?
- Não sei, nunca ouvi falar disso. Não sei mesmo se Salazar chegou ao ponto de precisar de mandar matar Quirino. Seja como for, Quirino é o único que podia fazer revelações sobre Salazar. Porque eles viviam com uma intimidade enorme, inseparáveis, por assim dizer. (Quirino Avelino de Jesus (Funchal, 1865 - Lisboa, 1935)
- Com quem privou Salazar, além do Quirino?
- Havia outros. O Bissaia Barreto, por exemplo. Mas não tinham a altura de Quirino, não tinham a estatura dele. Os outros eram lacaios apenas, não valiam nada. E quando aparecia alguém com um certo valor, Salazar "cortava-o" logo.
- Mas voltemos à Espanha: a ideia do plebiscito na Galiza teve algum resultado?
- Lenda ou realidade, os tais deputados teriam vindo falar com o próprio Salazar. O nosso adido militar em Espanha nessa altura era o cunhado de Pequito Rebelo - era o brigadeiro Vasco de Carvalho. Este veio de propósito de Espanha para se entrevistar com Salazar. Salazar teria perguntado que forças tínhamos nós para essa anexação da Galiza. O brigadeiro respondeu: "Bastantes". Os Espanhóis queriam que entrássemos com uma força portuguesa para manter a paz, uma vez que aquilo lá, em plena guerra civil, estava cada vez pior. Um capitão espanhol tinha fugido para o Alentejo e tinha sido apanhado pelas autoridades espanholas e levado de volta para a terra dele, havia uma carência de autoridade lá... O que era preciso quanto antes fazer era ocupar a Galiza com uma divisão e realizar um plebiscito. Salazar convocou Vasco de Carvalho e perguntou o que era o plano. "Os quartéis em Espanha estão sem gente, a revolução levou quase todos. A operação é possível", respondeu-lhe o adido português. Mas Salazar não quis arriscar.
- Portanto, a guerra civil já começara?
- Já.
- E depois? Falo de si, do seu exílio em Espanha, antes da guerra civil, portanto.
- Ao fim de uns meses, como disse, voltei do exílio. Publico nessa altura, em 1936, um livro chamado Justiça! e que foi logo proibido por Salazar. O livro tinha uma dedicatória: "À memória do meu bisavô, o médico António das Neves Carneiro, deputado às Constituintes de 1836, perseguido por "jacobino", "inconfidente", "francês", "malhado" e "pedreiro livre", duas vezes encarcerado na cadeia da Relação do Porto, exilado, torturado em São Julião da Barra depois de ter transitado por dezoito enxovias da província, sem que jamais lhe abatessem o orgulho da sua intransigência. À memória de seu filho António Maria das Neves Carneiro, académico de Coimbra, enforcado em 9 de Julho de 1830 por cumplicidade no morticínio dos Lentes.
Ao seu alto sonho de liberdade e de justiça que por o seu sangue, em mim se continua e afervora na nova batalha pelo resgate da Personalidade Humana."
E juntei: sans rancune - e mandei o livro a Salazar.
- Ele não gostou...
- Nessa altura já vivíamos nas catacumbas. O movimento nacional-sindicalista estava então banido, desarticulado.
- Os homens do seu movimento passaram-se quase todos para o Salazar?
- Sim, quase todos. Valadão, Dutra Faria, etc. Tinoco portou-se bem. Valadão, no tempo em que já estava a jogar com Salazar, escrevia-me, fingindo apoiar-me, denunciando os outros que faziam o jogo com o salazarismo... um pirata! Dutra era um ambicioso, com valor - o que queria era uma posição para ganhar dinheiro, não queria mais nada. Coitado! O principal culpado foi ainda Salazar, por isto: é que, na idade em que esses rapazes estavam todos, nos vinte e tantos anos, o que queriam era casar-se, ganhar a vida. E Salazar oferecia-lhes empregos. Foi nessa altura que ele criou a organização corporativa pseudo-sindicalista. E foi então que se separou absolutamente de nós: já não podia haver qualquer acordo com ele.
- Como se portou António Pedro?
- António Pedro era um artista, uma pessoa honrada. Evoluiu para a democracia, não apoiou o Salazar.
- O Garcia Domingues?
- Era mais um intelectual, publicou uns livros sobre a presença árabe em Portugal. Depois apagou-se. Foi sempre leal enquanto houve batalha. Depois calou-se. A batalha agora era diferente: conspirava-se com todos.
- Em suma, a partir do seu regresso de Espanha, o Nacional-Sindicalismo está morto, desapareceu. Mas em 1939, ao reeditar uns artigos escritos em 1922 em defesa das ideias de Mussolini, Rolão Preto continua a bater-se pelos ideais fascistas, elogiando Hitler...
- Acha que eu fiz alguma vez o elogio de Hitler?!
[A entrevista atingiu aqui um ponto culminante: João Medina expõe a sua errónea apreciação das palavras de Rolão Preto a respeito da Mussolini e de Hitler. Perante a estupefação do entrevistado, Medina insiste com supostas "provas". No corpo do livro Salazar e os Fascistas, Medina ignora por completo as sucessivas demarcações e rejeições dos estatismos totalitários por Rolão Preto, culminando no livro Justiça! (1936), em que Mussolini é um dos totalitários visados (Capítulo XI - Política da Personalidade, p. 87). No corpo do livro Salazar e os Fascistas, na página 51, Medina vai porém mais longe, mentindo sem rebuço acerca do que Rolão Preto escreveu em Para além da Guerra (1942) - A Verdade e a Mentira - A literatura capciosa acerca do Integralismo Lusitano].
- Leiamos ipsis verbis o que escreveu em 1939: Mussolini "deu uma alma nova à Itália" e "Hitler reforjou para o III Reich a espada de Siegfried". São palavras suas... O facto é que Mussolini é ali apreciado com estima.
- Isso não são elogios - constata-se a sua acção. Isso foi antes da guerra da Abissínia! A partir daí já não tenho nada a ver com o Mussolini!
[Em entrevista a José Plácido Machado Barbosa (Para além da Revolução... A Revolução - Entrevistas, 1940) Rolão Preto refere-se aos "erros que atiraram a Itália para um plano contrário à política inglesa"; esses erros foram os que conduziram à Segunda Guerra Italo-Etíope (1935-36), com a Itália fascista a invadir a Abissínia. Em Janeiro de 1933, Rolão Preto tinha feito uma demarcação política dos totalitarismos fascista e hitleriano. Depois de 1935, com o fascismo italiano a entrar na via imperialista que o levará à aliança com a Alemanha nazi, a demarcação de Rolão Preto foi, além de política, também geopolítica: "a partir da guerra da Abissínia já não tenho nada a ver com o Mussolini!"]
- Em 1945, no seu livro A Traição Burguesa, Rolão Preto faz algumas críticas ao falecido Duce mas continua a falar dele com estima, com uma espécie de nostalgia, evocando o seu "sonho absurdo mas lindo". Mas deixemos isto, e voltemos antes ao seu regresso do exílio forçado em Espanha.
- Bem, regressando a Portugal em fins de 1934, depois do meu exílio, reconheço que não havia outra maneira de combater Salazar a não ser pela via revolucionária, o que não era compatível com um partido e tinha de ser nacional para interessar a toda a gente. Aliei-me então a outros, aos democratas que sempre tinham combatido o salazarismo. Com Ribeiro de Carvalho, por exemplo. Estabeleci ligação com o MUD, mas sobretudo através dos mais novos como o Tinoco e o António Pedro, que trabalhavam junto dos democráticos e tinham criado uma organização. Essa organização, porque denunciada por alguns elementos da PIDE que se tinham infiltrado, falhou. Ela devia fazer a revolução a começar na Graça. A revolta da Marinha ainda se realizou: ela devia marchar sobre Cascais, prender Carmona e força-lo a destituir Salazar, fazendo então um governo nacional com esquerdas e direitas. Barbosa de Magalhães fazia parte do comité revolucionário da altura - ele e um almirante cujo nome me escapa agora.
- E o Quintão Meireles?
- O almirante nunca conspirou, pelo menos connosco. Meireles, conheci-o como candidato, mais tarde, em 1951: trabalhei então com ele, fiz uns discursos durante a campanha eleitoral, em Lisboa. Foi a minha primeira manifestação pública de ataque ao salazarismo, não falando na minha colaboração no jornal República.
- Mais tarde viria a militar também na candidatura oposicionista do general Humberto Delgado, não é verdade?
- Delgado, como patriota, era completo. Como homem de ordem era perfeito. Mas era a meu ver bastante sincero para não ser um pouco ingénuo. Talvez precisasse de ter mais serenidade para poder conduzir uma revolução. Fora isso, era um bom português e socialmente muito avançado, tão avançado e revolucionário como os mais revolucionários que nós cá tínhamos: tenho cartas dele mostrando-o. Tinha porém esta grandeza de ânimo: consentia que eu, quando foi a candidatura dele, lhe rectificasse certos discursos, lhes retirasse os aspectos mais violentos e mais corrosivos que o prejudicavam, sobretudo pelo ódio a determinadas figuras do regime.
- Tinha contactos com ele antes da candidatura de 1958?
- Sim. O Delgado escrevia-me de longe, do estrangeiro e julgo que tive alguma acção na sua ideia de se paresentar como candidato às eleições de 1958. Ele estava em Londres quando me escreveu as primeiras cartas. O general ainda não acreditava que fosse possível fazer qualquer coisa. Eram apenas cartas pessimistas. Mas depois, pouco a pouco, Delgado vai confessando que era preciso encetar uma acção revolucionária capaz de modificar isto.
- Qual foi a origem dessa correspondência?
- Foi um artigo meu no jornal República (onde colaborei muito tempo e gratuitamente). Delgado escreve-me concordando com o que eu dizia no artigo - e daí nasceu o contacto entre nós. Estabeleceu-se, aliás, um entendimento perfeito entre nós.
- Gostou dele, quando o conheceu pessoalmente?
- Gostei, vi que era uma pessoa leal, valente. Tinha qualidades excepcionais para ser o homem necessário naquele momento. E que era além disso um general novo - o que, na verdade, interessava imenso para chefiar uma revolução contra o salazarismo. Delgado, dava-me toda a confiança e considerava-me necessário para um futuro Ministério, etc.
- Dos seus antigos camaradas nacionais-sindicalistas, quais os que vieram a encontrar a seu lado quando milito pelo general, em 1958?
- Muitos...
- Falemos do capitão Vilhena...
- Esse era das esquerdas. Tivemos, aliás, os melhores contactos mas nunca ca tinha sido do meu movimento, claro. Era um dos tais republicanos que nunca desarmaram... Monsaraz, esse estava então afastado, doente, creio. Onde eu estava, estava Monsaraz!
- E os monárquicos, em geral, como se comportavam em 1958?
- Sempre hostilizaram Humberto Delgado! Só os da "extrema-esquerda" monárquica, chamemos-lhe assim, aderiram à candidatura de Delgado. O resto estava com Salazar, consideravam o general um louco. Além disso certos monárquicos ocupavam boas posições económicas...
[Rolão Preto identifica-se aqui como pertencendo à "extrema-esquerda" monárquica, mas acrescentando "chamemos-lhe assim". Não cheguei a conhecer Rolão Preto, mas em entrevistas e encontros com integralistas mais jovens - conheci Mário Saraiva, Henrique Barrilaro Ruas e Teresa Martins de Carvalho - notei que não adoptavam os conceitos de "esquerdas" e "direitas". Não se reconheciam nas categorias da partidocracia. Afirmavam-se municipalistas e sindicalistas, recusando o mundo conceptual e ideológico das oligarquias e clientelas partidárias. Forçados a escolher um "lugar" ou "posição" nos espectros político-ideológicos, consideravam-se "ao centro", na equidistância, ou, como diria Rolão Preto - "Nem contra as esquerdas, nem contra as direitas. Em frente!" (Para além da Revolução... , Porto, 1940, p. 60). Dada a natural incompreensão dos conservadores da partidocracia - João Medina, aqui entre eles - Rolão Preto identificava-se na "extrema-esquerda", como aliás António Sérgio que lhe foi próximo, do grupo da Seara Nova. Nas "Direitas" é que não. Rolão Preto considerava-se no campo anti-conservador, dentro da linha da renovação política e doutrinária introduzida pelo Integralismo Lusitano.]
- E que pensa da filha do rei D. Carlos I de Bragança, D. Maria Pia de Saxe-Coburgo?
- Com essa senhora sucedeu em 1958 uma coisa curiosa: eu ia pela avenida da Liberdade a caminho da sede do general, perto do teatro, lembra-se?, quando um chofer fardado se abeirou de mim e me disse que uma senhora me queria falar. Era D. Maria Pia de Bragança, a filha bastarda de D. Carlos. Estava num "espada". Ela disse-me: Sou a filha de D. Carlos. E levou-me no carro dela para conversarmos à vontade. A filha do rei estava do lado de Humberto Delgado e falámos do que se podia fazer pelo triunfo da causa do general. Assim se passou uma parte davtarde. E quando voltei a casa, soube que eu tinha ordem de prisão, que a PIDE andava à minha procura para me prender. Meti-me logo num carro e vim para aqui, para a Soalheira, onde me ocultei durante dois meses. Em suma, a senhora livrou-me de ser apanhado pela PIDE!
- Como pretendente ao "trono português", acha-a legítima ou não?
- Bem, eu tenho para aí o documento do baptizado dela... Mas prefiro sinceramente não dizer nada sobre o caso. O que posso dizer é que é uma pessoa interessante.
- Falemos então da candidatura de Delgado.
- Escondi-me nessa altura na Beira Baixa. Um "pide", que agora está preso, confessou que esteve quize dias à minha espreita, aqui na Soalheira ( e Rolão Preto ri-se, fazendo um gesto em direcção à janela, da qual se vê parte da Quinta da Serra, onde fica a sua casa)... Mas a verdade é que me livrei então de ser preso...
- Passou-se 58 e o Rolão Preto não foi preso...
- Esperei um mês ainda. E depois tudo esquece não é?... E continuei a minha vida...
- E a partir daí, até hoje, o que se passou de mais importante na sua vida política e pessoal? Houve o Marcelo, depois o 25 de Abril e a queda do fascismo salazarista, depois o PPM...
- Veio o Marcelo. Ele veio uma vez aqui, a Castelo Branco, e eu fui dizer-lhe que tomasse cuidado, que fizesse uma obra nova...
- Em que sentido exactamente: a descolonização, por exemplo?
- Fiz-lhe uma carta que publiquei em 1972 - Carta Aberta ao Doutor Marcelo Caetano.
- O que é que se diz nessa carta aberta ao Marcelo?
- Bem, digo-lhe que faça a monarquia...
- Bom, digamos que isso é uma "mania" sua... Em relação à guerra colonial, por exemplo, propõe ao Marcelo que lhe ponha fim?
- Marcelo era monárquico, integralista. Mas depois "estragou-se" com o Salazar.
- Em relação à guerra colonial, lembro-me agora que o Pequito Rebelo, num sobressalto ultranacionalista, foi a Angola em 1961 combater o "terrorismo" - a enciclopédia Verbo diz mesmo dele estas palavras que leio: "Na sublevação terrorista de Angola prestou assinalados serviços à causa nacional como aviador". Pessoalmente, que lhe parece, Rolão Preto, esta atitude de Pequito?
- Bem, eu, de Pequito, só quero dizer que tenho por ele a maior estima.
[Mantivemos as aspas em "terrorismo" e a falta delas em "ultranacionalista" da publicação original. Segundo Medina, atendendo às aspas, não teria havido terrorismo em 1961 e, nas suas palavras a propósito da revista Homens Livres - Livres da Finança & dos Partidos (1923), José Pequito Rebelo, 1893-1983 seria, além de um "ultra", um “intratável integralista, verdadeiro mineral de dogmatismo”. Quando Medina publicou essas palavras, Pequito Rebelo estava ainda vivo. No testemunho de Teresa Martins de Carvalho, sua sobrinha, Pequito Rebelo “ria-se muito. Já tinha ultrapassado os noventa anos e, portanto, era difícil ofendê-lo. Tirava daí apenas algo de divertido e curioso. – Sabes – disse ele para a sua sobrinha – já não pertenço à História. Pertenço à Geografia!”]
- Está bem. Diga-me então o seguinte: em relação ao problema colonial, a sua posição não era decerto a de continuar a guerra, pois não?
- Era a de resolver politicamente o problema. Não continuar portanto a guerra.
- Nunca ninguém arrancou, pois, de si uma benção para a guerra colonial?
- Pois não.
- Nos últimos anos do regime do Marcelo, continuou desiludido com o regime? Desiludiu-se do "integralista" Marcelo?
- Avisei Marcelo em Castelo Branco de que devia fazer uma obra completamente diferente daquela que ele estava a fazer.
- Deu-lhe algumas sugestões?
- O Marcelo respondeu-me que eu exagerava o perigo. Não chegou a perceber o seu tempo. Já António Maria da Silva, como disse, não percebera o seu tempo, não compreendera o que lhe tinha sucedido... Num dia em que o encontrei em Lisboa, ele disse-me que o que se passara no 28 de Maio era mais simples do que eu julgava: era o capitão tal e o tenente tal que tinham feito isto e aquilo, etc. E estava convencido de que a História era feita por aqueles três ou quatro oficiais que tinham levado a cabo o putsch, quando o que interessava era ver que o movimento tinha mesmo que ter acontecido, que era uma fatalidade, o que António Maria da Silva não chegou a perceber nem a combater. Marcelo foi a mesma coisa: estava convencido de que era de pedra e cal e que não seria preciso fazer uma revolução. E que a "coisa" ia com aquelas conversas agradáveis que ia fazendo às multidões, as "conversas em família" pela televisão...
- Nunca falou com Marcelo sobre o problema colonial?
- Era um dos aspectos do problema...
- Não seria o problema essencial?
- Não tive tempo de falar nisso com ele. E não voltei a estar com ele.
- Como acolheu o 25 de Abril?
- Como um revolucionário que está à espera da Revolução há quarenta e cinco anos! (desde 1929) Com alívio. Mas não podia calcular nada sobre o que vinha a seguir, desse raio que então saía da nuvem...
- Mas a simples queda do regime salazarista no 25 de Abril...
- Essa, via-a com prazer...
- Com muito prazer?
- Com o suficiente de prazer! (ri-se)
- E com alguma apreensão?
- É preciso definir o meu sentimento em relação ao 25 de Abril? Bem, então, direi: com toda a apreensão perante uma revolução feita por pessoas que eu não conhecia e embora tendo por elas a maior consideração. Eu sempre disse que a esperança era militar...
- Teve sempre essa intuição - a de que a salvação viria do Exército? Ao aderir à candidatura do Delgado, era já essa a sua ideia - a de que só por via das armas se podia derrubar o regime de Salazar?
- Sim. Num julgamento militar do capitão Vilhena fui testemunha, era aliás amigo dele. Perante o espanto geral, em pleno tribunal, eu disse esta coisa imensa: "A esperança portuguesa é militar, é sempre militar". Mais tarde, quando vi a Revolução do 25 de Abril, tive pois uma grande esperança.
- E alguma inquietação?
- Inquietação?... Pouca. Porque eu cuidava que se havia de ver na tropa a solução histórica para isto. Contanto que a tropa assumisse os deveres da sua missão.
- Se tivesse que definir o regime defunto, o salazarismo - como o faria?
- O salazarismo? Era o salazarismo. Era só o Salazar, o homem Salazar, o tirano Salazar. A tirania pessoal de Salazar. Tanto que nem nas qualidades nem nos defeitos ele era português. Era um homem calmo, o homem das contas - e nunca foi o homem alegre, capaz de ser humano. Não foi homem que gostasse de mulheres...
Quando se lhe apresentava um projecto de amnistia, era sempre contra: nunca Salazar quis uma amnistia!
[Nesta entrevista, Rolão Preto salientou a tirania de Salazar. Noutros textos e contextos, em Justiça! (1936), por exemplo, referiu-se ao "estatismo totalitário" da fase de instalação do regime. De notar que Hipólito Raposo chamou a atenção para o caracter oligárquico do regime - para a "Salazarquia" - enquanto Pequito Rebelo, em carta a Manuel Braga da Cruz, caracterizou ideologicamente o regime de forma mais específica, como "uma democracia cristã maçonizada"]
- Como o considera: como um homem profundamente diabólico?
- Não, não digo isso. Mas era um homem que sacrificava tudo ao seu interesse pessoal, à defesa dos seus interesses próprios. Era mau, sim. Não era português. O português perdoa - Salazar não perdoava nunca.
- O Rolão Preto, como católico que creio que é...
- Católico?... Enfim...sou!
- Bom, digamos que para um cristão, o Salazar pode ser visto como um homem tocado pelo Mal?
- Ele atraiçoou a própria crença. A característica de Salazar. Tanto nas qualidades nem nos defeitos nada. O pior inimigo do futuro português foi aquele homem.
- Ao desbatizar a antiga "Ponte Salazar" e ao rebatizá-la como "Ponte 25 de Abril", o ministro da Justiça da altura disse a dado passo do seu discurso que Salazar era o "nome mais odiado da História de Portugal". Está de acordo com esta observação?
- Não sei se foi o mais odiado - o que eu penso é que de facto, por vezes, merecia sê-lo.Mesmo os maus dirigentes portugueses do passado, reis ou ministros, lá tinham todos, apesar de tudo, qualquer coisa de humano, eram no fundo humanos... Eu vi, por exemplo, em Madrid o ditador Miguel Primo de Rivera, o pai de José António: saía cá de baixo das Puertas del Sol, metia pela grande avenida, à hora em qua saiam dos ateliers as raparigas, e sem escolta, apesar de os polícias o seguirem cheios de medo de um atentado. E para quê? Para ver as raparigas. Sozinho, com a sua bengala, sabendo que era odiado por todos os lados... Salazar não era capaz de fazer isso por uma mulher... por ninguém.
- Voltemos ainda a Mussolini, que exerceu sobre si um grande fascínio. Depois da guerra, voltou alguma vez à Itália?
- Não.
- E a Alemanha nazi, visitou-a alguma vez?
- Nunca. Para não tomar compromissos. Porque eu tinha medo que eles não respeitassem amanhã os interesses portugueses. E tanto assim que, logo no começo do movimento nacional-sindicalista, eu promovi uma manifestação à Embaixada inglesa quando os alemães fizeram declarações sobre as nossas colónias. (*) A manifestação foi até Belém, pedindo que se protestasse oficialmente contra as declarações alemãs. Não me sentia próximo do regime nazi. Seduzia-me apenas a Ordem. Tínhamos perdido a mística da Liberdade - e queríamos a Ordem.
[(*) João Medina introduziu aqui uma nota de rodapé onde escreveu: "é inexacta esta afirmação de Rolão Preto". No artigo "Mortos de África, de pé!" (Revolução, nº 315, 26 de Março de 1933), Rolão Preto pediu a referida manifestação. Segundo vária imprensa estrangeira, francesa e britânica, havia um acordo entre Itália e a Alemanha, e Mussolini teria então procurado envolver a Grã-Bretanha nesse acordo. A referida manifestação não foi autorizada (Revolução, nº 316, 27-03-1933). O Diário de Lisboa, de 26 de Março de 1933, confirma que o secretariado geral do NS convocou mesmo a referida manifestação de protesto junto da Embaixada Britânica em Lisboa. No dia 27, o mesmo jornal informa, na primeira página, que o governo proibiu a manifestação.]
- E a Action française - contactou com os membros dela?
- Claro, com Maurras, quando eu estava exilado lá fora. (E Rolão Preto vai à estante atrás de si, procura nela um fascículo da edição original das Farpas e tira de lá uma velha carta desdobrada em quatro, com a data de 1922: é uma carta que lhe enviou Maurras a agradecer a oferta dum livro). Eu estava em Lovaina e ia muitas vezes a Paris antes da primeira guerra. Visitava a Action française, na Rue de Rome, onde conheci Charles Maurras, Bainville, Pujo, Léon Daudet... Passava noites com eles. Até escrevia coisas... Maurras era uma pessoa extraordinária, um lógico, sobretudo como intérprete, pondo os problemas com uma clareza absoluta. Mas era um homem que também não era humano... O melhor, como convívio, era o filho do Alphonse Daudet, Léon Daudet. Mas nessa altura, Léon Daudet estragou-se, só via espiões em toda a parte; isso tornou-o antipático. Aconteceu-me algumas vezes ir jantar com ele a um restaurante ali perto do jornal e ele era cheio de expressões, de uma linguagem plena de termos novos. Comia muito, com satisfação, falava de tudo, do pai, dos vinhos franceses que ele conhecia como poucos. Era uma pessoa que cativava pelo humanismo pessoal... Maurras era diferente: um sujeito que estava sempre a olhar com atenção, a querer compreender-nos. E muito surdo, já então.
- Teve outros contactos com a Action française?
- Recebia o jornal deles. Aqui foi proibido, quando o Papa o condenou. Mas continuava a contactar com eles, a escrever-lhes. Quando havia um problema mais delicado de política monárquica, escrevia-lhes.
- Considera-se um discípulo de Maurras?
- Os integralistas, sim, eram discípulos de Maurras. Os nacionais-sindicalistas não: estávamos desligados da Action française. Completamente diferente, a nossa posição: para nós, já não se punha o problema político. O problema social era o que nos interessava. George Valois, sim, esse interessava-nos - mas Valois desligara-se de Maurras, era um dissidente da Action française. Maurras, sobretudo o Maurras dos tempos da Ocupação nazista da França, já não era o nosso Maurras, mas sim o homem da Colaboração. E parece impossível que sendo ele o homem que disse que o ser inteligente seria estúpido se fosse pessimista, ele, no dia em que passou a ser pessimista e colaborou, foi nessa altura que se perdeu, que foi estúpido!
[De entre os fundadores do Integralismo Lusitano, a par de Pequito Rebelo, Rolão Preto poderá ter sido um dos que maior influência recebeu inicialmente da Action française de Charles Maurras. Em 1914, na sequência da eclosão da Grande Guerra, Rolão Preto mudou-se da Bélgica para a França onde veio a concluir os seus estudos de Direito e a contactar pessoalmente em Paris com os líderes daquele movimento neo-monárquico francês. Se a resposta de Rolão Preto foi exactamente a que aqui se reproduziu, revela a imprecisão de quem só voltou a Portugal em 1917, não acompanhando de perto o lançamento da revista Nação Portuguesa, e o que então, na correspondência trocada, se discutiu entre os fundadores do Integralismo Lusitano. No livro Filhos de Ramires, mostrei Luís de Almeida Braga, António Sardinha e Hipólito Raposo reagindo, desde o início, à "farmacopeia gaulesa", como lhe veio a chamar António Sardinha (ver Filhos de Ramires, Lisboa, Nova Ática, 2004, pp. 130-135; pp. 267-269). Alfredo Pimenta publicou artigos na primeira série da revista Nação Portuguesa, mas nunca pertenceu ao Integralismo Lusitano e veio mais tarde a criar a Acção Realista, revelando um maior apreço pela Action française. Entre os fundadores do Integralismo, porém, firmaram-se desde o início dois eixos de combate ideológico em torno dos quais havia que batalhar: o veio nacional a recuperar e o combate aos exotismos - a Action française era visto como um exotismo (Hipólito Raposo - Dois nacionalismos. L'Action française e o Integralismo Lusitano). Acerca das reacções iniciais dos integralistas à Action française, ver Filhos de Ramires - As origens do Integralismo Lusitano, em pdf - pp. 50-56 (sobre a Action française); pp. 110- 118 (Pequito Rebelo e as prospecções iniciais); pp. 124 ss (sobre "Os Meus Cadernos" de Mariotte); p. 211 e seguintes (síntese sobre Rolão Preto, os Integralistas e a Action française). Nos anos 30, os nacionais-sindicalistas não colocavam a questão da restauração da monarquia e estavam, na verdade, "desligados da Action française."]
- Hoje, como considera Maurras?
- Como um tratadista, um homem que cria fórmulas, mas não encontrou a verdade. Um homem antiquado, portanto. Lê-se como se lê Joseph de Maistre, não será? Como uma curiosidade.
- Não era um revolucionário, é isso o que quer dizer?
- Nunca foi.
- Era afinal um contra-revolucionário - será isso o que o separa dele?
- Pois. Considero-me um revolucionário.
- Nunca pensou que o fascismo era a contra-revolução?
- Nunca pensei porque ele não apareceu com esse significado. Só depois se viu que ele podia de certo modo contribuir para a contra-revolução.
[Benito Mussolini saiu do Partido Socialista Italiano pela porta da "esquerda nacionalista" - a favor da participação da Itália na guerra contra os Impérios Centrais (o PSI era pela neutralidade) com um programa de matriz "socialista", e mesmo com alguns laivos sindicalistas. "Só depois se viu..." que, ao atingir o poder, veio à tona o jacobinismo das suas origens ideológicas, procurando realizar um programa político imperial em regime de partido único; num estatismo totalitário (1932 - Benito Mussolini - Fascismo). Para Rolão Preto, esse "totalitarismo divinizador do estado, cesarista" do fascismo estava do lado da contra-revolução.
De notar que, para Rolão Preto, a "contra-revolução" era tudo o que travasse ou impedisse o exercício das liberdades cívicas e a livre representação sindical e comunitária no Estado. A Revolução significava superar os regimes políticos demo-liberais, centralistas, por natureza oligárquicos e, estruturalmente, regimes de corrupção - ver Justiça!, 1936, página 93); a Revolução a realizar teria de ser descentralizadora, assente numa representação municipal e sindicalista, nos antípodas do estatismo do fascismo ou do comunismo.]
- E o Sorel, que tanto cita nos seus livros - ainda o lê hoje, ainda o acha "actual"?
- Sorel é para mim o grande mestre. Foi ele que fez talvez tudo. Quando ele morreu, ao mesmo tempo a Rússia bolchevique e a Itália fascista pediram cada uma para lhe deixarem fazer a sepultura. Será ainda actual, Sorel? Creio que estamos também para além dele... [Georges Eugène Sorel, 1847-1922]
- E Nietzsche, interessou-o?
- Era mais um intelectual. Socialmente, não me interessava Nietzsche.
- Quais eram os seus autores preferidos?
- Marx. Proudhon. Não escolhíamos entre um e outro, pois respeitávamos tanto um como outro. Não queríamos que Proudhon fosse posto de parte. E esperávamos que o marxismo fosse uma saída. Maurras era um mestre: mas Maurras não queria amizade nem simpatia, mas admiração. E, ao mesmo tempo, era duro, cansava... Até como pessoa. [ler Francisco Rolão Preto - A política Social da Monarquia Orgânica]
- Outros mestres, portugueses?
- Toda a gente do século XIX, claro. A geração de 70. Oliveira Martins, por exemplo. Era talvez nosso precursor: um cesarista... E Ramalho, que interessou tanto Rodrigues Cavalheiro - a propósito, Rodrigues Cavalheiro era um integralista, veio um tempo para o nosso movimento e depois desapareceu numa coisa qualquer salazarista... [ler O Integralismo Lusitano e a herança dos "Vencidos da Vida")
- E chegamos agora ao PPM, o Partido Popular Monárquico - acha-o um partido revolucionário? Porque regressou à monarquia?
- Eu aceito o partido monárquico, mas não quer isso dizer que esteja de acordo com tudo o que as circunstâncias impliquem. Entendo que se não deve pôr o problema político nesta altura, em que o País está tão agitado.
- Considera-se ainda um revolucionário?
- O PPM é um partido revolucionário: só da revolução podem sair as soluções necessárias. O problema monárquico pode vir a ter uma oportunidade histórica, que não podemos adivinhar agora qual será. Tudo é possível em política: quem é que podia supor que ia acontecer o 25 de Abril?...
- Hoje, isto é, em Junho de 1975, o que pensa de Mussolini e dos ditadores do passado?
- Os países deles estavam tão mal que os ditadores, foram de certa maneira os produtos espontâneos dessa situação e portanto tiveram o sentido criador e ordeiro que talvez fosse útil. Tal e qual como no caso do Estaline, que usou de processos e sistemas que hoje nos repugnam e que talvez fossem desculpáveis para o seu tempo, para o seu comunismo. Esses homens tiveram sua função social, criadora, convergente e realizadora. Não quer dizer que hoje me interessassem como chefes ou orientadores duma coisa nossa que é preciso fazer.
- Uma última pergunta: se tivesse que dar um conselho à juventude e resumir numa sentença os seus quase 50 anos de vida política a que assistiu e na qual participou - que diria?
- Em duas palavras? Pois diria: para além da revolução, a revolução.
Soalheira, 27 de Junho de 1975
ADENDA
- Que contactos teve com António Sardinha?
- Membros da mesma Junta Central do Integralismo Lusitano [Rolão Preto foi cooptado para a JCIL em 1922], naturalmente muitos foram os nossos contactos. Muitas vezes também acudi aos seus chamamentos para conversar com ele em Elvas, na sua Quinta do Bispo. Aí, passeando pelos velhos caminhos ao longo das catedrais de buxo onde corriam ainda os ecos satíricos do Hyssope e as sombras relembravam presenças das gerações eclesiásticas que ali se moveram, ali, quantos problemas foram debatidos! Poemas ou estudos políticos... de tudo. António Sardinha, que em Coimbra tinha sido ainda republicano com Ramada Curto, Trindade Coelho filho, Campos Lima, Bissaia Barreto, entre outros, viera para a Monarquia só depois que em Chaves meditara sobre as sepulturas dos monárquicos caídos em combate. Assim ele apelara para a História - a História que ele procurava libertar de quantos erros lhe tinham alterado o sentido - para justificar a necessidade das instituições monárquicas. Sardinha gostava menos da França e de Maurras do que de Espanha e dos seus valores. Ele foi o homem da Aliança Peninsular. Tenho de Sardinha muitas cartas que ajudam a entendê-lo. Duma delas copio aqui estes extratos que dizem um tanto o espírito do escritor, pouco antes da sua morte súbita:
"O erro fundamental do Integralismo foi o de ter ido cedo demais para a acção política."
"O que eu lhe digo em todo o caso é que nós não somos apenas monárquicos. Há na nossa doutrina como elemento predominante um mundo de sugestões sociais que nos manda ir para a frente. Lembra-se do episódio dos Evangelhos? O Senhor vinha para salvar Israel mas os gentios eram quem O escutavam. Ora desde que os monárquicos não nos ouvem, para quê continuarmos agarrados a cadáveres vivos?" (A. Sardinha)
[Na publicação de Medina, surge "Aliança Ibérica" onde aqui se lê "Aliança Peninsular". É duvidosa a alteração do título de uma das mais importantes obras de António Sardinha - Aliança Peninsular (1924) - por parte de Rolão Preto. A expressão "Aliança Ibérica" remete para os projectos republicanos de Federação Ibérica, de que os Integralistas eram adversários. Na perspectiva de Sardinha deveria haver uma Aliança Peninsular entre Portugal e Espanha, mas... na condição de ambos os países terem as Instituições Reais na chefia do Estado. Enquanto Portugal e Espanha tivessem chefaturas electivas do Estado, qualquer aproximação à Espanha era considerada perigosa para Portugal - "Enquanto estivermos em república e, pior ainda, se, quando restaurada a monarquia espanhola só nós estivermos em república, quaisquer ligações ou compromissos políticos, feitos embora dissimuladamente, esbatendo fronteiras sob o aspecto de fraternidades regionais ou a pretextos de intercâmbios festivos, de empresas de interesses comuns, etc., etc., temia-os também, com toda a clarividência, António Sardinha."(1972 - Mário Saraiva - Aliança Peninsular - Uma advertência)]
- Qual foi a sua posição perante Sidónio Pais?
- Um dos males da República de 1910 foi o de ter nascido sob o signo do Poder de um só partido, o Partido Republicano Português. Este partido conseguiu montar uma poderosa máquina eleitoral que lhe assegurasse a posse do Poder até ao 28 de Maio de 1926, tornando-se assim, pela sua forte maioria parlamentar, num partido único contra o qual se coligaram por diversas vezes os outros partidos na intenção de o derrubarem por todos os meios, inclusive o golpe militar. Sidónio Pais e o 5 de Dezembro de 1917 foi assim uma dessas tentativas resultantes da deformação do sistema constitucional. Ajudara-o a tomar o poder a hostilidade dos que não concordavam com os compromissos da nossa intervenção na guerra. Sidónio não viu ou não quis ver o valimento desses compromissos. Nisso teve a nossa discordância total. Sempre pensámos entrar na guerra para garantia das nossas terras ultramarinas. Tentou ainda Sidónio Pais construir uma República Nova e para isso serviu-se um tanto dos integralistas e do seu sentido social renovador. Pouco durou porém esse pensamento de resgate que faria a convergência nacional necessária. Não tardaram os erros que o orgulho e a imprevidência do "Paladino" fizeram cometer e levaram tudo à derrocada. Tanto as qualidades dos que empreendem governar, por melhores que sejam, se revelam inúteis, se faltar a experiência política dos empreendedores. A experiência política também é uma técnica.
- Porque nunca fala dos Viriatos no seu livro sobre a guerra de Espanha?
- À data da minha viagem por terras de Espanha em guerra civil, os Viriatos estavam apenas começando a chegar a Salamanca. Vinham dispersos em pequenos grupos como contrabandistas, com o dinheiro nos canos das botas e disfarçados de ... "observadores". Entre eles vinham oficiais dos mais ilustres que se distinguiram mais tarde com valentia pessoal. O Governo português porém não acreditava muito na vitória de Franco, e, por isso, jogava comprometendo-se o menos possível até ao fim. Lembro-me que essas "manhas" deram o resultado de haver já um grupo de bons oficiais portugueses em Salamanca sem conseguir ser recebido por Franco. Essa situação degradante explicava-se dizendo que os oficiais portugueses eram ou mações ou pertenciam à espionagem inglesa, ao Intelligence Service. Foi preciso que levassem alguns a Serrano Suñer (cunhado de Franco) para que fossem respeitados.
[João Medina, "Entrevista com Rolão Preto" in Salazar e os Fascistas - Salazarismo e Nacional-Sindicalismo - a história dum conflito, 1932-1935, Lisboa, Bertrand, 1978, pp. 155-191 (de 249 páginas).]
Edição, comentários e destaques de José Manuel Quintas, 27 de Junho de 2024
ENTREVISTA:
ROLÃO PRETO RECUSA IDENTIFICAR O NACIONAL-SINDICALISMO COM O FASCISMO. ROLÃO PRETO E OLIVEIRA SALAZAR.
- João Medina - O que foi o movimento nacional-sindicalista? Terá sido o primeiro movimento fascista em Portugal?
- Francisco Rolão Preto. "Fascista", não... Pré-fascista. O movimento nacional-sindicalista correspondia de certo modo à ansiedade do social que havia na geração nova. Havia o jornal criado em Lisboa por gente nova que dizia essa ansiedade, e que eu traduzi criando uma organização. Essa organização não era particularmente isto ou aquilo - isto ou aquilo "fascista" -, porque o fascismo nessa altura não tinha ainda a influencia que veio a ter com a Itália fascista e a Alemanha triunfante. De resto, o problema punha-se assim: nem o fascismo tinha o mau nome que hoje tem, nem a democracia tinha o bom nome que hoje apresenta. Não havia, pois, o fascismo entre nós.
- Não havia quem em Portugal se reclamasse aberta, confessadamente, do fascismo italiano?
- Não. O fascismo não tinha eco nenhum em Portugal. Em Portugal havia esta ansiedade: uma ordem, porque o regime anterior tinha criado a desordem. Esse regime tinha-se mostrado incompatível com qualquer realização verdadeiramente prática porque os governos se sucediam, caíam em oito dias... Por qualquer pressão sem importância, deitava-se um Ministério abaixo. Não havia portanto esperança nenhuma de realizar um programa democrático - ou fosse lá o que fosse. De maneira que, quando os estudantes integralistas começaram a fazer o jornal A Revolução, era com a intenção dum certo autoritarismo, a de criar uma força, uma base. Era o que o País precisava naquela altura - mas não o fascismo. Porque o fascismo naquela altura não representava nada. Representava uma tentativa italiana que em Portugal não se percebia bem qual seria a tendência.
- Mas porque é que as pessoas não aderiram pura e simplesmente ao salazarismo - o Salazar já era uma força em 1932...?
- Isso faz parte das razões que criaram o salazarismo. Salazar chegou a Lisboa na altura em que os partidos estavam completamente "partidos"... Não havia de facto nenhuma organização capaz de realmente resolver os problemas urgentes: a começar pelo problema económico. Todos esses problemas eram de longe ultrapassados pelas dificuldades existentes. E o Salazar chega a Lisboa com um programa financeiro. Tanto o seu discurso da Sala do Risco, como todas as suas tentativas de fazer uma política representam sobretudo a ambição, um triunfo pessoal. Salazar, acima de tudo era um orgulhoso. Uma vez procurado da nossa parte por Alberto de Monsaraz (1889-1959) - através de Alberto mantínhamos contactos políticos, isto à volta de 1932, talvez (note-se que Monsaraz era a pessoa indicada para ir falar com ele porque tinham sido companheiros em Coimbra, eram amigos, tratavam-se por tu) - Salazar disse-lhe: "Eu não queria ser um ditador. O que eu queria sobretudo, se o destino me fosse propício, era ser o primeiro-ministro de um rei absoluto". Salazar tinha vindo nessa altura de Coimbra com Manuel Rodrigues e Mendes dos Remédios: chamavam-lhes "a tuna académica". Monsaraz fez um relatório que nos leu, à noite. Outro aspecto em que o Salazar define a sua maneira de ser, diabólica: "Se vocês", disse ele a Monsaraz referindo-se a nós, nessa altura integralistas, só integralistas, "se vocês forem contra mim, eu pego em vocês, ponho-os ao lado das esquerdas e bato em todos...". Esta era a maneira como Salazar ocupava a sua posição no Poder. É curioso o que ele disse e mostra bem como fazia tudo em função dele próprio e não queria saber nem de sistemas, nem de regimes, nem de ideias, a não ser que lhe servissem de pedestal... Era um pragmático.
- No fundo, não havia uma ideologia salazarista - não será isso o que quer dizer?
- Havia Salazar, ele só. Mais nada. A mim contava-me o presidente do Conselho (de ministros) de então, o general Vicente de Freitas, que Salazar, na altura apenas ministro das Finanças, levava o dia de gabinete em gabinete a conspirar com os outros ministros, contra o presidente do Conselho... Foi assim que ele conseguiu intrigar para ter alguns elementos no Ministério que o apoiassem. Depois, Salazar servia-se do prestígio que lhe dera ter sido ditador das Finanças: lugar importante nessa altura. depois dum desequilíbrio crónico dos orçamentos. Estava-se numa crise temerosa, falhara o empréstimo estrangeiro, procurava-se quem conseguisse fazer qualquer coisa de positivo, mesmo que fosse uma mera jonglerie como ele fez. Foi isso que lhe deu enorme projecção: era o homem das Finanças.
- Salazar tinha, além disso, uma máquina de propaganda bem montada. Houve o (António Joaquim Tavares) Ferro...
- Depois veio, efectivamente, o Ferro. Foi um homem importante na construção do Salazar. Fez muito por ele: fez dele um mito. Era um homem esperto, inteligente mesmo. Era artista, no que escrevia via-se sobretudo a preocupação de uma certa estética. O Ferro não era nada vulgar. Tenho até a impressão de que era mais inteligente que Salazar...
- Os Salazaristas nunca foram muito inteligentes ou brilhantes - falo sobretudo dos ideólogos do Salazarismo...
- Às vezes parecia. Se eles tivessem compreendido, teriam eles feito a Revolução...
- Mas nunca teria havido um homem de génio ao lado dele?
- Ele também não queria ninguém... Esses homens indiscutíveis não querem ninguém inteligente ao lado. Salazar nunca o quis. Ele considerava-se superior. Lembra-me bem que ele disse a alguém que lhe falava de uma pessoa inteligente: "Ora, passam-me todos por aqui." (e apontava o ombro). Salazar tinha uma vaidade incomensurável. Era um homem à parte, arredado, já mesmo quando estudante coimbrão. Nunca teve contactos connosco, monárquicos. Nunca teve mulheres nem paixões por mulheres. Nunca quis mulher. Tenho o retrato dele aqui numa gaveta, ao lado da condessa de... , creio (Rolão Preto procura numa gaveta uma foto, encontra-a: Salazar, elegante, ao lado de uma bela senhora, sentados num banco). Mas Salazar era um homem frio. Era tal a frieza dele - contava-me uma cunhada minha - que um dia que recebia esta senhora da foto, esta condessa, ela, ao fazer um gesto, deixou que se soltasse um bracelete, que caiu por terra. Então o Salazar, em vez de o apanhar, chamou um áulico - e mando-o apanhar o bracelete da senhora...
- Salazar teve uma paixão por essa senhora?...
- Salazar dificilmente podia ter tido paixões. Em todo o caso, tiravam fotografias juntos - já não era brincadeira, nessa altura.
- E o Salazar estudante, como era?
- Na Faculdade, tinha fama de ser monárquico, andava perto dos que faziam o jornal lá de Coimbra. Mas depressa passou a ser apenas católico, do Centro Católico, de que ele fez os estatutos. Foi deputado pelo Centro Católico, mais tarde (em 1921) . Deputado efémero: o Cunha Leal venceu-o logo... Leal era um dos grande inimigos dele; tinha uma enorme facilidade de falar e uma verve... Coisa que Salazar não tinha - e isto foi uma coisa que talvez prejudicasse Salazar no seu destino: é que ele não era orador. De modo que não podia fazer um parlamento em que tivesse que intervir pessoalmente. A primeira coisa que fez, uma vez chefe indiscutível, foi um parlamento perante o qual os ministros não são responsáveis. Lia os discursos dele, discursos escritos...E nisso era completo: não faltava uma vírgula.
- Quem seriam então os seus ideólogos, os mestres do Salazar? Teria lido Maurras antes de ser dirigente político?
- Eu tenho a impressão que ele não conhecia o Maurras nessa altura. Em Portugal conhecia-se pouco o Maurras, nesse tempo. Fomos nós que o trouxemos do exílio.
- Mas houve um homem que escreveu sobre Maurras nessa altura, em 1914, o conselheiro Aires de Ornelas...
- Sim, talvez, mas Aires de Ornelas era mais um militar do que um espírito informado. Tenho essa impressão. Nos meios intelectuais, foram os estudantes que revelaram em Portugal a personalidade do chefe da Action française. Nós, os estudantes monárquicos que vivíamos em França.
- Quem é que o Salazar lia então?
- Eu tenho a impressão que ele lia os católicos...
- Joseph de Maistre, De Bonald, os papas?...
- Sim, esses, as encíclicas, o Leão XIII. Era natural que fosse isso.
- E quem é que ele admirava? O João Franco? Trocaram cartas em 1929...
- Ele admirava o Franco, sim. Mas o que o João Franco queria era sobretudo obras materiais, estradas, enfim, um certo fontismo...
- Voltemos às suas relações com Salazar. Os integralistas sentiam-se identificados com ele - ou ele com vocês?
- Não é bem assim. Há sempre um grupo monárquico que tem esperanças que Salazar faça a monarquia. E ele não a faz. Não dizia que sim, nem que não. Ia-os iludindo, servia-se deles...
- Ideologicamente, eram afins, os integralistas e Salazar?
- Ele era sobretudo um ecléctico, largamente ecléctico. Onde Salazar via uma coisa que lhe interessava, que servia a sua maneira de ser e o triunfo da sua posição pessoal, era isso que lhe interessava mesmo. Não por ser integralista ou o contrário, monárquico ou não, católico ou não: ele servia-se de tudo isso, repito, para o seu prestígio pessoal. Tanto assim que veio a chocar-se com o bispo do Porto, a chocar-se várias vezes com a Igreja... A Igreja tinha medo dele, não lhe tinha grande amizade.
- Falemos agora de si. No seu livro de 1933, Salazar e a Sua Época, Rolão Preto deplora que Salazar não seja um ditador à maneira europeia, isto é, um leader cesarista, espalhafatoso, galvanizador - em suma, que Salazar, professor frio, não copie Mussolini. Como é que se deu então com ele, se afinal Salazar realizava de modo tão imperfeito o seu ideal cesarista? Foi por divergir do estilo Salazarista que decide criar, em 1932, o seu movimento próprio, de inspiração mais vincadamente "extrovertida" e guerreira, mais de acordo com a sua ideia de ditadura moderna?
[No livro Salazar e a sua época (Janeiro de 1933), Rolão Preto comentou as entrevistas do então chefe do governo com António Ferro, chamando a atenção para o facto de Salazar não ter criado uma Situação, antes ter aproveitado uma Situação criada por outros - a revolta militar do 28 de Maio. Em breve, porém, depois de aprovada a Constituição em referendo, Salazar deveria submeter-se a um julgamento eleitoral: "Salazar, para realizar a sua obra política, tem que pôr ousadamente a sua candidatura de chefe nacional, sujeitando-se a todos os riscos, mas colhendo todos os louros da vitória". No ano seguinte, Salazar não arriscou e, seis meses antes das eleições, proibiu o nacional-sindicalismo, mandando prender e desterrar Rolão Preto e Alberto de Monsaraz. Nesta entrevista, a resposta de Rolão Preto foi educada e serena, esclarecedora, sem acusar as espalhafatosas provocações do entrevistador, semelhantes à falsidade e caricatura contida no panegírico do "Ditador catedrático" por Franco Nogueira [Salazar, II, Os tempos áureos (1928-1936), Coimbra, 1977, página 191; ver 1977 - Franco Nogueira - Um falsidade e caricatura acerca de Rolão Preto].
O "cesarismo", referido por Medina na sua pergunta a Rolão Preto, vinha no entanto muito a propósito da situação ditatorial que Salazar herdou e manteve. O capítulo III do livro Justiça! (1936) inicia exactamente pela caracterização de Syla e dos que fazem a "apologia de César", "os convivas do banquete", os dissidentes da Revolução, "os reaccionários de todos os tempos" que sempre formam cortejo junto dos Césares vencedores:
"Enquanto os convivas do banquete, que consagrava o triunfo supremo de Syla, se entregavam totalmente ao delírio do festim, o Ditador romano - todos conhecem este traço singular do seu carácter - ia, friamente, anotando, naquela hora propícia a todas as indulgências, a lista trágica dos seus inimigos vencidos, que era preciso desterrar no dia seguinte...
Tal gesto, que define uma política e marca definitivamente uma personalidade, é apontado ainda hoje como um exemplo da vontade insensível de César, posta ao serviço de uma sociedade em perigo. Daqui tiram mesmo, os responsáveis da derrocada de velho mundo, a esperança de poder, a todo o tempo, opor ao assalto renovado dos "escravos" a "posição" e a insensibilidade de um Syla, duro salvador de privilégios. Assim, o clamor dos beneficiários da velha "ordem", proclamando a sua confiança num chefe impiedoso e forte, cujo orgulho se sobrepõe à justiça, confirma a opinião daqueles que os consideram refractários à lei de uma consciência "humanista" e cristã” (p. 21)
(...)
De certo, no corpo social (...) a função do chefe é uma exigência do equilíbrio do todo.
Equilibrar é, porém, forçar um dos braços da balança?
Todos aqueles que confundem a Justiça com a sua justiça, a Liberdade com a sua liberdade, o bem estar com o seu bem estar, todos esses saúdam em César, primeiro que tudo, o seu próprio triunfo.
(...)
Cortesãos, nunca leais conselheiros, são eles que formam todas as camarilhas que, pela trama tenaz da intriga sempre renovada, isolam o Poder da Nação, precipitando as catástrofes.
O chefe, como o regime que ele impõe ou garante, torna-se desta maneira, em breve tempo, coisa sua, e dela mantém o exclusivo, através duma luta na qual os escrúpulos não embaraçam a acção." (pp. 22-23)
Caracterizando o regime de Syla-César (de Oliveira Salazar), escreveu Rolão Preto:
..."para curar os males do Liberalismo, cujo pior pecado foi não ter garantido as liberdades essenciais, cria-se um estatismo totalitário, que é o esmagamento completo dessas liberdades que urgia salvar.” (p. 24)
Mas, não estaria nesse Estado Novo de Oliveira Salazar algum eco da Revolução preconizada por Rolão Preto, como pretendiam os "convivas do banquete", os dissidentes do Integralismo e do Nacional Sindicalismo que ingressaram na União Nacional?
Rolão Preto respondeu ali também claramente à questão:
“Estatismo totalitário fundado sobre as conquistas do direito revolucionário?
De nenhuma forma.
O Direito da Revolução não preconiza o desequilíbrio, e muito menos a sobreposição dos Poderes. Ordena-os de outra maneira e dá-lhes uma base diferente.
Nunca, por exemplo, a Revolução comprometeria a independência do Poder Judicial sem se contradizer a si própria.
Não é, porém, a essência mesma da Revolução ultrapassar as posições jurídicas que ela veio encontrar?
Decerto. O Direito Revolucionário é a definição jurídica de uma nova ordem. Simplesmente, essa ordem deixaria de o ser, se se fundasse ao arbítrio pessoal fosse de quem fosse. Não há Direito, mesmo aquele que significa a rotina com apport jurídico do passado, que possa servir apenas a vontade incerta e perigosa de um homem" (p. 24-25)
(ver Justiça!, Capítulo III - Apologia de César, 1936, pp. 21-27)]
- Salazar nunca aceitou que se fizesse um movimento fora do seu, sem ele, fosse qual fosse. Só aceitaria - e foi, o que nos mandou dizer - que entrássemos para a União Nacional, entretanto criada. Então nos daria, no interior dela, um valor de sector, de tendência. Recusámos qualquer contacto com ele. Alberto de Monsaraz foi então alvitrar-lhe que nos consentisse a nossa propaganda livre, como partido, como organização específica. Como integralistas, queríamos fazer algo que pudesse bater o regime e intentámos organizar uma campanha eleitoral. Salazar não aceitou. Só se calava se aparecessemos como uma organização parecida com aquela que ele tinha feito. Com a esperança de nos poder observar. Ora a União Nacional era uma organização apática, conservadora e reacionária que não nos convinha de forma alguma. De modo que nós decidimos não aceitar a União Nacional e fizemos um movimento nosso. Nessa altura, na Europa toda, saída há poucos anos da guerra, assistia-se à proliferação de organizações políticas que combatiam com uma característica especial, como a do fascismo italiano, que era um movimento de antigos combatentes. Até as esquerdas estavam por vezes organizadas da mesma maneira, cultivavam um estilo militarista de fazer política, andavam fardados, tinham cânticos de combate, milícias próprias, estandartes, etc. Mesmo os anarco-sindicalistas tinham uma farda. De modo que nós também adoptámos um estilo semelhante, um uniforme, uma camisa - éramos os camisas azuis. Mas o Nacional-Sindicalismo, note-se, era mais um movimento nosso, de pensamento português, do que uma cópia de qualquer outra organização política europeia. Naturalmente, a influência da Itália fascista e, depois, a do nazismo alemão, influenciaram, criaram um clima favorável...
- Houve nessa altura uma fascização do seu movimento, que teria passado a ser francamente fascista?
- Nós queríamos que ele tivesse características portuguesas, nossas...
- Ainda se sentiam monárquicos?
- No fundo, a maioria do movimento era monárquica, integralista, mas não se punha então o problema do regime.
[Após a apresentação do projecto constitucional do General Gomes da Costa no Conselho de Ministros, em 14 de Junho de 1926, o Integralismo Lusitano suspendeu a reivindicação política monárquica. Aquele projecto constitucional, escrito com a colaboração dos integralistas Hipólito Raposo, Pequito Rebelo e Afonso Lucas, previa uma "representação nacional por delegação directa dos municípios, na eleição dos quais o sufrágio será alargado de maneira a ser atribuído a todos os chefes de família, uniões económicas, e dos corpos educativos e espirituais, com exclusão absoluta do sufrágio individualista, e consequente representação partidária". Menos de um mês depois, o general Gomes da Costa foi preso e deportado para os Açores (ver "O Integralismo Lusitano perante a Salazarquia"). Os integralistas sofreram então um sério revés, mas não alteraram a sua posição, vindo a anunciar a sua dissolução enquanto organismo político na sequência da fusão dos organismos monárquicos na Causa de Dom Duarte Nuno de Bragança, em Julho de 1933. O Movimento Nacional-Sindicalista não colocou a questão do regime e tinha sido criado por dois membros da Junta Central do Integralismo Lusitano. Não representou uma cisão no seio do Integralismo, como adiante é dito, ao contrário do que João Medina supôs e quis por força fazer crer.]
- E continuavam a sê-lo ou eram já qualquer coisa de novo, para além da monarquia?
- Queríamos fazer um movimento "nacional" mais do que "nacionalista". Era um integralismo completamente diferente daquele que tinha havido, do mesmo modo que o integralismo já havia sido completamente diferente da organização monárquica tradicional... Éramos uma revolução em marcha.
- Seja como for, a certa altura surge portanto um conflito entre os nacionais-sindicalistas e o salazarismo. Falemos agora do célebre banquete que lhe é oferecido, Rolão Preto, no Parque Eduardo VII, a 18 de Fevereiro de 1933.
- Nessa altura há uma manifestação que de facto inspirou cuidados ao Salazar. Foi esse tal banquete do Parque Eduardo VII, em Fevereiro de 1933. O banquete foi-me oferecido no Pavilhão dos Desportos por um grupo de oficiais do exército, simpatizantes do movimento. Uns trezentos e cinquenta oficiais, todos fardados. Havia uma atmosfera especial. Falou o António Pedro (actor e artista plástico), falaram o Tinoco, o major Mário Pessoa, falei, eu, etc. O facto é que tínhamos grandes simpatias entre os militares. O major Crujeira de Carvalho, por exemplo, era chefe do secretariado militar do movimento. Estava connosco , embora não tomando a palavra no banquete para não se "queimar": ele era comandante do Regimento da Graça. Tínhamos apoios fortes no seio militar, em Caçadores 5, em Metralhadoras, etc.
- Chegou alguma vez a pensar num golpe de Estado para tomar o Poder?
- Nessa altura, não. O movimento nacional-sindicalista começava a orientar-se no sentido de querer ser nacional e não só partidário. Estabelecemos então contactos com as esquerdas - o general Ribeiro de Carvalho, por exemplo, foi contactado para efeitos da organização militar do movimento...
- O Nacional-Sindicalismo português teria alguma semelhança com o movimento de um Otto Strasser na Alemanha ou mesmo com o dos SA do capitão Roehm, liquidado por Hitler na "noite das facas longas"?
- Esses eram sobretudo cisões no interior do hitlerismo. Em Portugal não havia nada que lhes correspondesse. Nós nunca fomos cisão de quem quer que fosse e muito menos de Salazar, a quem nunca aceitámos.
- Falou então com gente de esquerda, democratas, inimigos de Salazar, com o intuito de o derrubar, não é?
- Sim queríamos uma aliança que criasse um sistema compatível com as liberdades públicas.
- Com quem falou?
- Falava por exemplo com o Joaquim Manso, do Diário de Lisboa; ele descia por vezes até à Baixa (de Lisboa) para conversar comigo, para vermos juntos como resolver os destinos... Falava com esse admirável António Sérgio...
- Pensavam francamente em derrubar o Salazar?
- Com um movimento nacional.
- O ferro-de-lança desse movimento de insurreição seria assim o seu, o Nacional-Sindicalista?
- Sim. Era além disso um partido com um programa novo, capaz de tomar o poder, que tinha apoios militares, com muita gente, mais de cinquenta mil aderentes, com força... No Porto, a seguir ao banquete do Parque Eduardo VII, houve uma réplica dessa homenagem. Aqui, os militares eram em menos número, claro. No Porto o nosso movimento era predominantemente civil, classe média e trabalhadores. O banquete foi no Palácio de Cristal, na noite de 7 de Maio de 1933. Não havia ali ricos. Estes julgavam que nós éramos...
- Bolchevistas?
- ... bolchevistas, arrepiavam-se connosco.
- Dentro da fileiras salazaristas, havia quem olhasse o seu movimento com simpatia?
- Havia, a começar pelo próprio ministro do interior de então, Albino dos Reis. Conspirou sempre connosco. Com ele combinámos tudo, até a revolução...
- Chegaram a marcar uma data para o vosso golpe de Estado?
- Marcámos uma data. Em Agosto de 1935, devíamos ir fazer uma manifestação à Batalha e , dali, marchávamos até Lisboa, até Belém, para reclamar do presidente da República, a destituição do Salazar. Ainda se revoltou a esquadra no Tejo. O movimento foi porém atraiçoado e adiado. Vários oficiais das unidades da Graça foram detidos à medida que procuravam entrar. Afonso Lopes Vieira foi quem fez o manifesto: tínhamos preparado um programa de governo que tencionávamos apresentar a Carmona, exigimos a transformação do regime, a restauração da liberdades públicas desaparecidas, etc. Tínhamos oficiais de Artilharia de Leiria e de Infantaria de Mafra, etc. Então Salazar, que soube de tudo aquilo, mandou-me prender. Foi isto em 1935. E fui posto na fronteira espanhola, juntamente com o secretário do movimento nacional-sindicalista, que era Alberto de Monsaraz.
- Quais eram, então, as forças que estavam do vosso lado? E que forças de esquerda vos apoiavam?
- Havia a esquerda que está sempre pronta. Mas havia sobretudo os democratas do anterior regime, os antigos ministros, os oficiais afastados, etc. Havia por fim um grupo de republicanos que ainda estavam no activo e que conspiravam connosco. Foram presos na mesma altura e muitos deles deportados para os Açores juntamente com os nacionais-sindicalistas. O nosso movimento foi então proibido por Salazar, que saiu de tudo isto ainda mais forte, com a sua posição mais reforçadas.
- E o grupo da Seara Nova, que fez ele em tudo isso?
- O grupo da Seara não participou muito no caso, a não ser através de Sérgio. António Sérgio era muito meu amigo e desenvolvia uma grande actividade conspiratória. Conheci-o uma vez numa reunião política e convidou-me a ir visitá-lo. Fui e tornámo-nos amigos. Mais tarde convidou-me a colaborar no jornal República. Sérgio fez esta coisa difícil: levou-me a colaborar no jornal fundado por António José de Almeida.
- Diga o nome de outros homens com os quais privou na altura.
- António Maria da Silva ainda chegou a estar com o nosso intento. Mas era muito "puro" diante de certas coisas ante as quais havia que ser flexível, transigir... Nunca chegou a perceber o que foi o 28 de Maio. Explicava-me o golpe de 1926 sem perceber que aquilo era fatal, que tinha mesmo de acontecer, que o regime estava minado e condenado à morte. Nunca o entendeu, interpretava tudo como o resultado da acção deste ou daquele, dizendo nomes, sem descer às causas profundas da crise donde resultou a derrocada da República democrática.
- E o Quirino de Jesus - antigo seareiro, aliás - conheceu-o bem?
- Muito bem. Encontrei-o várias vezes, sobretudo em casa do Sinel de Cordes. De vez em quando, mandava-me chamar. Esse sim, esse é que manobrava o Salazar. Quirino, é a minha impressão, era verdadeiramente o mentor do Salazar, o dirigente do Salazar do início. Através de uma senhora, cujo nome não me ocorre, e que era prima ou coisa assim de Quirino, Salazar frequentava a casa dele em Lisboa. Quirino ganhava muito dinheiro, tinha boas ligações com a finança, era ele mesmo um financeiro. Em suma, o homem ideal para ajudar Salazar, acabado de chegar de Coimbra, desconhecido, apagado, fechado. Salazar precisava de encontrar a realidade portuguesa, precisava de apoios - e Quirino de Jesus era a pessoa ideal para isso. Por outro lado, não inquietava Salazar, não lhe fazia sombra: ensinava-o, ajudava-o. O que Salazar não admitia é que alguém se opusesse a ele, o criticasse, lhe objectasse, contradizendo-o. Quirino era, como Salazar, uma pessoa fria, um calculista. Apesar do seu ar místico, não passava no fundo de um manobrador, dum jogador... E tinha no ânimo de Salazar um grande ascendente, tanto mais que não falava cá fora do que Salazar lhe confidenciava, sabia guardar segredos. Era, em suma, um bom sócio, o sócio ideal. A tal senhora chamava-lhes "os meus netos" ou uma expressão carinhosa assim. Como é que ela se chamava? Não me lembro, mas era sem dúvida interessante trazê-la à luz da História, pois ela teve uma grande responsabilidade em tudo o que aconteceu.
[João Medina crê tratar-se de Prudência Serras e Silva, mulher do professor de Medicina Serras e Silva, 1868-1956]
- E o Ezequiel de Campos, outro trânsfuga da Seara Nova: tinha escrito em 1923 um livro de colaboração com o Quirino, ocupou importantes funções no Salazarismo...?
- Sim, Ezequiel esperava que Salazar o deixasse realizar uma obra inovadora na lavoura, com as barragens, etc. Mas não. Salazar era isto: escolhia este ou aquele, mas depois, quando via que ele tinha um certo prestígio, retirava-o, afastava-o. A mim tentou-me também fazer o mesmo: utilizar-me e depois deitar-me fora. Mandou-me um dia chamar. Era isto depois do banquete do Parque Eduardo VII. Mandou-me pois convocar - mas eu não fui. E isso ele nunca mo perdoou. O secretário do Salazar na altura, o tenente Assis, uma homem de Bragança e que ainda está vivo, foi-me chamar ao jornal. E eu recusei, não fui ter com o Salazar. Eu sabia o que ele queria: queria dar-me uma pasta para acabar comigo, para me comprar, como comprava toda a gente. Era o sistema dele. E este homem, como eu não aceitei, decide expulsar-me de Portugal. Lembra-me que, oito dias depois de Monsaraz e eu estarmos expulsos em Espanha, exilados, chega António Ferro a Valência de Alcântara: vinha oferecer-me um lugar numa empresa que se ia formar na altura, a Sacor...
- Queria comprá-lo, calá-lo de vez...
- Pois, era assim que ele governava... Ferro era o agente dele. Foi especialmente a Espanha para me fazer a oferta de Salazar: se eu quisesse voltar a Lisboa e como tinha de educar os meus filhos - Salazar preocupava-se muito com os meus filhos, já se vê! , o melhor era eu aceitar o lugar que me era oferecido, desde que abandonasse por algum tempo a política. E eu não tinha qualquer emprego, tinha mulher e quatro filhos... Em suma, Salazar nunca me perdoou a recusa. Assim como nunca tolerava os êxitos dos outros, mesmo que fossem ministros seus, como aconteceu com Marcelo (Caetano).
- Em suma, desde a sua expulsão para Espanha, entre si e o Salazar não há nada a fazer...
- As nossas relações nunca tinham sido directas. Foi sempre através de amigos comuns que estabelecíamos contactos com ele. Pelo Monsaraz, pelo Pequito Rebelo, que tinham sido condiscípulos de Salazar. O Pequito era um homem tão frio como o Salazar. Aliás, um dia, foi ver Salazar para lhe pedir uma amnistia - ora Salazar, sempre que se falava de amnistia, era contra, sistematicamente contra -; depois de lhe falar no País, perguntou-lhe o que seria Portugal no dia em que Salazar não estivesse vivo. E Salazar, imperturbável: "Ouvi dizer que está doente. Está melhor?" O Pequito saiu porta fora, furioso. O Pequito tentou várias vezes congraçar-me com o Salazar, mas nunca deu resultado... [José Pequito Rebelo, 1893-1983]
- A partir de 1934, proibido o movimento nacional-sindicalista e fechado o jornal, Rolão Preto encontra-se definitivamente na barricada oposta à de Salazar?
- Estava do outro lado da barricada, completamente!
- E pensava mesmo em deitá-la abaixo?
- Claro, em jogo leal, em todo o minuto, em toda a hora! Mas lealmente sempre...
- E ele não: Salazar tem a política política, a censura, etc.... Continuemos: o que se passou consigo desde que posto na fronteira espanhola?
- A expulsão devia durar em princípio seis meses. Vivi com muitas dificuldades. Nesta casa da Soalheira passou-se fome... E quando fui preso, não tive oportunidade de avisar a mulher e a família: oito dias no Governo Civil e depois a fronteira espanhola. Monsaraz, como disse, foi também preso na mesma altura e mandado para Espanha.
- Foram juntos para o exílio?
- Foi o que nos valeu!... Monsaraz era uma pessoa de uma pureza, de uma lealdade absoluta. Um poeta. E bateu-se sempre, com denodo, sem quebrantos. Mais tarde voltaria para Lisboa, e ali viveu politicamente abandonado. Era rico. Em 1958, na altura da candidatura do general Humberto Delgado, procurei-o, mas já ele não interveio na luta. Não sei porquê. Estaria talvez doente. Repare que tinha perdido um rim em combate; em Monsanto, durante a revolta monárquica. A sua atitude em Monsanto foi admirável. Em certa altura do combate, Monsaraz observou os adversários e viu que este era o Povo que subia a montanha. Então o conde de Monsaraz exclamou. "É o Povo, não se bate no Povo!" E atirou com a espingarda ao chão. Poeta e nobre.
DO EXÍLIO ESPANHOL À CANDIDATURA DO GENERAL HUMBERTO DELGADO
- Conte-nos o que foi o seu exílio espanhol.
- Não durou muito: Salazar deixou-me um dia voltar. Ameaçava a guerra de Espanha...
- Conheceu em Madrid o José António Primo de Rivera, chefe da Falange?
- Era muito amigo dele. Salazar, quando fomos daqui para Valência de Alcântara, achou que estávamos muito perto de Portugal. E Salazar tinha por isso receio, de modo que resolveu fazer tudo, diplomaticamente, para nos pôr de lá para fora. A nós e às esquerdas que estavam lá: Cortesão e outros... Então eu fui a Madrid falar com os deputados que conhecíamos de nome, para lhes mostrar o que se passava e pedir-lhes que nos ajudassem...
- Deputados da Direita espanhola?...
- Deputados da Direita, como Calvo Sotelo, Maeztu, Pradera - mas não só da Direita: deputados da Esquerda também, como Azaña e Largo Caballero, mais o próprio chefe do Governo de então, o conde de Ramonones, que gentilmente nos recebeu e nos deu a certeza de podermos permanecer em Valência de Alcântara - nós e a Esquerda portuguesa, apesar da má vontade de Salazar.
- Lá conheceu José António?
- Com efeito, lá conheci José António Primo de Rivera, que nessa altura trabalhava no programa da Falange. Por sinal que me pareceu uma "coisa" bastante condescendente para com o processo capitalista. E eu que já levava de cá os meus fumos todos de revolta, uma atitude "à esquerda", social, procurei mostrar-lhe que aquilo não era o caminho e que ele não devia esquecer a posição revolucionária. Andámos um mês naquela colaboração, o mês que passei em casa dele.
- Primo de Rivera, cujo retrato inclui no seu livro sobre a guerra de Espanha com uma dedicatória do chefe da Falange, com data de 1934, e do qual se despediu, na primeira vez que esteve com ele, com a saudação romana - que tal era ele como homem, como pessoa? Todos os adversários dele o apresentam como um homem distinto, galante, de muita fineza, não é verdade?...
- Era alguém! Uma personalidade! Um hidalgo, um grande de Espanha!
- E fascista...
- Inabalável falangista! Sobre o ponto de vista Portugal-Espanha, tenho muito interesse em dizer-lhe que não se esqueça que, apesar de todas as nossas camaradagens, não houve dia que eu não tivesse que lhe dizer "não", como aliás, depois, ao generalíssimo Franco, quando se referiam aos destinos ibéricos - que segundo eles, impunham uma rectificação das posições respectivas dos nossos países.
[João Medina queria apresentar Francisco Rolão Preto e José António Primo de Rivera como fascistas. Teve aqui mais um tiro pela culatra. Rolão Preto deu-lhe como resposta uma corrigida exclamativa. Não era "Fascista", era "Inabalável falangista!". Na perspectiva de Rolão Preto, o Falangismo não podia ser confundido com o Fascismo: o Falangismo era o Nacional-Sindicalismo em Espanha - Rolão Preto colaborara com José António Primo de Rivera na elaboração do programa da Falange! - pela "conciliação de Liberdade com a Autoridade da conquista do Pão e da Justiça" (16 de Maio de 1939) (Para além da Revolução... A Revolução - Entrevistas, 1940, p. 134)]
- Conheceu Franco, em 1937, em Salamanca, em plena guerra, não foi?
- Conheci-o em Salamanca, efectivamente, em pleno combate, numa memorável tarde de bombardeamento da aviação roja. Por sinal, devo reconhecer como o general Franco se mostrou bravo na hora inquieta da metralha sobre o Palácio do Bispo que visavam. Pois nessa mesma hora em que, por toda a parte, as granadas estoiravam, Franco me ia dizendo, entre dois uísques, as suas intenções de estadista com uma tranquila coragem que nem sempre é apanágio de alguns generais nossos. Em verdade, bons são sempre os nossos soldados. Os generais, di-lo a História, nem sempre... Por vezes tivemos de os importar lá de fora... Bem, quanto ao Franco, que eu encontrei em pleno combate, com as granadas a estoirar à nossa volta - e ele, pequenino, frio - dizia-me ele que tinha pensado em fazer um jornal, o Tagus, que seria uma coisa que atravessava e abraçava toda a Península... Vi sempre nos espanhóis, em todos os aspectos, uma ansiedade: refazer a carta.
- Mas não era propriamente federalismo...?
- Não. Unificar a península, claro. Não era fácil.
- Foi então a Madrid e lá conheceu o José António. Teve outros contactos com políticos espanhóis? Com o Onésimo Redondo ou o Ledesma Ramos, por exemplo?
- Sim. O Ledesma, conheci-o. Sobretudo conheci gente que não estava ainda na Falange, que estava próximo dela mas não aceitavam José António.
- Porquê?
- Havia ali Robles, o chefe da democracia-cristã, e ele tinha toda a força política. A tentativa falangista era algo que a CEDA desprezava, até se riam disso. O falangismo era uma ideologia e eles não eram nada. Eram homens práticos.
[Medina publicou "fascista" onde aqui se lê "falangista"; Rolão Preto falava aqui dos falangistas e corrigiu Medina quando este classificou os falangistas como "fascistas". Importa repetir: na perspectiva de Rolão Preto, o Falangismo era sindicalista, antitotalitário, e não podia ser confundido com o Fascismo]
- No seu livro sobre a guerra de Espanha, Gil Robles é tratado com antipatia...
- Robles era outro Salazar! Foi ultrapassado por Franco, como Dollfus pelos nazis.
- E que mais houve no seu exílio em Espanha?
- Além da boa amizade com José António, tive contactos com dois deputados espanhóis que me fizeram a proposta de um plebiscito na Galiza, a favor da integração em Portugal. Nessa altura havia uma grande corrente a favor da união com Portugal. A manobra que me propuseram era fazer chegar a Salazar a ideia de um plebiscito. Salazar, claro, não quis: pensava sobretudo nele próprio, como sempre, não queria saber dos Galegos. Era um homem sem ilusões. E no entanto parecia ser um místico, um homem que vivia sozinho, com uma grande contemplação religiosa; e apesar disso não era nada místico: um tipo frio, extremamente realista. Quando lhe perguntavam porque é que não fazia um novo governo, que "isto está velho, está cansado", respondia sempre: "Para quê? São todos iguais..." Era a resposta dele.
- Era um céptico...
- Céptico. Os factos davam-lhe razão: quase todos os que chegavam ao pé dele queriam era dinheiro...
- Como o Fontes, que perguntava sempre: "O que é que ele quer?" Mas não teria havido homens puros ou homens à altura dele?
- Quando havia, ele afastava-os ou não lhes dava a possibilidade de realizarem uma obra. De certo modo, o Marcelo... Marcelo andou sempre aos baldões. Um dia Marcelo, que era ministro das Colónias, foi às Áfricas, arranjou lá uns batuques triunfais e voltou cheio de prestígio, conforme supunha. Fui ver nessa altura Marcelo para lhe pedir qualquer coisa - uma dessas coisas que a família nos pede por alguém que precisa de um emprego - e disse a Marcelo: "Você tenha cuidado: vem cheio de prestígio e Salazar não tolera homens com prestígio". Respondeu-me Marcelo: "Está enganado. Porque Salazar precisa de mim." E Marcelo só lá esteve três dias mais no Ministério - foi corrido!...
- Voltemos ao Quirino. Ouviu alguma vez dizer que o Salazar o teria mandado liquidar em 1935?
- Não sei, nunca ouvi falar disso. Não sei mesmo se Salazar chegou ao ponto de precisar de mandar matar Quirino. Seja como for, Quirino é o único que podia fazer revelações sobre Salazar. Porque eles viviam com uma intimidade enorme, inseparáveis, por assim dizer. (Quirino Avelino de Jesus (Funchal, 1865 - Lisboa, 1935)
- Com quem privou Salazar, além do Quirino?
- Havia outros. O Bissaia Barreto, por exemplo. Mas não tinham a altura de Quirino, não tinham a estatura dele. Os outros eram lacaios apenas, não valiam nada. E quando aparecia alguém com um certo valor, Salazar "cortava-o" logo.
- Mas voltemos à Espanha: a ideia do plebiscito na Galiza teve algum resultado?
- Lenda ou realidade, os tais deputados teriam vindo falar com o próprio Salazar. O nosso adido militar em Espanha nessa altura era o cunhado de Pequito Rebelo - era o brigadeiro Vasco de Carvalho. Este veio de propósito de Espanha para se entrevistar com Salazar. Salazar teria perguntado que forças tínhamos nós para essa anexação da Galiza. O brigadeiro respondeu: "Bastantes". Os Espanhóis queriam que entrássemos com uma força portuguesa para manter a paz, uma vez que aquilo lá, em plena guerra civil, estava cada vez pior. Um capitão espanhol tinha fugido para o Alentejo e tinha sido apanhado pelas autoridades espanholas e levado de volta para a terra dele, havia uma carência de autoridade lá... O que era preciso quanto antes fazer era ocupar a Galiza com uma divisão e realizar um plebiscito. Salazar convocou Vasco de Carvalho e perguntou o que era o plano. "Os quartéis em Espanha estão sem gente, a revolução levou quase todos. A operação é possível", respondeu-lhe o adido português. Mas Salazar não quis arriscar.
- Portanto, a guerra civil já começara?
- Já.
- E depois? Falo de si, do seu exílio em Espanha, antes da guerra civil, portanto.
- Ao fim de uns meses, como disse, voltei do exílio. Publico nessa altura, em 1936, um livro chamado Justiça! e que foi logo proibido por Salazar. O livro tinha uma dedicatória: "À memória do meu bisavô, o médico António das Neves Carneiro, deputado às Constituintes de 1836, perseguido por "jacobino", "inconfidente", "francês", "malhado" e "pedreiro livre", duas vezes encarcerado na cadeia da Relação do Porto, exilado, torturado em São Julião da Barra depois de ter transitado por dezoito enxovias da província, sem que jamais lhe abatessem o orgulho da sua intransigência. À memória de seu filho António Maria das Neves Carneiro, académico de Coimbra, enforcado em 9 de Julho de 1830 por cumplicidade no morticínio dos Lentes.
Ao seu alto sonho de liberdade e de justiça que por o seu sangue, em mim se continua e afervora na nova batalha pelo resgate da Personalidade Humana."
E juntei: sans rancune - e mandei o livro a Salazar.
- Ele não gostou...
- Nessa altura já vivíamos nas catacumbas. O movimento nacional-sindicalista estava então banido, desarticulado.
- Os homens do seu movimento passaram-se quase todos para o Salazar?
- Sim, quase todos. Valadão, Dutra Faria, etc. Tinoco portou-se bem. Valadão, no tempo em que já estava a jogar com Salazar, escrevia-me, fingindo apoiar-me, denunciando os outros que faziam o jogo com o salazarismo... um pirata! Dutra era um ambicioso, com valor - o que queria era uma posição para ganhar dinheiro, não queria mais nada. Coitado! O principal culpado foi ainda Salazar, por isto: é que, na idade em que esses rapazes estavam todos, nos vinte e tantos anos, o que queriam era casar-se, ganhar a vida. E Salazar oferecia-lhes empregos. Foi nessa altura que ele criou a organização corporativa pseudo-sindicalista. E foi então que se separou absolutamente de nós: já não podia haver qualquer acordo com ele.
- Como se portou António Pedro?
- António Pedro era um artista, uma pessoa honrada. Evoluiu para a democracia, não apoiou o Salazar.
- O Garcia Domingues?
- Era mais um intelectual, publicou uns livros sobre a presença árabe em Portugal. Depois apagou-se. Foi sempre leal enquanto houve batalha. Depois calou-se. A batalha agora era diferente: conspirava-se com todos.
- Em suma, a partir do seu regresso de Espanha, o Nacional-Sindicalismo está morto, desapareceu. Mas em 1939, ao reeditar uns artigos escritos em 1922 em defesa das ideias de Mussolini, Rolão Preto continua a bater-se pelos ideais fascistas, elogiando Hitler...
- Acha que eu fiz alguma vez o elogio de Hitler?!
[A entrevista atingiu aqui um ponto culminante: João Medina expõe a sua errónea apreciação das palavras de Rolão Preto a respeito da Mussolini e de Hitler. Perante a estupefação do entrevistado, Medina insiste com supostas "provas". No corpo do livro Salazar e os Fascistas, Medina ignora por completo as sucessivas demarcações e rejeições dos estatismos totalitários por Rolão Preto, culminando no livro Justiça! (1936), em que Mussolini é um dos totalitários visados (Capítulo XI - Política da Personalidade, p. 87). No corpo do livro Salazar e os Fascistas, na página 51, Medina vai porém mais longe, mentindo sem rebuço acerca do que Rolão Preto escreveu em Para além da Guerra (1942) - A Verdade e a Mentira - A literatura capciosa acerca do Integralismo Lusitano].
- Leiamos ipsis verbis o que escreveu em 1939: Mussolini "deu uma alma nova à Itália" e "Hitler reforjou para o III Reich a espada de Siegfried". São palavras suas... O facto é que Mussolini é ali apreciado com estima.
- Isso não são elogios - constata-se a sua acção. Isso foi antes da guerra da Abissínia! A partir daí já não tenho nada a ver com o Mussolini!
[Em entrevista a José Plácido Machado Barbosa (Para além da Revolução... A Revolução - Entrevistas, 1940) Rolão Preto refere-se aos "erros que atiraram a Itália para um plano contrário à política inglesa"; esses erros foram os que conduziram à Segunda Guerra Italo-Etíope (1935-36), com a Itália fascista a invadir a Abissínia. Em Janeiro de 1933, Rolão Preto tinha feito uma demarcação política dos totalitarismos fascista e hitleriano. Depois de 1935, com o fascismo italiano a entrar na via imperialista que o levará à aliança com a Alemanha nazi, a demarcação de Rolão Preto foi, além de política, também geopolítica: "a partir da guerra da Abissínia já não tenho nada a ver com o Mussolini!"]
- Em 1945, no seu livro A Traição Burguesa, Rolão Preto faz algumas críticas ao falecido Duce mas continua a falar dele com estima, com uma espécie de nostalgia, evocando o seu "sonho absurdo mas lindo". Mas deixemos isto, e voltemos antes ao seu regresso do exílio forçado em Espanha.
- Bem, regressando a Portugal em fins de 1934, depois do meu exílio, reconheço que não havia outra maneira de combater Salazar a não ser pela via revolucionária, o que não era compatível com um partido e tinha de ser nacional para interessar a toda a gente. Aliei-me então a outros, aos democratas que sempre tinham combatido o salazarismo. Com Ribeiro de Carvalho, por exemplo. Estabeleci ligação com o MUD, mas sobretudo através dos mais novos como o Tinoco e o António Pedro, que trabalhavam junto dos democráticos e tinham criado uma organização. Essa organização, porque denunciada por alguns elementos da PIDE que se tinham infiltrado, falhou. Ela devia fazer a revolução a começar na Graça. A revolta da Marinha ainda se realizou: ela devia marchar sobre Cascais, prender Carmona e força-lo a destituir Salazar, fazendo então um governo nacional com esquerdas e direitas. Barbosa de Magalhães fazia parte do comité revolucionário da altura - ele e um almirante cujo nome me escapa agora.
- E o Quintão Meireles?
- O almirante nunca conspirou, pelo menos connosco. Meireles, conheci-o como candidato, mais tarde, em 1951: trabalhei então com ele, fiz uns discursos durante a campanha eleitoral, em Lisboa. Foi a minha primeira manifestação pública de ataque ao salazarismo, não falando na minha colaboração no jornal República.
- Mais tarde viria a militar também na candidatura oposicionista do general Humberto Delgado, não é verdade?
- Delgado, como patriota, era completo. Como homem de ordem era perfeito. Mas era a meu ver bastante sincero para não ser um pouco ingénuo. Talvez precisasse de ter mais serenidade para poder conduzir uma revolução. Fora isso, era um bom português e socialmente muito avançado, tão avançado e revolucionário como os mais revolucionários que nós cá tínhamos: tenho cartas dele mostrando-o. Tinha porém esta grandeza de ânimo: consentia que eu, quando foi a candidatura dele, lhe rectificasse certos discursos, lhes retirasse os aspectos mais violentos e mais corrosivos que o prejudicavam, sobretudo pelo ódio a determinadas figuras do regime.
- Tinha contactos com ele antes da candidatura de 1958?
- Sim. O Delgado escrevia-me de longe, do estrangeiro e julgo que tive alguma acção na sua ideia de se paresentar como candidato às eleições de 1958. Ele estava em Londres quando me escreveu as primeiras cartas. O general ainda não acreditava que fosse possível fazer qualquer coisa. Eram apenas cartas pessimistas. Mas depois, pouco a pouco, Delgado vai confessando que era preciso encetar uma acção revolucionária capaz de modificar isto.
- Qual foi a origem dessa correspondência?
- Foi um artigo meu no jornal República (onde colaborei muito tempo e gratuitamente). Delgado escreve-me concordando com o que eu dizia no artigo - e daí nasceu o contacto entre nós. Estabeleceu-se, aliás, um entendimento perfeito entre nós.
- Gostou dele, quando o conheceu pessoalmente?
- Gostei, vi que era uma pessoa leal, valente. Tinha qualidades excepcionais para ser o homem necessário naquele momento. E que era além disso um general novo - o que, na verdade, interessava imenso para chefiar uma revolução contra o salazarismo. Delgado, dava-me toda a confiança e considerava-me necessário para um futuro Ministério, etc.
- Dos seus antigos camaradas nacionais-sindicalistas, quais os que vieram a encontrar a seu lado quando milito pelo general, em 1958?
- Muitos...
- Falemos do capitão Vilhena...
- Esse era das esquerdas. Tivemos, aliás, os melhores contactos mas nunca ca tinha sido do meu movimento, claro. Era um dos tais republicanos que nunca desarmaram... Monsaraz, esse estava então afastado, doente, creio. Onde eu estava, estava Monsaraz!
- E os monárquicos, em geral, como se comportavam em 1958?
- Sempre hostilizaram Humberto Delgado! Só os da "extrema-esquerda" monárquica, chamemos-lhe assim, aderiram à candidatura de Delgado. O resto estava com Salazar, consideravam o general um louco. Além disso certos monárquicos ocupavam boas posições económicas...
[Rolão Preto identifica-se aqui como pertencendo à "extrema-esquerda" monárquica, mas acrescentando "chamemos-lhe assim". Não cheguei a conhecer Rolão Preto, mas em entrevistas e encontros com integralistas mais jovens - conheci Mário Saraiva, Henrique Barrilaro Ruas e Teresa Martins de Carvalho - notei que não adoptavam os conceitos de "esquerdas" e "direitas". Não se reconheciam nas categorias da partidocracia. Afirmavam-se municipalistas e sindicalistas, recusando o mundo conceptual e ideológico das oligarquias e clientelas partidárias. Forçados a escolher um "lugar" ou "posição" nos espectros político-ideológicos, consideravam-se "ao centro", na equidistância, ou, como diria Rolão Preto - "Nem contra as esquerdas, nem contra as direitas. Em frente!" (Para além da Revolução... , Porto, 1940, p. 60). Dada a natural incompreensão dos conservadores da partidocracia - João Medina, aqui entre eles - Rolão Preto identificava-se na "extrema-esquerda", como aliás António Sérgio que lhe foi próximo, do grupo da Seara Nova. Nas "Direitas" é que não. Rolão Preto considerava-se no campo anti-conservador, dentro da linha da renovação política e doutrinária introduzida pelo Integralismo Lusitano.]
- E que pensa da filha do rei D. Carlos I de Bragança, D. Maria Pia de Saxe-Coburgo?
- Com essa senhora sucedeu em 1958 uma coisa curiosa: eu ia pela avenida da Liberdade a caminho da sede do general, perto do teatro, lembra-se?, quando um chofer fardado se abeirou de mim e me disse que uma senhora me queria falar. Era D. Maria Pia de Bragança, a filha bastarda de D. Carlos. Estava num "espada". Ela disse-me: Sou a filha de D. Carlos. E levou-me no carro dela para conversarmos à vontade. A filha do rei estava do lado de Humberto Delgado e falámos do que se podia fazer pelo triunfo da causa do general. Assim se passou uma parte davtarde. E quando voltei a casa, soube que eu tinha ordem de prisão, que a PIDE andava à minha procura para me prender. Meti-me logo num carro e vim para aqui, para a Soalheira, onde me ocultei durante dois meses. Em suma, a senhora livrou-me de ser apanhado pela PIDE!
- Como pretendente ao "trono português", acha-a legítima ou não?
- Bem, eu tenho para aí o documento do baptizado dela... Mas prefiro sinceramente não dizer nada sobre o caso. O que posso dizer é que é uma pessoa interessante.
- Falemos então da candidatura de Delgado.
- Escondi-me nessa altura na Beira Baixa. Um "pide", que agora está preso, confessou que esteve quize dias à minha espreita, aqui na Soalheira ( e Rolão Preto ri-se, fazendo um gesto em direcção à janela, da qual se vê parte da Quinta da Serra, onde fica a sua casa)... Mas a verdade é que me livrei então de ser preso...
- Passou-se 58 e o Rolão Preto não foi preso...
- Esperei um mês ainda. E depois tudo esquece não é?... E continuei a minha vida...
- E a partir daí, até hoje, o que se passou de mais importante na sua vida política e pessoal? Houve o Marcelo, depois o 25 de Abril e a queda do fascismo salazarista, depois o PPM...
- Veio o Marcelo. Ele veio uma vez aqui, a Castelo Branco, e eu fui dizer-lhe que tomasse cuidado, que fizesse uma obra nova...
- Em que sentido exactamente: a descolonização, por exemplo?
- Fiz-lhe uma carta que publiquei em 1972 - Carta Aberta ao Doutor Marcelo Caetano.
- O que é que se diz nessa carta aberta ao Marcelo?
- Bem, digo-lhe que faça a monarquia...
- Bom, digamos que isso é uma "mania" sua... Em relação à guerra colonial, por exemplo, propõe ao Marcelo que lhe ponha fim?
- Marcelo era monárquico, integralista. Mas depois "estragou-se" com o Salazar.
- Em relação à guerra colonial, lembro-me agora que o Pequito Rebelo, num sobressalto ultranacionalista, foi a Angola em 1961 combater o "terrorismo" - a enciclopédia Verbo diz mesmo dele estas palavras que leio: "Na sublevação terrorista de Angola prestou assinalados serviços à causa nacional como aviador". Pessoalmente, que lhe parece, Rolão Preto, esta atitude de Pequito?
- Bem, eu, de Pequito, só quero dizer que tenho por ele a maior estima.
[Mantivemos as aspas em "terrorismo" e a falta delas em "ultranacionalista" da publicação original. Segundo Medina, atendendo às aspas, não teria havido terrorismo em 1961 e, nas suas palavras a propósito da revista Homens Livres - Livres da Finança & dos Partidos (1923), José Pequito Rebelo, 1893-1983 seria, além de um "ultra", um “intratável integralista, verdadeiro mineral de dogmatismo”. Quando Medina publicou essas palavras, Pequito Rebelo estava ainda vivo. No testemunho de Teresa Martins de Carvalho, sua sobrinha, Pequito Rebelo “ria-se muito. Já tinha ultrapassado os noventa anos e, portanto, era difícil ofendê-lo. Tirava daí apenas algo de divertido e curioso. – Sabes – disse ele para a sua sobrinha – já não pertenço à História. Pertenço à Geografia!”]
- Está bem. Diga-me então o seguinte: em relação ao problema colonial, a sua posição não era decerto a de continuar a guerra, pois não?
- Era a de resolver politicamente o problema. Não continuar portanto a guerra.
- Nunca ninguém arrancou, pois, de si uma benção para a guerra colonial?
- Pois não.
- Nos últimos anos do regime do Marcelo, continuou desiludido com o regime? Desiludiu-se do "integralista" Marcelo?
- Avisei Marcelo em Castelo Branco de que devia fazer uma obra completamente diferente daquela que ele estava a fazer.
- Deu-lhe algumas sugestões?
- O Marcelo respondeu-me que eu exagerava o perigo. Não chegou a perceber o seu tempo. Já António Maria da Silva, como disse, não percebera o seu tempo, não compreendera o que lhe tinha sucedido... Num dia em que o encontrei em Lisboa, ele disse-me que o que se passara no 28 de Maio era mais simples do que eu julgava: era o capitão tal e o tenente tal que tinham feito isto e aquilo, etc. E estava convencido de que a História era feita por aqueles três ou quatro oficiais que tinham levado a cabo o putsch, quando o que interessava era ver que o movimento tinha mesmo que ter acontecido, que era uma fatalidade, o que António Maria da Silva não chegou a perceber nem a combater. Marcelo foi a mesma coisa: estava convencido de que era de pedra e cal e que não seria preciso fazer uma revolução. E que a "coisa" ia com aquelas conversas agradáveis que ia fazendo às multidões, as "conversas em família" pela televisão...
- Nunca falou com Marcelo sobre o problema colonial?
- Era um dos aspectos do problema...
- Não seria o problema essencial?
- Não tive tempo de falar nisso com ele. E não voltei a estar com ele.
- Como acolheu o 25 de Abril?
- Como um revolucionário que está à espera da Revolução há quarenta e cinco anos! (desde 1929) Com alívio. Mas não podia calcular nada sobre o que vinha a seguir, desse raio que então saía da nuvem...
- Mas a simples queda do regime salazarista no 25 de Abril...
- Essa, via-a com prazer...
- Com muito prazer?
- Com o suficiente de prazer! (ri-se)
- E com alguma apreensão?
- É preciso definir o meu sentimento em relação ao 25 de Abril? Bem, então, direi: com toda a apreensão perante uma revolução feita por pessoas que eu não conhecia e embora tendo por elas a maior consideração. Eu sempre disse que a esperança era militar...
- Teve sempre essa intuição - a de que a salvação viria do Exército? Ao aderir à candidatura do Delgado, era já essa a sua ideia - a de que só por via das armas se podia derrubar o regime de Salazar?
- Sim. Num julgamento militar do capitão Vilhena fui testemunha, era aliás amigo dele. Perante o espanto geral, em pleno tribunal, eu disse esta coisa imensa: "A esperança portuguesa é militar, é sempre militar". Mais tarde, quando vi a Revolução do 25 de Abril, tive pois uma grande esperança.
- E alguma inquietação?
- Inquietação?... Pouca. Porque eu cuidava que se havia de ver na tropa a solução histórica para isto. Contanto que a tropa assumisse os deveres da sua missão.
- Se tivesse que definir o regime defunto, o salazarismo - como o faria?
- O salazarismo? Era o salazarismo. Era só o Salazar, o homem Salazar, o tirano Salazar. A tirania pessoal de Salazar. Tanto que nem nas qualidades nem nos defeitos ele era português. Era um homem calmo, o homem das contas - e nunca foi o homem alegre, capaz de ser humano. Não foi homem que gostasse de mulheres...
Quando se lhe apresentava um projecto de amnistia, era sempre contra: nunca Salazar quis uma amnistia!
[Nesta entrevista, Rolão Preto salientou a tirania de Salazar. Noutros textos e contextos, em Justiça! (1936), por exemplo, referiu-se ao "estatismo totalitário" da fase de instalação do regime. De notar que Hipólito Raposo chamou a atenção para o caracter oligárquico do regime - para a "Salazarquia" - enquanto Pequito Rebelo, em carta a Manuel Braga da Cruz, caracterizou ideologicamente o regime de forma mais específica, como "uma democracia cristã maçonizada"]
- Como o considera: como um homem profundamente diabólico?
- Não, não digo isso. Mas era um homem que sacrificava tudo ao seu interesse pessoal, à defesa dos seus interesses próprios. Era mau, sim. Não era português. O português perdoa - Salazar não perdoava nunca.
- O Rolão Preto, como católico que creio que é...
- Católico?... Enfim...sou!
- Bom, digamos que para um cristão, o Salazar pode ser visto como um homem tocado pelo Mal?
- Ele atraiçoou a própria crença. A característica de Salazar. Tanto nas qualidades nem nos defeitos nada. O pior inimigo do futuro português foi aquele homem.
- Ao desbatizar a antiga "Ponte Salazar" e ao rebatizá-la como "Ponte 25 de Abril", o ministro da Justiça da altura disse a dado passo do seu discurso que Salazar era o "nome mais odiado da História de Portugal". Está de acordo com esta observação?
- Não sei se foi o mais odiado - o que eu penso é que de facto, por vezes, merecia sê-lo.Mesmo os maus dirigentes portugueses do passado, reis ou ministros, lá tinham todos, apesar de tudo, qualquer coisa de humano, eram no fundo humanos... Eu vi, por exemplo, em Madrid o ditador Miguel Primo de Rivera, o pai de José António: saía cá de baixo das Puertas del Sol, metia pela grande avenida, à hora em qua saiam dos ateliers as raparigas, e sem escolta, apesar de os polícias o seguirem cheios de medo de um atentado. E para quê? Para ver as raparigas. Sozinho, com a sua bengala, sabendo que era odiado por todos os lados... Salazar não era capaz de fazer isso por uma mulher... por ninguém.
- Voltemos ainda a Mussolini, que exerceu sobre si um grande fascínio. Depois da guerra, voltou alguma vez à Itália?
- Não.
- E a Alemanha nazi, visitou-a alguma vez?
- Nunca. Para não tomar compromissos. Porque eu tinha medo que eles não respeitassem amanhã os interesses portugueses. E tanto assim que, logo no começo do movimento nacional-sindicalista, eu promovi uma manifestação à Embaixada inglesa quando os alemães fizeram declarações sobre as nossas colónias. (*) A manifestação foi até Belém, pedindo que se protestasse oficialmente contra as declarações alemãs. Não me sentia próximo do regime nazi. Seduzia-me apenas a Ordem. Tínhamos perdido a mística da Liberdade - e queríamos a Ordem.
[(*) João Medina introduziu aqui uma nota de rodapé onde escreveu: "é inexacta esta afirmação de Rolão Preto". No artigo "Mortos de África, de pé!" (Revolução, nº 315, 26 de Março de 1933), Rolão Preto pediu a referida manifestação. Segundo vária imprensa estrangeira, francesa e britânica, havia um acordo entre Itália e a Alemanha, e Mussolini teria então procurado envolver a Grã-Bretanha nesse acordo. A referida manifestação não foi autorizada (Revolução, nº 316, 27-03-1933). O Diário de Lisboa, de 26 de Março de 1933, confirma que o secretariado geral do NS convocou mesmo a referida manifestação de protesto junto da Embaixada Britânica em Lisboa. No dia 27, o mesmo jornal informa, na primeira página, que o governo proibiu a manifestação.]
- E a Action française - contactou com os membros dela?
- Claro, com Maurras, quando eu estava exilado lá fora. (E Rolão Preto vai à estante atrás de si, procura nela um fascículo da edição original das Farpas e tira de lá uma velha carta desdobrada em quatro, com a data de 1922: é uma carta que lhe enviou Maurras a agradecer a oferta dum livro). Eu estava em Lovaina e ia muitas vezes a Paris antes da primeira guerra. Visitava a Action française, na Rue de Rome, onde conheci Charles Maurras, Bainville, Pujo, Léon Daudet... Passava noites com eles. Até escrevia coisas... Maurras era uma pessoa extraordinária, um lógico, sobretudo como intérprete, pondo os problemas com uma clareza absoluta. Mas era um homem que também não era humano... O melhor, como convívio, era o filho do Alphonse Daudet, Léon Daudet. Mas nessa altura, Léon Daudet estragou-se, só via espiões em toda a parte; isso tornou-o antipático. Aconteceu-me algumas vezes ir jantar com ele a um restaurante ali perto do jornal e ele era cheio de expressões, de uma linguagem plena de termos novos. Comia muito, com satisfação, falava de tudo, do pai, dos vinhos franceses que ele conhecia como poucos. Era uma pessoa que cativava pelo humanismo pessoal... Maurras era diferente: um sujeito que estava sempre a olhar com atenção, a querer compreender-nos. E muito surdo, já então.
- Teve outros contactos com a Action française?
- Recebia o jornal deles. Aqui foi proibido, quando o Papa o condenou. Mas continuava a contactar com eles, a escrever-lhes. Quando havia um problema mais delicado de política monárquica, escrevia-lhes.
- Considera-se um discípulo de Maurras?
- Os integralistas, sim, eram discípulos de Maurras. Os nacionais-sindicalistas não: estávamos desligados da Action française. Completamente diferente, a nossa posição: para nós, já não se punha o problema político. O problema social era o que nos interessava. George Valois, sim, esse interessava-nos - mas Valois desligara-se de Maurras, era um dissidente da Action française. Maurras, sobretudo o Maurras dos tempos da Ocupação nazista da França, já não era o nosso Maurras, mas sim o homem da Colaboração. E parece impossível que sendo ele o homem que disse que o ser inteligente seria estúpido se fosse pessimista, ele, no dia em que passou a ser pessimista e colaborou, foi nessa altura que se perdeu, que foi estúpido!
[De entre os fundadores do Integralismo Lusitano, a par de Pequito Rebelo, Rolão Preto poderá ter sido um dos que maior influência recebeu inicialmente da Action française de Charles Maurras. Em 1914, na sequência da eclosão da Grande Guerra, Rolão Preto mudou-se da Bélgica para a França onde veio a concluir os seus estudos de Direito e a contactar pessoalmente em Paris com os líderes daquele movimento neo-monárquico francês. Se a resposta de Rolão Preto foi exactamente a que aqui se reproduziu, revela a imprecisão de quem só voltou a Portugal em 1917, não acompanhando de perto o lançamento da revista Nação Portuguesa, e o que então, na correspondência trocada, se discutiu entre os fundadores do Integralismo Lusitano. No livro Filhos de Ramires, mostrei Luís de Almeida Braga, António Sardinha e Hipólito Raposo reagindo, desde o início, à "farmacopeia gaulesa", como lhe veio a chamar António Sardinha (ver Filhos de Ramires, Lisboa, Nova Ática, 2004, pp. 130-135; pp. 267-269). Alfredo Pimenta publicou artigos na primeira série da revista Nação Portuguesa, mas nunca pertenceu ao Integralismo Lusitano e veio mais tarde a criar a Acção Realista, revelando um maior apreço pela Action française. Entre os fundadores do Integralismo, porém, firmaram-se desde o início dois eixos de combate ideológico em torno dos quais havia que batalhar: o veio nacional a recuperar e o combate aos exotismos - a Action française era visto como um exotismo (Hipólito Raposo - Dois nacionalismos. L'Action française e o Integralismo Lusitano). Acerca das reacções iniciais dos integralistas à Action française, ver Filhos de Ramires - As origens do Integralismo Lusitano, em pdf - pp. 50-56 (sobre a Action française); pp. 110- 118 (Pequito Rebelo e as prospecções iniciais); pp. 124 ss (sobre "Os Meus Cadernos" de Mariotte); p. 211 e seguintes (síntese sobre Rolão Preto, os Integralistas e a Action française). Nos anos 30, os nacionais-sindicalistas não colocavam a questão da restauração da monarquia e estavam, na verdade, "desligados da Action française."]
- Hoje, como considera Maurras?
- Como um tratadista, um homem que cria fórmulas, mas não encontrou a verdade. Um homem antiquado, portanto. Lê-se como se lê Joseph de Maistre, não será? Como uma curiosidade.
- Não era um revolucionário, é isso o que quer dizer?
- Nunca foi.
- Era afinal um contra-revolucionário - será isso o que o separa dele?
- Pois. Considero-me um revolucionário.
- Nunca pensou que o fascismo era a contra-revolução?
- Nunca pensei porque ele não apareceu com esse significado. Só depois se viu que ele podia de certo modo contribuir para a contra-revolução.
[Benito Mussolini saiu do Partido Socialista Italiano pela porta da "esquerda nacionalista" - a favor da participação da Itália na guerra contra os Impérios Centrais (o PSI era pela neutralidade) com um programa de matriz "socialista", e mesmo com alguns laivos sindicalistas. "Só depois se viu..." que, ao atingir o poder, veio à tona o jacobinismo das suas origens ideológicas, procurando realizar um programa político imperial em regime de partido único; num estatismo totalitário (1932 - Benito Mussolini - Fascismo). Para Rolão Preto, esse "totalitarismo divinizador do estado, cesarista" do fascismo estava do lado da contra-revolução.
De notar que, para Rolão Preto, a "contra-revolução" era tudo o que travasse ou impedisse o exercício das liberdades cívicas e a livre representação sindical e comunitária no Estado. A Revolução significava superar os regimes políticos demo-liberais, centralistas, por natureza oligárquicos e, estruturalmente, regimes de corrupção - ver Justiça!, 1936, página 93); a Revolução a realizar teria de ser descentralizadora, assente numa representação municipal e sindicalista, nos antípodas do estatismo do fascismo ou do comunismo.]
- E o Sorel, que tanto cita nos seus livros - ainda o lê hoje, ainda o acha "actual"?
- Sorel é para mim o grande mestre. Foi ele que fez talvez tudo. Quando ele morreu, ao mesmo tempo a Rússia bolchevique e a Itália fascista pediram cada uma para lhe deixarem fazer a sepultura. Será ainda actual, Sorel? Creio que estamos também para além dele... [Georges Eugène Sorel, 1847-1922]
- E Nietzsche, interessou-o?
- Era mais um intelectual. Socialmente, não me interessava Nietzsche.
- Quais eram os seus autores preferidos?
- Marx. Proudhon. Não escolhíamos entre um e outro, pois respeitávamos tanto um como outro. Não queríamos que Proudhon fosse posto de parte. E esperávamos que o marxismo fosse uma saída. Maurras era um mestre: mas Maurras não queria amizade nem simpatia, mas admiração. E, ao mesmo tempo, era duro, cansava... Até como pessoa. [ler Francisco Rolão Preto - A política Social da Monarquia Orgânica]
- Outros mestres, portugueses?
- Toda a gente do século XIX, claro. A geração de 70. Oliveira Martins, por exemplo. Era talvez nosso precursor: um cesarista... E Ramalho, que interessou tanto Rodrigues Cavalheiro - a propósito, Rodrigues Cavalheiro era um integralista, veio um tempo para o nosso movimento e depois desapareceu numa coisa qualquer salazarista... [ler O Integralismo Lusitano e a herança dos "Vencidos da Vida")
- E chegamos agora ao PPM, o Partido Popular Monárquico - acha-o um partido revolucionário? Porque regressou à monarquia?
- Eu aceito o partido monárquico, mas não quer isso dizer que esteja de acordo com tudo o que as circunstâncias impliquem. Entendo que se não deve pôr o problema político nesta altura, em que o País está tão agitado.
- Considera-se ainda um revolucionário?
- O PPM é um partido revolucionário: só da revolução podem sair as soluções necessárias. O problema monárquico pode vir a ter uma oportunidade histórica, que não podemos adivinhar agora qual será. Tudo é possível em política: quem é que podia supor que ia acontecer o 25 de Abril?...
- Hoje, isto é, em Junho de 1975, o que pensa de Mussolini e dos ditadores do passado?
- Os países deles estavam tão mal que os ditadores, foram de certa maneira os produtos espontâneos dessa situação e portanto tiveram o sentido criador e ordeiro que talvez fosse útil. Tal e qual como no caso do Estaline, que usou de processos e sistemas que hoje nos repugnam e que talvez fossem desculpáveis para o seu tempo, para o seu comunismo. Esses homens tiveram sua função social, criadora, convergente e realizadora. Não quer dizer que hoje me interessassem como chefes ou orientadores duma coisa nossa que é preciso fazer.
- Uma última pergunta: se tivesse que dar um conselho à juventude e resumir numa sentença os seus quase 50 anos de vida política a que assistiu e na qual participou - que diria?
- Em duas palavras? Pois diria: para além da revolução, a revolução.
Soalheira, 27 de Junho de 1975
ADENDA
- Que contactos teve com António Sardinha?
- Membros da mesma Junta Central do Integralismo Lusitano [Rolão Preto foi cooptado para a JCIL em 1922], naturalmente muitos foram os nossos contactos. Muitas vezes também acudi aos seus chamamentos para conversar com ele em Elvas, na sua Quinta do Bispo. Aí, passeando pelos velhos caminhos ao longo das catedrais de buxo onde corriam ainda os ecos satíricos do Hyssope e as sombras relembravam presenças das gerações eclesiásticas que ali se moveram, ali, quantos problemas foram debatidos! Poemas ou estudos políticos... de tudo. António Sardinha, que em Coimbra tinha sido ainda republicano com Ramada Curto, Trindade Coelho filho, Campos Lima, Bissaia Barreto, entre outros, viera para a Monarquia só depois que em Chaves meditara sobre as sepulturas dos monárquicos caídos em combate. Assim ele apelara para a História - a História que ele procurava libertar de quantos erros lhe tinham alterado o sentido - para justificar a necessidade das instituições monárquicas. Sardinha gostava menos da França e de Maurras do que de Espanha e dos seus valores. Ele foi o homem da Aliança Peninsular. Tenho de Sardinha muitas cartas que ajudam a entendê-lo. Duma delas copio aqui estes extratos que dizem um tanto o espírito do escritor, pouco antes da sua morte súbita:
"O erro fundamental do Integralismo foi o de ter ido cedo demais para a acção política."
"O que eu lhe digo em todo o caso é que nós não somos apenas monárquicos. Há na nossa doutrina como elemento predominante um mundo de sugestões sociais que nos manda ir para a frente. Lembra-se do episódio dos Evangelhos? O Senhor vinha para salvar Israel mas os gentios eram quem O escutavam. Ora desde que os monárquicos não nos ouvem, para quê continuarmos agarrados a cadáveres vivos?" (A. Sardinha)
[Na publicação de Medina, surge "Aliança Ibérica" onde aqui se lê "Aliança Peninsular". É duvidosa a alteração do título de uma das mais importantes obras de António Sardinha - Aliança Peninsular (1924) - por parte de Rolão Preto. A expressão "Aliança Ibérica" remete para os projectos republicanos de Federação Ibérica, de que os Integralistas eram adversários. Na perspectiva de Sardinha deveria haver uma Aliança Peninsular entre Portugal e Espanha, mas... na condição de ambos os países terem as Instituições Reais na chefia do Estado. Enquanto Portugal e Espanha tivessem chefaturas electivas do Estado, qualquer aproximação à Espanha era considerada perigosa para Portugal - "Enquanto estivermos em república e, pior ainda, se, quando restaurada a monarquia espanhola só nós estivermos em república, quaisquer ligações ou compromissos políticos, feitos embora dissimuladamente, esbatendo fronteiras sob o aspecto de fraternidades regionais ou a pretextos de intercâmbios festivos, de empresas de interesses comuns, etc., etc., temia-os também, com toda a clarividência, António Sardinha."(1972 - Mário Saraiva - Aliança Peninsular - Uma advertência)]
- Qual foi a sua posição perante Sidónio Pais?
- Um dos males da República de 1910 foi o de ter nascido sob o signo do Poder de um só partido, o Partido Republicano Português. Este partido conseguiu montar uma poderosa máquina eleitoral que lhe assegurasse a posse do Poder até ao 28 de Maio de 1926, tornando-se assim, pela sua forte maioria parlamentar, num partido único contra o qual se coligaram por diversas vezes os outros partidos na intenção de o derrubarem por todos os meios, inclusive o golpe militar. Sidónio Pais e o 5 de Dezembro de 1917 foi assim uma dessas tentativas resultantes da deformação do sistema constitucional. Ajudara-o a tomar o poder a hostilidade dos que não concordavam com os compromissos da nossa intervenção na guerra. Sidónio não viu ou não quis ver o valimento desses compromissos. Nisso teve a nossa discordância total. Sempre pensámos entrar na guerra para garantia das nossas terras ultramarinas. Tentou ainda Sidónio Pais construir uma República Nova e para isso serviu-se um tanto dos integralistas e do seu sentido social renovador. Pouco durou porém esse pensamento de resgate que faria a convergência nacional necessária. Não tardaram os erros que o orgulho e a imprevidência do "Paladino" fizeram cometer e levaram tudo à derrocada. Tanto as qualidades dos que empreendem governar, por melhores que sejam, se revelam inúteis, se faltar a experiência política dos empreendedores. A experiência política também é uma técnica.
- Porque nunca fala dos Viriatos no seu livro sobre a guerra de Espanha?
- À data da minha viagem por terras de Espanha em guerra civil, os Viriatos estavam apenas começando a chegar a Salamanca. Vinham dispersos em pequenos grupos como contrabandistas, com o dinheiro nos canos das botas e disfarçados de ... "observadores". Entre eles vinham oficiais dos mais ilustres que se distinguiram mais tarde com valentia pessoal. O Governo português porém não acreditava muito na vitória de Franco, e, por isso, jogava comprometendo-se o menos possível até ao fim. Lembro-me que essas "manhas" deram o resultado de haver já um grupo de bons oficiais portugueses em Salamanca sem conseguir ser recebido por Franco. Essa situação degradante explicava-se dizendo que os oficiais portugueses eram ou mações ou pertenciam à espionagem inglesa, ao Intelligence Service. Foi preciso que levassem alguns a Serrano Suñer (cunhado de Franco) para que fossem respeitados.
[João Medina, "Entrevista com Rolão Preto" in Salazar e os Fascistas - Salazarismo e Nacional-Sindicalismo - a história dum conflito, 1932-1935, Lisboa, Bertrand, 1978, pp. 155-191 (de 249 páginas).]
Edição, comentários e destaques de José Manuel Quintas, 27 de Junho de 2024